[conteúdo na íntegra | ed. 240 | dezembro de 2020]
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A pandemia do novo coronavírus teve um impacto significativo sobre as artes cênicas, fundamentadas no encontro e na presença física. Com o fechamento dos espaços de apresentação e a proibição de eventos culturais presenciais durante cerca de sete meses (até o fechamento desta matéria, permanece uma série de restrições para apresentações culturais em Pernambuco, como público máximo de 100 pessoas ou até 30% dos teatros), os artistas, de forma individual ou em grupo, buscaram soluções para continuar a criar, refletir sobre o momento histórico e produzir conhecimento a partir das ferramentas tecnológicas disponíveis.
Um dos principais pensadores do teatro na América Latina, o argentino Jorge Dubatti tem acompanhado de perto esse movimento e contribuído de forma sistemática com os debates na área. Diretor do Instituto de Artes do Espetáculo da Faculdade de Filosofia e Letras (Universidade de Buenos Aires) e fundador da Escola de Espectadores, ele desenvolve há quase duas décadas pesquisas em Filosofia do Teatro, que tem como base a perspectiva dessa arte como acontecimento convivial, que só existe enquanto está sendo realizado, e, assim, deve ser compreendido a partir de sua práxis única, localizada e territorializada.
Seu pensamento sobre convívio, diferenciado do que classifica como tecnovívio (em que há mediação de máquinas), é uma ferramenta importante para discutir os híbridos de linguagens artísticas, principalmente entre o teatro e o audiovisual, que proliferaram durante a pandemia. Desde março, quando foi instituída a quarentena no Brasil, a natureza teatral e suas formas de produção ganharam destaque no debate entre os artistas e, também, o público. Enquanto algumas obras foram adaptadas às restrições do momento, ganhando novos contornos, como Galileu Galilei, anteriormente uma superprodução com mais de 10 atores em cena e, agora, um solo com Denise Fraga, outras foram criadas inteiramente a partir da crise sanitária, a exemplo de Parece loucura mas há método, da Armazém Companhia de Teatro, e dos experimentos multiplataformas do grupo Magiluth.
O uso da tecnologia digital na cena já vem de décadas e está em consonância com o próprio desenvolvimento e popularização dessas novidades. Mas, a situação atual, em que todas as etapas do processo, da concepção aos ensaios, passando pela divulgação e a encenação, aconteceram no âmbito virtual, pode ser considerada inédita. Da relação do ator com a câmera – e, na maioria das vezes, sua função também de técnico nesses trabalhos de caráter virtual – à busca de uma teatralidade nessas obras, o que se vê são tentativas pulsantes dos artistas de se manterem ativos, apesar da pandemia e de um problema anterior: o desmonte das políticas públicas para a cultura no país. Como em outros momentos históricos, os criadores têm desenvolvido soluções criativas para lidar com as limitações impostas pelo contexto social.
Em entrevista à Continente, Jorge Dubatti reforça que o teatro e a dramaturgia estão em um constante diálogo com os tempos, adaptando-se a eles, sem perder sua essência. Assim, essas obras são permeadas pelos acontecimentos históricos, direta ou indiretamente e, desde já, pode-se observar essas produções artísticas e de conhecimento como documentos do período pandêmico. Ele acredita que o isolamento social explicitou a importância do encontro e da presença para a humanidade, gerando uma ânsia por isso; que a pluralidade de criações é benéfica e que as experiências provenientes da pandemia irão gerar reações às práticas neoliberais, produzindo mudanças macropolíticas e nas micropolíticas da arte.
Apesar dos vários empecilhos (ou talvez justamente por eles), o fato é que há muito tempo não se discutia tanto sobre o teatro e suas questões. Em artigos, podcasts (Dubatti, inclusive, está à frente do El Tiempo y el Teatro, da Radio Nacional Argentina), conferências online, entre outras, muitos têm tentado entender os efeitos dessas criações para o presente e seus possíveis ecos para o futuro. Nesse sentido, o pesquisador reforça a importância da emancipação de artistas e do público a partir de um olhar atento às questões do teatro relacionadas às problemáticas do mundo. Dubatti acredita, assim, que atores e espectadores, fundamentais na realização do fazer teatral, podem ser, também, filósofos do teatro, em uma visão democratizante da arte e do conhecimento.
CONTINENTE Com a eclosão da pandemia, os teatros estiveram entre os primeiros espaços a fechar e, sem certezas sobre vacinas ou de previsões efetivas de controle da doença, continuam sem perspectiva de reabertura. Nesse contexto drástico de isolamento social, você enxerga um movimento de revalorização do convívio?
JORGE DUBATTI Depois de mais de 200 dias de quarentena, isolamento e distanciamento social, observo uma reavaliação da cultura de convívio na população argentina e mundial. Não acho que os conglomerados do mercado de tecnologia estejam felizes com isso. Chamo todas as práticas humanas territoriais de encontro com o corpo presente, no espaço físico, na presença física, na materialidade do espaço físico e com a materialidade do corpo físico vivo. O teatro é uma das formas de cultura de convívio, junto com o futebol de campo, a liturgia nos templos, as aulas presenciais nas salas de aula, as saídas a restaurantes e bares, os encontros com amigos, namorados, família, práticas sexuais etc. Oponho o conceito de cultura tecnovivial à cultura convivial, em que as relações humanas se estabelecem por desterritorialização, a distância, “remotas”, por meio de máquinas ou sistemas tecnológicos que permitem a subtração física dos corpos no território. Exemplos de tecnovívio são telecomunicações, cinema, rádio, televisão, redes, escrita, livros, streaming… A cultura acolhedora e a cultura tecnovivial são verdadeiros paradigmas: propõem eventos, experiências, pedagogias, tecnologias e epistemologias (com suas respectivas constelações categóricas) diferentes. Muito diferentes. Existem, é claro, zonas liminares entre o convívio e o tecnovívio, fronteira, passagem, limiar, fronteira, conexão. Nesses mais de 200 dias, houve uma retração brutal da cultura do convívio e um avanço fenomenal da cultura tecnovivial. Os grandes beneficiários foram os portais e as empresas de telecomunicações. Os grandes empobrecidos: todos aqueles que trabalham no convívio e no território. Hoje, podemos tirar algumas conclusões até aqui.
Primeiro: as pessoas começaram a ver, por seu rapto brutal, a importância do convívio em suas vidas. Tornaram-se comuns frases como “Como tenho saudades de comer fora”, ou “Como gostaria de viajar”, ou “Como é ruim morar sozinho”, “Como queria ir ao teatro, à casa dos meus pais”. Há uma reavaliação do convívio que, antes, por tê-lo tão perto e ao nosso dispor, não percebíamos a sua relevância. Como a Carta roubada de Poe: a melhor maneira de esconder algo é colocá-lo à vista de todos. Antes da pandemia, não víamos o convívio porque o gozávamos plenamente, só começamos a ver quando se tornou restrito. A pandemia revelou o poder do convívio em nossas vidas e causou uma reavaliação consequente. Segundo: apesar de seu posto avançado colossal, a tecnossobrevivência falhou em sua tentativa de substituir o convívio. Descobrimos que o tecnovívio pode nos oferecer muitas experiências bonitas, mas não pode substituir as experiências que o convívio nos oferece. Ele tentou e não deu certo. Terceiro: estamos sofrendo em todo o mundo – jovens, velhos, crianças, adultos – uma autêntica síndrome de abstinência social. Quarto: é importante perceber que a força do convívio, da sua necessidade, abriu-se, apesar das restrições: reuniões clandestinas, reuniões com protocolos e o surgimento de novas formas teatrais, como o “teatro das janelas”, “das varandas” , “dos terraços”, “parede” de uma casa à outra, como o “teatro tapial” do titereiro Manu Mansilla e Julia Sigliani, em Lincoln, província de Buenos Aires. Quinto: há uma questão fundamental que destaca as diferenças entre cultura de convívio e cultura tecnovivial. Por que a cultura tecnovivial não foi restringida? Porque não é contagiosa. As reuniões territoriais do corpo atual são contagiosas. É o melhor elogio que lhes podemos fazer: o contágio – como o entende Antonin Artaud, em O teatro e seu duplo – propõe uma zona da experiência humana que vai além da linguagem, que se conecta com a inefabilidade do espaço e da matéria.
CONTINENTE Como a filosofia do teatro pode nos ajudar a entender os efeitos da pandemia no teatro e para as artes em geral?
JORGE DUBATTI A filosofia permite-nos distinguir, da complexidade e do pensamento crítico, a autocrítica, a autorrevisão de um saber que questiona os seus pressupostos, o que diferencia as artes do convívio, o tecnovivial e o limiar entre o convívio e o tecnovívio. Como conhecimento radical, que supera a doxa, a filosofia é a única disciplina que nos protege daquela outra pandemia: os discursos de negócios e de mercado, que distorcem a realidade em favor dos negócios. A filosofia como antídoto para os slogans de mercado, que dizem que uma grande TV é um home theater ou que “Se você tem Netflix, não precisa de mais nada”. A filosofia contra os intelectuais orgânicos do mercado. A filosofia como religação com o passado, que nos livra da loucura do puro presente, da memória do peixe (que só lembra os últimos cinco minutos). A filosofia nos livra do medo de sermos considerados anacrônicos, obsoletos, desconfiados da “velhice”, porque continuamos valorizando a convivência. A filosofia como resistência ao pensamento antiteórico, ao gesto caótico disfarçado de “anarco”, para continuar a fazer negócios, e ao pensamento antiteatral que existe desde Platão e dos padres da Igreja. Felizmente, a filosofia supera este ou aquele filósofo. Nestes meses, na Argentina, os grupos de negócios pareciam dizer que tínhamos que esquecer a cultura do convívio e entrar na “era digital”. A palavra reinventar foi muito usada, muito neoliberal. As pessoas achavam isso uma bobagem e o faziam observando a própria existência, suas experiências, as necessidades de seu corpo que exigiam uma experiência de convívio.
CONTINENTE Você defende o teatro como acontecimento, composto pelo menos por três bases: o convívio, a poiesis