Entrevista

“A pandemia revelou o poder do convívio”

Diretor do Instituto de Artes do Espetáculo da Universidade de Buenos Aires, Jorge Dubatti reflete sobre as diferentes formas de fruição da arte teatral a partir do isolamento social

TEXTO Márcio Bastos

01 de Dezembro de 2020

Jorge Dubatti desenvolve há quase duas décadas pesquisas em Filosofia do Teatro

Jorge Dubatti desenvolve há quase duas décadas pesquisas em Filosofia do Teatro

Foto Alejandro Iurman/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 240 | dezembro de 2020]

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A pandemia do novo coronavírus teve um impacto significativo sobre as artes cênicas, fundamentadas no encontro e na presença física. Com o fechamento dos espaços de apresentação e a proibição de eventos culturais presenciais durante cerca de sete meses (até o fechamento desta matéria, permanece uma série de restrições para apresentações culturais em Pernambuco, como público máximo de 100 pessoas ou até 30% dos teatros), os artistas, de forma individual ou em grupo, buscaram soluções para continuar a criar, refletir sobre o momento histórico e produzir conhecimento a partir das ferramentas tecnológicas disponíveis.

Um dos principais pensadores do teatro na América Latina, o argentino Jorge Dubatti tem acompanhado de perto esse movimento e contribuído de forma sistemática com os debates na área. Diretor do Instituto de Artes do Espetáculo da Faculdade de Filosofia e Letras (Universidade de Buenos Aires) e fundador da Escola de Espectadores, ele desenvolve há quase duas décadas pesquisas em Filosofia do Teatro, que tem como base a perspectiva dessa arte como acontecimento convivial, que só existe enquanto está sendo realizado, e, assim, deve ser compreendido a partir de sua práxis única, localizada e territorializada.

Seu pensamento sobre convívio, diferenciado do que classifica como tecnovívio (em que há mediação de máquinas), é uma ferramenta importante para discutir os híbridos de linguagens artísticas, principalmente entre o teatro e o audiovisual, que proliferaram durante a pandemia. Desde março, quando foi instituída a quarentena no Brasil, a natureza teatral e suas formas de produção ganharam destaque no debate entre os artistas e, também, o público. Enquanto algumas obras foram adaptadas às restrições do momento, ganhando novos contornos, como Galileu Galilei, anteriormente uma superprodução com mais de 10 atores em cena e, agora, um solo com Denise Fraga, outras foram criadas inteiramente a partir da crise sanitária, a exemplo de Parece loucura mas há método, da Armazém Companhia de Teatro, e dos experimentos multiplataformas do grupo Magiluth.

O uso da tecnologia digital na cena já vem de décadas e está em consonância com o próprio desenvolvimento e popularização dessas novidades. Mas, a situação atual, em que todas as etapas do processo, da concepção aos ensaios, passando pela divulgação e a encenação, aconteceram no âmbito virtual, pode ser considerada inédita. Da relação do ator com a câmera – e, na maioria das vezes, sua função também de técnico nesses trabalhos de caráter virtual – à busca de uma teatralidade nessas obras, o que se vê são tentativas pulsantes dos artistas de se manterem ativos, apesar da pandemia e de um problema anterior: o desmonte das políticas públicas para a cultura no país. Como em outros momentos históricos, os criadores têm desenvolvido soluções criativas para lidar com as limitações impostas pelo contexto social.

Em entrevista à Continente, Jorge Dubatti reforça que o teatro e a dramaturgia estão em um constante diálogo com os tempos, adaptando-se a eles, sem perder sua essência. Assim, essas obras são permeadas pelos acontecimentos históricos, direta ou indiretamente e, desde já, pode-se observar essas produções artísticas e de conhecimento como documentos do período pandêmico. Ele acredita que o isolamento social explicitou a importância do encontro e da presença para a humanidade, gerando uma ânsia por isso; que a pluralidade de criações é benéfica e que as experiências provenientes da pandemia irão gerar reações às práticas neoliberais, produzindo mudanças macropolíticas e nas micropolíticas da arte.

Apesar dos vários empecilhos (ou talvez justamente por eles), o fato é que há muito tempo não se discutia tanto sobre o teatro e suas questões. Em artigos, podcasts (Dubatti, inclusive, está à frente do El Tiempo y el Teatro, da Radio Nacional Argentina), conferências online, entre outras, muitos têm tentado entender os efeitos dessas criações para o presente e seus possíveis ecos para o futuro. Nesse sentido, o pesquisador reforça a importância da emancipação de artistas e do público a partir de um olhar atento às questões do teatro relacionadas às problemáticas do mundo. Dubatti acredita, assim, que atores e espectadores, fundamentais na realização do fazer teatral, podem ser, também, filósofos do teatro, em uma visão democratizante da arte e do conhecimento.


Espetáculo Parece loucura mas há método, da Armazém Companhia de Teatro, criado na pandemia. Foto: Divulgação

CONTINENTE Com a eclosão da pandemia, os teatros estiveram entre os primeiros espaços a fechar e, sem certezas sobre vacinas ou de previsões efetivas de controle da doença, continuam sem perspectiva de reabertura. Nesse contexto drástico de isolamento social, você enxerga um movimento de revalorização do convívio?
JORGE DUBATTI Depois de mais de 200 dias de quarentena, isolamento e distanciamento social, observo uma reavaliação da cultura de convívio na população argentina e mundial. Não acho que os conglomerados do mercado de tecnologia estejam felizes com isso. Chamo todas as práticas humanas territoriais de encontro com o corpo presente, no espaço físico, na presença física, na materialidade do espaço físico e com a materialidade do corpo físico vivo. O teatro é uma das formas de cultura de convívio, junto com o futebol de campo, a liturgia nos templos, as aulas presenciais nas salas de aula, as saídas a restaurantes e bares, os encontros com amigos, namorados, família, práticas sexuais etc. Oponho o conceito de cultura tecnovivial à cultura convivial, em que as relações humanas se estabelecem por desterritorialização, a distância, “remotas”, por meio de máquinas ou sistemas tecnológicos que permitem a subtração física dos corpos no território. Exemplos de tecnovívio são telecomunicações, cinema, rádio, televisão, redes, escrita, livros, streaming… A cultura acolhedora e a cultura tecnovivial são verdadeiros paradigmas: propõem eventos, experiências, pedagogias, tecnologias e epistemologias (com suas respectivas constelações categóricas) diferentes. Muito diferentes. Existem, é claro, zonas liminares entre o convívio e o tecnovívio, fronteira, passagem, limiar, fronteira, conexão. Nesses mais de 200 dias, houve uma retração brutal da cultura do convívio e um avanço fenomenal da cultura tecnovivial. Os grandes beneficiários foram os portais e as empresas de telecomunicações. Os grandes empobrecidos: todos aqueles que trabalham no convívio e no território. Hoje, podemos tirar algumas conclusões até aqui.

Primeiro: as pessoas começaram a ver, por seu rapto brutal, a importância do convívio em suas vidas. Tornaram-se comuns frases como “Como tenho saudades de comer fora”, ou “Como gostaria de viajar”, ou “Como é ruim morar sozinho”, “Como queria ir ao teatro, à casa dos meus pais”. Há uma reavaliação do convívio que, antes, por tê-lo tão perto e ao nosso dispor, não percebíamos a sua relevância. Como a Carta roubada de Poe: a melhor maneira de esconder algo é colocá-lo à vista de todos. Antes da pandemia, não víamos o convívio porque o gozávamos plenamente, só começamos a ver quando se tornou restrito. A pandemia revelou o poder do convívio em nossas vidas e causou uma reavaliação consequente. Segundo: apesar de seu posto avançado colossal, a tecnossobrevivência falhou em sua tentativa de substituir o convívio. Descobrimos que o tecnovívio pode nos oferecer muitas experiências bonitas, mas não pode substituir as experiências que o convívio nos oferece. Ele tentou e não deu certo. Terceiro: estamos sofrendo em todo o mundo – jovens, velhos, crianças, adultos – uma autêntica síndrome de abstinência social. Quarto: é importante perceber que a força do convívio, da sua necessidade, abriu-se, apesar das restrições: reuniões clandestinas, reuniões com protocolos e o surgimento de novas formas teatrais, como o “teatro das janelas”, “das varandas” , “dos terraços”, “parede” de uma casa à outra, como o “teatro tapial” do titereiro Manu Mansilla e Julia Sigliani, em Lincoln, província de Buenos Aires. Quinto: há uma questão fundamental que destaca as diferenças entre cultura de convívio e cultura tecnovivial. Por que a cultura tecnovivial não foi restringida? Porque não é contagiosa. As reuniões territoriais do corpo atual são contagiosas. É o melhor elogio que lhes podemos fazer: o contágio – como o entende Antonin Artaud, em O teatro e seu duplo – propõe uma zona da experiência humana que vai além da linguagem, que se conecta com a inefabilidade do espaço e da matéria.

CONTINENTE Como a filosofia do teatro pode nos ajudar a entender os efeitos da pandemia no teatro e para as artes em geral?
JORGE DUBATTI A filosofia permite-nos distinguir, da complexidade e do pensamento crítico, a autocrítica, a autorrevisão de um saber que questiona os seus pressupostos, o que diferencia as artes do convívio, o tecnovivial e o limiar entre o convívio e o tecnovívio. Como conhecimento radical, que supera a doxa, a filosofia é a única disciplina que nos protege daquela outra pandemia: os discursos de negócios e de mercado, que distorcem a realidade em favor dos negócios. A filosofia como antídoto para os slogans de mercado, que dizem que uma grande TV é um home theater ou que “Se você tem Netflix, não precisa de mais nada”. A filosofia contra os intelectuais orgânicos do mercado. A filosofia como religação com o passado, que nos livra da loucura do puro presente, da memória do peixe (que só lembra os últimos cinco minutos). A filosofia nos livra do medo de sermos considerados anacrônicos, obsoletos, desconfiados da “velhice”, porque continuamos valorizando a convivência. A filosofia como resistência ao pensamento antiteórico, ao gesto caótico disfarçado de “anarco”, para continuar a fazer negócios, e ao pensamento antiteatral que existe desde Platão e dos padres da Igreja. Felizmente, a filosofia supera este ou aquele filósofo. Nestes meses, na Argentina, os grupos de negócios pareciam dizer que tínhamos que esquecer a cultura do convívio e entrar na “era digital”. A palavra reinventar foi muito usada, muito neoliberal. As pessoas achavam isso uma bobagem e o faziam observando a própria existência, suas experiências, as necessidades de seu corpo que exigiam uma experiência de convívio.

CONTINENTE Você defende o teatro como acontecimento, composto pelo menos por três bases: o convívio, a poiesis e a expectação. Com exceção do convívio, os outros dois elementos podem ser produzidos no tecnovívio? Como classificar essas obras pensadas para os meios digitais e neles executadas?
JORGE DUBATTI Voltemos a uma fórmula que Aristóteles estabelece: gênero próximo e diferença específica (Metafísica, livro X). O que têm de gênero semelhante e o que diferencia as artes do convívio e as do tecnovivio, por exemplo, uma função teatral em território convivial e uma transmissão em fluxo contínuo? Ambas são performáticas. Em ambas há experiência artística, em ambas há performance, há poiesis e espectadores. Mas são experiências e expectativas diferentes. Mauricio Kartun diria, citando David Bohm (A totalidade e a ordem implícita): diferentes caminhos, diversos processos complexos. E quão diferentes! Vamos fazer um inventário apressado, colocando primeiro as artes conviviais e depois as tecnoviviais, separadas por uma barra, esclarecendo que não se trata de polarização, mas apenas exemplos, pois também existem as situações liminares de conexão, nas quais não vou me deter.

Para observar as diferenças específicas, como diria Aristóteles, comparemos: materialidade do corpo físico e espaço/signos físicos, digitalidade e virtualidade; calor de corpos vivos/frieza tátil de dispositivos eletrônicos; presença física/telemática e/ou presença virtual; territorialidade, com diversidades intraterritoriais/desterritorialização, que fornece informações sobre diferentes territórios; proximidade e proximidade/distância e link remoto; independência relativa de tecnologia e máquinas/dependência tecnológica absoluta de equipamentos, máquinas, energia, servidores, empresas e mercado. O convívio e o tecnovívio devem ser politizados, pois, como diz Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem”. Ainda comparando: imersão contagiosa, que favorece a inefabilidade e ilegibilidade/troca linguística verbal e não verbal, que favorece a comunicação; maior organização convivial a partir da experiência que resiste à linguagem/maior organização tecnovivial pela construção da linguagem; políticas do olhar e performances do espectador/política do olhar da câmera.

Nesse contexto, há várias mediações institucionais que modificam a zona de subjetivação, por exemplo: ir a um teatro independente em um bairro de Buenos Aires/pagar a conectividade a Fibertel e Cablevisión; encontros menos controláveis pelos serviços de inteligência/tecnologias fáceis de registrar e arquivar; paradigma da cultura viva, que não pode ser enlatada/paradigma da cultura in vitro, registrável, enlatada; luto, perda, transformação da relação com a morte em cultura viva, teatro dos mortos/ilusão de imortalidade de suportes tecnológicos, que parecem ultrapassar o tempo, como o livro, a gravação e transmissão audiovisual.

Há também diversas formas de trabalhos de memória envolvidas: memória inscrita no instante visto/na durabilidade dos suportes; maior perigo social na proximidade e encontro territorial/menor perigo social na distância e no isolamento; diferentes relações com a história e suas manifestações em acontecimentos, a história do convívio, que começa nas cosmogonias: gênesis bíblica, Popol Vuh etc. /história do tecnovívio, que remonta aos tímpanos, aos sinais de fumaça, a escrever etc; algumas poéticas de atuação convivial/outras poéticas de atuação tecnovivial; ferramentas críticas para a análise de eventos teatrais/outras ferramentas críticas para a análise de eventos tecnoviviais.

As diferentes formas, experiências, eventos, cenários, estão à vista. Eu mantenho um, fascinante: contágio/comunicação. Outro: inefabilidade/comunicação. Em suma, entre as artes conviviais, as artes tecnoviviais e as artes liminais não há identidade, nem campeonato, nem evolucionismo superando um falso darwinismo. Não se trata de destruir um em favor do outro, como o Talibã fez com os Budas de Bamiyan. Além disso, não se relacionam simetricamente: o convívio pode incluir o tecnovívio em sua matriz, enquanto este não pode dar conta da materialidade do espaço e dos corpos físicos, que ele transforma em outra coisa.

CONTINENTE A produção de artes cênicas foi profundamente afetada pela pandemia e os artistas têm, desde então, buscado entender como utilizar os meios virtuais para viabilizar seus trabalhos e sua sobrevivência. Em relação às produções de tecnovívio, quais aspectos mais lhe interessam ou chamam a atenção como pesquisador e crítico? E, nesse sentido, como trabalhar esse olhar para analisar essas obras específicas?
JORGE DUBATTI Amo e gosto de todas as artes: o convívio, o tecnovivial, o limiar entre o convívio e o tecnovívio. Acredito profundamente no pluralismo como opção filosófica, no respeito pela diversidade, no politeísmo. Minha mãe me disse: “Você tem que abrir o paladar”. Eu acredito no convívio, um fenômeno que se expandiu na arte mundial desde pelo menos o período do pós-guerra de 1945. Chamamos isso de destotalização, pluriverso, cânone da multiplicidade. O teatro aprendeu a conviver com o livro, o cinema, o rádio, a televisão, o vídeo, as redes… Acredito na divisão do trabalho e na conexão a partir das singularidades. Mas também acredito na diversidade epistemológica, algo que Samuel Beckett já dizia em 1937, na sua famosa Carta em alemão: “Façamos como o matemático louco que cada cálculo de medição o faça com um sistema diferente”.

Penso sobre pedagogias: os atores devem ser educados para fazer tudo – teatro, cinema, televisão, streaming etc. Mas não me diga que o que eles sabem sobre atuar diante das câmeras os ajuda a trabalhar em uma sala com 2.500 espectadores em convívio, onde devem ser ouvidos até a última fileira, e vice-versa. Atuar em bar e na quadra de San Lorenzo não é a mesma coisa; filmar, gravar para televisão ou participar de encontros via Zoom não são a mesma coisa: envolvem estratégias, habilidades, treinamento, recursos, segredos, horas de prática. Onde você aprende a agir no convívio, senão no convívio? Você pode aprender ou ensinar a nadar sem água? Você pode ensinar ou aprender a nadar em águas abertas apenas nadando em uma piscina olímpica? Como você aprende ou ensina a fazer massagem sem tocar o corpo do outro? Penso o mesmo dos espectadores na Escolas de Espectadores: temos que treiná-los para que possam desfrutar de uma pluralidade de práticas, mas de forma alguma dizer a eles que é tudo igual. No pluralismo, o teatro define sua diferença e, em sua singularidade convivial, corporal, territorial, é oferecido como um tesouro cultural da humanidade que não substitui as artes tecnoviviais.


A Escola de Espectadores foi criada em 2001, na Argentina. Hoje, são 47, em diversos países. Foto: Divulgação

CONTINENTE Na sua opinião, a popularização e a facilidade do acesso a essas produções através da internet devem criar, também, um novo público ao teatro ou talvez um fortalecimento da cultura teatral? Ou é circunscrito à experiência deste evento histórico?
JORGE DUBATTI A internet é uma forma de televisão, ou vídeo, ou cinema, das telecomunicações, não tem cenário teatral. Em todo caso, estamos assistindo a vídeos de teatro, mas não vivenciamos a experiência teatral. É ingênuo dizer que o teatro assumiu o Youtube, ocorreu o contrário. Lembre-se das teorias de Iurij Lotman sobre sistemas de modelagem secundária: telecomunicações são um sistema de modelagem secundária que transforma tudo o que tocam em telecomunicações. Voltemos a McLuhan: “O meio é a mensagem”.

CONTINENTE Em 2001, você fundou a Escola de Espectadores na Argentina e inspirou iniciativas semelhantes em outros locais. Ao longo da trajetória do projeto, como observa os frutos gerados por essa formação do olhar dos espectadores para a cena teatral de Buenos Aires?
JORGE DUBATTI Hoje, somos 47 escolas em vários países: Costa Rica, França, Uruguai, México, Brasil, Espanha, Polônia, Colômbia, Bolívia, República Dominicana, Venezuela etc. Montamos a Rede Internacional de Escolas de Espectadores, a Rediee, para trocar experiências, conhecimentos, problemas, aportes teóricos. Acho que ignoramos os espectadores por séculos. Sabemos muito mais sobre as ofertas teatrais do que sobre as demandas. Estamos redescobrindo o poder, a força dos espectadores, e os reivindicando como sujeitos de direitos. No ano passado fundamos a primeira Associação Argentina de Espectadores de Teatro e Artes Cênicas (Aetae), que já tem personalidade jurídica reconhecida pelo Estado argentino. Historicamente, um espectador é muito mais do que a palavra espectador significa etimologicamente.

Hoje, os espectadores são agentes fundamentais do acontecimento teatral, empoderados, com grande iniciativa: espectadores-criadores, espectadores-críticos, espectadores-dirigentes, espectadores-filósofos. Em Buenos Aires, acontecem espetáculos sem crítica da grande mídia e cheios de espectadores, e outros, com grande crítica e publicidade, vazios. Isso é boca a boca, recomendação em blogs, redes, Twitter, Facebook, Youtube… Espectadores geram movimento de público. Escolas de espectadores educam mais em atitude do que em conteúdo. Nenhuma escola diz aos espectadores o que pensar, sentir ou valorizar. Treinar o público em uma atitude de respeito pelo teatro: simpatia, abertura, aceitação da diversidade, disponibilidade, hospitalidade, camaradagem etc. Se o teatro é o outro, a Escola dos Espectadores forma uma ética da alteridade, da escuta do outro, do diálogo, como diz Emmanuel Levinas. Problematizamos a ética dos espectadores a partir da discussão de modelos e contra modelos. Na Escola de Espectadores de Buenos Aires, tenho 340 alunos e uma lista de espera de 1.500 que querem ingressar. Quando recomendamos um espetáculo, já são 340 ingressos vendidos (o que favorece os artistas), e, se gostarem da obra, reproduzem em 10 x 1: são 3.400 novas recomendações.

Por outro lado, as escolas estimulam a frequência, a familiaridade com o teatro: segundo nossas pesquisas, os espectadores que vão a espaços como escolas ou salas de aula ou rodas passam a ir ao teatro com muito mais frequência. Tenho casos em que alunos, no meio do ano, me contam que já viram mais de 100 trabalhos. Ótimo. Isso ajuda o campo teatral. Muitos dos meus alunos da Escola de Espectadores de Buenos Aires começam a estudar dramaturgia, a desenhar figurinos, a atuar, tornam-se produtores, abrem teatros… E os artistas que vêm dialogar com eles são fascinados por ouvir o que os espetáculos produziram para eles.

CONTINENTE Você usa o termo teatro dos mortos para falar da tendência de temáticas e poéticas presentes nos trabalhos produzidos na Argentina após a ditadura militar (Dubatti iniciou suas pesquisas nesse recorte, mas ao longo dos anos estendeu o conceito para toda a história do teatro). Crê que a pandemia e a impossibilidade do convívio ao longo da maior parte deste ano também vão criar uma poética específica, com temáticas relacionadas à memória, à privação da presença, ao medo (da doença, do outro) etc., como já parecem sugerir algumas obras produzidas para a internet?
JORGE DUBATTI Definitivamente! Ainda não percebemos o que nos aconteceu, o que sofremos. Quando eu puder voltar para a sala onde faço a programação teatral no centro de Buenos Aires, o Centro Cultural de Cooperação, acho que vou passar o dia todo chorando. Teremos que elaborar poeticamente o que aconteceu, suas causas, suas consequências. Não sei se já estamos em posição de o fazer. Sem dúvida, no pluralismo, novas formas conviviais, tecnoviviais e liminares irão emergir. Estamos esperando que elas apareçam. Por outro lado, aprendemos que temos que nos encontrar, criar espaços para pensar sobre o que nos aconteceu, rever os problemas que tivemos, ler atentamente nossas anotações em nossos “diários da peste” para desenhar políticas que nos permitam ter visão e contenção para o futuro. Pensar a nossa práxis (não só atuante ou dramatúrgica ou dirigente, mas também crítica, gerencial, docente, expectante etc.) a partir de uma filosofia da práxis, do acontecimento, no/do/para/pelo acontecimento teatral. Para realizar um grande congresso mundial, internacional, regional e nacional de artistas do teatro sobre a peste.

Imaginar coletivamente estratégias para combater a precariedade e dar trabalho, seja para estrear, publicar, editar, ensinar, circular pelas escolas, pela mídia, pela formação de espectadores, pela web, pelos tours. Precisamos projetar um seguro social, como o dos “intermitentes” na França, ou um fundo de reserva comum, que forneça apoio nos momentos em que não há trabalho. Cobertura de aposentadoria para maiores de 65 anos com histórico comprovado. Precisamos de maior capacidade de articulação coletiva, de mais imaginação na construção de redes nacionais e internacionais. Capacidade para ações concretas de solidariedade, como as realizadas na Argentina pelo grupo Artistas Solidários, Attra (da Costa Atlântica), Teatrantes (Patagônia), PIT (Professores Independentes de Teatro) com distribuição de sacolinhas de alimentos. Estratégias coletivas para tornar o setor mais visível na sociedade, cursos de treinamento para se capacitar no uso da web. Essa experiência nos ensina a antecipar.

O teatro e a dramaturgia estão em um continuum com o mundo: o mundo muda, os eventos teatrais mudam. Porosidade, liminaridade, derivas, simbiose, híbridos, cruzamentos. Gosto de imaginar que haverá mudanças macropolíticas (os grandes discursos de representação social e comunitária), que o mundo aprenderá com essa pandemia e modificará muitas coisas fundamentais que o neoliberalismo não abordou: haverá maior presença do Estado na organização nacional e internacional, maior investimento no desenvolvimento científico, maior investimento na saúde, maior busca pela igualdade social e igual acesso à saúde, maior respeito à natureza, menor concentração de riquezas e maior distribuição, menor culto ao individualismo e maiores laços de solidariedade, ou seja, mudanças relevantes nas macropolíticas. Ou nada aprenderá a Humanidade com esta experiência terrível, uma praga gerada pelo Édipo neoliberal? Se há mudanças macropolíticas, muda o diálogo e a interação da micropolítica da arte (o teatro como fundamento de territórios de subjetividade alternativa) com a macropolítica – algo que se vê, muito palpável, na Argentina desde o último 10 de dezembro de 2019 com o governo de Alberto Fernández.

CONTINENTE As discussões sobre teatro, diante do contexto atual, parecem ter ganhado fôlego, em palestras online, artigos e nos próprios questionamentos dos artistas. Como um estudioso que sempre estimulou essa troca de conhecimentos e incentivou a produção de conhecimento de teatro latino-americano, territorializada, tem percebido o fortalecimento e criação dessas redes intelectuais durante a pandemia?
JORGE DUBATTI Definitivamente. Nesse sentido, nos capacitamos com uma grande ferramenta universitária, cultural, política, jornalística e de comunicação. Mas sinto ao mesmo tempo, com o tecnovival, que não basta. Descobri dando aulas digitais e virtuais: a mesma relação de produção de conhecimento não se cria de forma tecnovival e, sim, de convivência. Os hábitos de descontinuidade são perdidos e as práticas de continuidade são inseridas onde tudo parece ser um continuum. De Zoom a Zoom. As disciplinas que ensino tiveram seu conteúdo reduzido e os exames finais digitais foram decepcionantes: adiamentos.

CONTINENTE Como imagina a volta ao teatro? Crê que, a partir de agora, teremos outra percepção sobre a experiência do convívio e que as tecnologias digitais serão mais amplamente incorporadas à cena, mesmo no teatro presencial?
JORGE DUBATTI Sem dúvida. Esperamos pela vacina. Acho que vamos comemorar o retorno aos convívios, não só aos teatrais. E vamos valorizá-los mais do que antes. O convívio, a territorialidade, o corpo a corpo, as viagens, em sua infinita multiplicidade de formas, são uma das dimensões mais maravilhosas da existência humana. Aí vamos aproveitar muito mais, tanto as artes do convívio, as artes tecnovivais e as artes liminares em sua proliferação de multiplicidade, quando não tivermos mais restrições.

MÁRCIO BASTOS, jornalista.

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