Crítica

O verdadeiro chão de Mateus Aleluia

Uma audição atenta de Olorum, terceiro disco solo do mestre musical da afro-baianidade

TEXTO ANDRÉ CAPILÉ E GUILHERME GONTIJO FLORES

02 de Setembro de 2020

'Olorum', terceiro álbum solo e primeiro todo autoral de Aleluia, foi produzido por Ronaldo Evangelista

'Olorum', terceiro álbum solo e primeiro todo autoral de Aleluia, foi produzido por Ronaldo Evangelista

FOTO PAOLA ALFAMOR/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 237 | setembro de 2020]

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Olorum, na cultura iorubá, é a divindade que criou a si mesma, que de si produziu os orixás que dariam origem ao céu (orum) e ao mundo em que vivemos (aiê), sendo ele próprio apartado dos humanos, desvinculado dos dilemas pequenos da criação, simbolizando uma estaticidade transcendental.

É o nome do novo disco de Mateus Aleluia, esse verdadeiro mestre musical da africanidade baiana, nascido na cidade de Cachoeira, em 1943, e que agora chega aos 77 anos. Membro do celebrado grupo Os Tincoãs, Aleluia fez sucesso nos anos 1960 a 1980, até se mudar para Angola em 1983, onde ficou a trabalho do governo angolano fazendo pesquisas culturais até 2002, quando voltou ao Brasil. Por isso, talvez, tenha gravado antes apenas dois álbuns solo: Cinco sentidos, de 2010, e Fogueira doce, de 2017, ambos com uma potência de composição, letra e performance que se fazem na sutileza de um verdadeiro canto de louvor e amor.

Olorum continua esse legado, porém, se nos dois primeiros álbuns Aleluia parecia cantar intimamente, ecoando macio os tambores e gingados fortes de Os Tincoãs no violão, na voz e nos arranjos sofisticados, agora, ele retorna em grande parte à fusão do passado, mas com uma maturidade e uma força religiosa e política que o marcam como figura incontornável. Nesse sentido, o novo álbum é de fato mais ambicioso, mostra um projeto musical, letrístico e conceitual ainda mais unitário, de modo a demandar uma escuta atenta de cabo a rabo. A primeira canção, também intitulada Olorum, é, sem meias palavras, assombrosa. Vejamos a letra: 

Olorum,
sai do seu reino e vem nos ver.
Olorum,
seu povo está cansado (de sofrer). 

Andei céu, terra e mar a procurar meu bisavô;
quando saí pra viajar, mamãe chorou;
pois minha família se perdeu na escravidão:
em cada humano que eu encontrar, vejo um irmão.
E de joelhos eu peço: [repete] 

Os poucos versos, entoados na abertura em voz plena e limpa com o calço do violão dedilhado, segue sob o incremento da base rítmica do ijexá, toque comum dos afoxés, enquanto a harmonia das cordas ganha, simultaneamente, impulso percussivo na batida em síncope da mão direita. O canto é um apelo à divindade mais distante, mais grandiosa, é um canto de lamento coletivo, porém indicado em quatro versos de uma história específica.

Um jovem que busca origens e descaminhos do bisavô (podemos imaginar o movimento de muitos afro-americanos que buscam suas terras de origem na África), que é singularmente privada de detalhes que a ancorem demais. Assim, a busca específica da ancestralidade é a busca coletiva de libertação e, Aleluia conclui, só pode se dar pelo reconhecimento do humano nas diferenças, independente de credo, gênero e cor.

A estruturação da letra, conforme grafada e cantada, mostra uma consciência tremenda de Aleluia que, nesse disco, assina a autoria em todas as canções. Assiste-se ao arranjo de rimas internalizadas entre “mar”, “viajar” e “encontrar” assumindo, desde aí, a dispersão violenta da ancestralidade parental no trânsito infenso da diáspora indesejada. A temporalidade indefinida de “quando” abre as zonas de assonância como tema vocálico, que vão se espalhar por todo quadro de sons nasais (como se ouve em “mamãe”, “escravidão”, “humano” e “irmão”) ilhando a sentença “minha família se perdeu” com um som fechado que só vai ser retomado em “joelhos”, o que, então, abre para o clamor (“peço”) e o retorno do refrão, fazendo com que não só a busca, mas também o divino seja uma força de presença entre os sobreviventes na terra.

Esse é um verdadeiro Atlântico negro em movimento, sem pretensão a noções de origem única ou a pureza idealizada: Aleluia compreende no corpo e no canto que a ancestralidade é uma experiência do presente vivo, e não de um passado perdido. Isso se dá nos vários embalos e modos que o disco assume, por vezes quase flertando com o gospel, como em Samba-oração, ou com musicalidades nordestinas azeitadas em créole, como em Canta sabiá, ou mesmo com ritmos mais comuns nas Antilhas, como em Nganga Njila, que comentaremos mais adiante. 

Porém, o disco tem um movimento muito próprio: em vez de seguir a série tradicional dos cultos, começando por Exu, depois Ogum, Oxóssi etc., Aleluia prepara a sua própria disposição de experiências religiosas e mundanas, cantando também o amor, a comida, a dança, a festa. Na segunda canção, Kawô Kabiyesilê, logo após a súplica inicial a Olorum, temos um verdadeiro oriqui, ou seja, um hino de louvor, que pode ser cantado aos orixás, na cultura iorubana, mas também a lugares e pessoas, em geral feito com uma lista por vezes longa de atributos, poderes e ações. Este é dedicado a Xangô, orixá iorubano do raio e da justiça, dono do oxé, o machado de dois gumes. O canto começa com o epíteto em iorubá que dá nome à peça, que tem o sentido livre de “contemplem quem sabe a resposta de tudo na terra”; Xangô, entre iorubanos, é ao mesmo tempo um orixá e uma figura histórica, arcaico rei da cidade de Oió, atributo também levantado.

No entanto, logo em meio a esse quase-oriqui, vamos migrando: o orixá torna-se Nzaji (ou Nzazi) o inquice da cultura banta de Angola e Congo que costuma ser vinculado a Xangô, para logo depois ser também Sogbô, o vodum da nação fon, vinculado aos axantes e aos ritos de origem em Daomé e Benim. Mais importante ainda, os axantes foram muitas vezes ligados à cultura muçulmana, como os malês no Brasil. Esse movimento intercultural que performa um rastro de convívios e trocas no Atlântico Sul entre África e América se desdobra também na mudança entre o canto de epítetos em iorubá para um final em português; como em outros momentos da carreira de Aleluia, as canções permitem o convívio de línguas, num movimento contínuo que está mais para o complemento do que para a autotradução.

Nesse movimento temos, então, não a presença purista de apenas uma nação africana, muito menos o registro exclusivo do que está presente no candomblé brasileiro, mas, sim, um cruzamento de linhas que são de origens e práticas diversas. Esse sincretismo, que poderia ser criticado por alguns, aqui parece ter uma função maior de promover o convívio das diferenças enquanto diferenças; nesse sentido, o ancestral e orixá Xangô pode e pode não ser também Nzaji e Sogbô, pode e pode não estar em outras línguas: afinal, além de divindade da justiça, ele é aquele que conhece as respostas; o título e epíteto o aproximam de uma experiência vasta de divindade e espiritualidade.


Emblema, 1979, Rubem Valentim, 0,50 X 0,35CM, tinta
acrílica sobre tela. Brasília, 1979. Imagem
: Sergio Guerini

A precisão do trabalho musical de Aleluia, ao fim, é que garante um ancoramento que evita o vale-tudo: ao fim do canto, temos um toque apenas percussivo, que é o alujá, tipicamente usado para invocar Xangô. Assim, o movimento tem sua expansão e retorno à ancestralidade de práticas vivas no presente, com sua especificidade preservada.

Algo similar pode ser encontrado em outras peças, como em Filho de rei, na qual o poeta, ao cantar um “canto de libertação”, de quem sabe ouvir o seu avô, se anuncia como ilê do malê, o que poderia vincular mais fortemente o canto aos cultos islâmicos em África e América, adotados por parte da população negra. A afirmação de ser ilê do malê, no entanto, não entra em contradição com o apelo inicial a Olorum, nem com o pan-africanismo em torno de Xangô. O que vemos, então, é a multiplicidade de modos de vida que vão se organizando em torno da experiência da espiritualidade e da ancestralidade, bem como da demanda do canto e da dança como experiências religiosas e até místicas, ao mesmo tempo em que assumem forte impacto social nas lutas por justiça.

Tais características são basilares na dinâmica estrutural do álbum, que é muito do bem-amarrado, feito patuá a ser carregado no peito, conforme movimento aludido por todo o texto, e que nos entrega uma sensação constante da presença de ritornelos sacados de cada microcélula rítmica incorporada. Se ouvimos, antes, o alujá, agora, em Filho de rei, na sua abertura, as componentes percutidas do hi-hat, marcando feito passo contado do gan, convoca uma espécie de agabi (ou adabi, conforme outras orientações), também um toque específico das convenções nagô do candomblé de Queto, e, mais à frente na faixa, é incorporado um novo jogo de alternância dos batuques que nos carregam às outras presenças de memória incrustada no caldo geral da música brasileira, por meio de armações dos arranjos que nos remetem ao jongo e aos maculelês. A orquestração dos tambores, junto da voz e letra de Aleluia, cumprem suas formas e temas de modo urdido, teso, precioso e certeiro.

E talvez o ponto crucial esteja na última canção, com um experimento um pouco mais radical já a partir do título: Kyriê! Epa Babá…, assim com reticências que sugerem um desdobramento rumo ao imprevisto. Kyrie, a partir da missa católica cantada em grego, é o vocativo grego com o sentido de “Senhor”, para cantar a deus, em geral seguido de eleyson, tradicionalmente traduzido como “tende piedade de nós”. Ao canto cristão de origem medieval logo é somado o Epa Babá, saudação ao orixá Oxalá, senhor do alá (tradicional pano branco), e concebido como criador do mundo conhecido a partir das decisões de Olorum, numa vinculação com o Deus hebraico do Gênesis.

Por outro lado, quando tudo parece ser talvez excessivamente elevado e transcendental, temos contrapontos absolutamente singulares. Tomemos Nganga Njila, uma designação que pode nos servir como saudação ao inquice do movimento e da comunicação, algo que poderíamos traduzir como “senhor dos caminhos”, muitas vezes aproximado do Exu da matriz iorubana. Porém, ao ouvirmos a letra, estamos longe de um canto de louvor à divindade: 

Pensaste, pensou,
eu ainda amordaçado,
mas hoje eu vou cantar.

Pensaste, pensou,
eu cabreiro e parado,
mas hoje vou dançar.

Se eu penso o que canto,
foi o pai quem me mandou;
se me movo e danço,
foi o filho que dançou. 

Olha que sou
filho do canto e da dança,
isso me lembra Senghor,
quando piso esse chão que revigora,
verdadeiro chão que sou. 

Soyo, M’Banza Kongo, Cabinda.
Eu sou Nganga Njila.

Se a vaca vai pro brejo,
eu me jogo no mar.
A barca virou.
dois-dois vai nadar

Ora, o canto aponta para a experiência muitíssimo humana das migrações e da possibilidade do rito com canto e dança como libertação, do “amordaçado”, “cabreiro e parado” ao movimento. Por isso, aqui a ancoragem cria uma geografia: Soyo, M’Banza Kongo e Cabinda são três regiões de Angola, país onde Aleluia viveu por quase 20 anos.

Porém, como o jogo é jogado, a dança é dançada nas bordas de muitos sentidos nas tranças sonoras mixadas das travessias. A participação de Lenna Bahule, cantora moçambicana oriunda de Maputo, cria desenhos harmônicos com a voz, junto de Mateus Aleluia, ao longo da canção que, por sua vez, elabora um diálogo inusitado entre matrizes populares das músicas africana, caribenha e brasileira, intrometendo uma função brincante dos jogos de pergunta e resposta das cantigas de roda, notadas, principalmente, no último lance da letra.


Emblema - Logotipo - Poético, Rubem Valentim, 0,50 X 0,35 cm,
tela acrílica. Brasília, 1975. Imagem: Sergio Guerini

O balanço do mar, na canção, tensiona a história do sequestro escravagista, revisada numa espécie de intertextualidade com cantorias de infância. A expressão, quase proverbial, “a vaca foi pro brejo”, mais a alusão à “canoa virou” são pistas da brincadeira, corroborada pela presença de “dois-dois”, modo comum de identificação de Ibeji, divindade gêmea da vida para os nagôs e, costumeiramente, confundida com erês.

Quando canta “Eu sou Nganga Njila”, Aleluia se assume humanamente como um senhor dos caminhos, embora sem transfigurar-se como estatuto do divino, a partir de sua própria vida. Reforçando o que se delineia ao longo do texto, conforme a letra é grafada, encontra-se uma referência a Léopold Sédar Senghor, escritor senegalês que foi presidente em seu país, estabelecendo mais uma conversa de saberes, quando diz: “Olha que sou/ filho do canto e da dança,/ isso me lembra Senghor,/ quando piso esse chão que revigora,/ verdadeiro chão que sou”, citando indiretamente os versos de Oração às máscaras: “Nous sommes les hommes de la danse, dont les pieds/ reprennent vigueur en frappant le sol dur” [Nós somos os homens da dança, cujos pés/ recuperam a força ao bater o chão duro]; porém seu saber está precisamente em saber a hora de se jogar ao mar (indo ou voltando de África, agora longe dos navios negreiros), apostando o nado na calunga do mar.

Uma das correntes da usinagem textual, na massa dura de temas que Aleluia aporta em Olorum, comparece quase que de modo sistemático, entre idas e vindas, em conformidade com a estruturação rítmico-sonora já aludida em seus módulos de ritornelo, a sobrecarga dos signos da ancestralidade, muita vez dita sob a rótula girada da perda e, por conseguinte, da saudade. A audição de Canta sabiá dispara uma série de referências que orbitam o imaginário poético brasileiro e, por vias ampliadas, aciona outras tradições, tanto religiosas quanto da música popular angolana.

O primeiro efeito referencial do tópos da saudade, da perda e do sentimento de desterro, dá-se com a presença espectral da Canção do exílio, de Gonçalves Dias, o poema sem adjetivos que construiu (e depois foi parodiado à exaustão) certa ideia de pertencimento ao chão pátrio a partir do canto do sabiá. Mais avançado no tempo, já nas sendas do cancioneiro, o repertório é engrossado com Luiz Gonzaga, posteriormente também interpretada por Elba Ramalho:

A todo mundo eu dou psiu (Psiu, psiu, psiu)
Perguntando por meu bem (Psiu, psiu, psiu)
Tendo o coração vazio
Vivo assim a dar psiu
Sabiá vem cá também (Psiu, psiu, psiu) 

Tu que andas pelo mundo (Sabiá)
Tu que tanto já voou (Sabiá)
Tu que fala aos passarinhos (Sabiá)
Alivia minha dor (Sabiá)

Tem pena d’eu (Sabiá)
Diz por favor (Sabiá)
Tu que tanto ando no mundo (Sabiá)
Onde anda o meu amor, sabiá?

Duas funções interessam mais diretamente, em relação à canção de Aleluia, que é a incidência da pergunta feita ao pássaro, bem como a figura da errância e, claro, a imaginação amorosa do abandono. Em seguida pode-se lembrar, ainda, da Sabiá de Tom Jobim e Chico Buarque, célebre música, recebida em viva vaia no III Festival da Canção de 68, carregada de um certo tom premonitório do que viria ocorrer pós AI-5 no Brasil. Um pequeno trecho, como amostra: 

Vou voltar
Sei que ainda vou, vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar uma sabiá
O meu sabiá 

Um pequeno jogo é estabelecido, nas dinâmicas de gênero na nomeação da ave, que teria gerado certo ruído na composição, entre Chico & Tom. O primeiro insistindo numa língua caçadora, de sertanejo, apontando em feminino, enquanto o segundo jogava a teima em manter masculino o termo. Daí “cantar uma sabiá”, para um, e “o meu sabiá”, para outro. A revisão de Gonçalves Dias, como dito, parodiado à exaustão, encontra um termo sofisticado de discussão sobre a pátria, dando a imagem em negativo de fotografia, em seu osso de desterramento.

Outras aparições são possíveis, como a canção de Roberta Miranda, em que a ave aparece em toda sua majestade e, de modo surpreendente até, arrola a figura do caçador Oxóssi em sua execução, o que é uma grande sacada, dado que, embora a sabiá não seja uma ave utilizada ritualmente no campo simbólico do candomblé brasileiro, é reconhecida pela beleza de seu canto e a divindade da fartura é, justamente, o patrono dos cantores e tocadores religiosos. Finalmente, e antes que se torne um tratado ornitólogo do canto, Aleluia e a sua Canta sabiá: 

Canta sabiá
E traz notícia do monami
Canta sabiá
Monami que está por lá
Canta sabiá
Essa saudade me consome
Canta sabiá
Saudade pode me matar
Canta sabiá
E traz notícia do monami, pai
Canta sabiá
Monami que está por lá
Canta sabiá
Essa tristeza me consome
Sabiá
Distância pode me matar 

Embora tentando dar conta de uma genealogia, ainda que apressada, do lugar do pássaro no imaginário poético e do cancioneiro no Brasil, parte considerável dos comentários acima arrolados dão cabo da visada detida sobre a letra de Mateus Aleluia, como se este reunisse, em modo conciso, os elementos imaginados e entregasse asa ao vento da canção. Contudo, o campo de referenciação não termina na sabiá, dado o termo estrangeiro monami que, originário do quimbundo, quer dizer: “meu filho”. O circuito ancestral parental, mais uma vez, como por muitos dos vãos do álbum, nos aterra na disposição do pensamento afro-diaspórico e, na tangência, recupera, com o termo, a canção Mona ami de Liceu Vieira Dias, criador do N’gola Ritmos, cantada em 1947 por Lourdes Van-Dúnem. O grupo compunha, também como mote de resistência política, em quimbundo; portanto, tome-se a letra, original e a tradução livre (postada de modo anônimo no site Genius):

Talenu ngó! O kituxi ki ngabange?
Talenu ngó! Maka mami ma jingongo!
Ngexile kyá ni an’ami kiyadi.
Nzambi k’andalê. Ngaxala ni umoxi. 

Ngibanga kyebyê?! Ngaxala ngoê ni umoxi!
Ngibanga kyebi? O kituxi ki ngabangyê?!
Mona wambote wajimbirila.
Ngidila ngoê! Ngibanza ngoê! Ay, mon’ami! 


Capa de Olorum, terceiro disco solo de Mateus Aleluia,
produzido por Ronaldo Evangelista. Foto: Reprodução


Ainda, nessa persona do movimento humano, podemos ouvir a linda canção de amor perdido Pimenta mumuíla, que evoca as mulheres mumuílas que vivem na província de Huíla, ao sul de Angola, que tradicionalmente andam com os seios à mostra, exibindo colares complexos, coloridíssimos, cuidando de gado numa das regiões mais áridas do planeta. Cabe ainda lembrar que, habitualmente, em alguns rituais e festas, as mulheres pintam-se com tacula, uma tintura vermelha, como o urucum, ficando, justamente, à feição das pimentas:

[…]
Que pena (que pena),
Pimenta Mumuíla você tem que me entender,
mas devo lhe dizer que nosso amor não vale a pena

Mumuíla, sentimento me picou
e ardeu que nem pimenta;
amar do jeito adolescente que eu amei,
uma emoção tão forte me tomou e me sustenta.

É duro admitir que eu perdi,
mas valeu a pena;
pois me alegro ter saboreado o amor
e a perfumada flor Mumuíla que me acalenta

[…]

Aqui o canto amoroso é simultaneamente de fim e de celebração do vivido, sem a recusa do passado para abrir-se ao futuro. É o paradoxo de que “valeu a pena”, mas já “não vale a pena”, “e ardeu que nem pimenta”: a flor permanece no presente, como perfume; tal como uma ancestralidade, é um senhor dos caminhos que precisa se mover incessantemente, na música, no canto, na dança, assumindo a condição de todo humano irmão.

Este é, afinal, um álbum de vida, um canto de quem canta o “verdadeiro chão que sou” com a força de uma verdade incontornável. O que Mateus Aleluia quer com Olorum não é pouco: cruzar culturas que vão dos judeus arcaicos, passando por cristãos, muçulmanos e nações africanas com suas forças vivas dentro e fora do Brasil. 

ANDRÉ CAPILÉ, poeta, tradutor e professor na UniFOA. Autor de rapace, balaio, muimbu, paratexto, chabu e rebute. É tradutor do livro Não digam que estamos mortos, de Danez Smith, que a Bazar do Tempo lança neste setembro.

GUILHERME GONTIJO FLORES, poeta, tradutor e professor na UFPR. Autor de carvão :: capim e História de Joia. Publicou traduções de Robert Burton, Propércio, Milton, Safo entre outros. É coeditor da revista e blog escamandro e membro da banda Pecora Loca.

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