Por vezes tento me lembrar a sensação que foi me deparar pela primeira vez com discussões acerca de assuntos “tabus”. Acho importante praticar tal exercício, tanto para pensar em como abordá-los de forma atrativa e didática através dos meus projetos quanto para criar um ambiente aberto para discussões saudáveis.
Para quem já está familiarizado com o assunto que é debatido, se fazem óbvias as argumentações. Mas, para quem está recebendo aquela informação pela primeira vez, quase sempre é um susto, uma onda contra todos os pensamentos, regras e ideias que a sociedade estrutura em nossas cabeças desde que nascemos. Lidar com essa onda é, por vezes, dolorido, atinge pontos que mexem com tudo que acreditamos ser certo até então; mas além de discussões saudáveis, acredito que o tempo é também um fator importante neste processo de desconstrução e ressignificação de ideias.
A questão da depilação sempre foi uma pulga atrás da orelha pra mim. Por volta dos meus 10 anos, nas aulas de balé, amigas já exibiam as axilas lisinhas, que haviam depilado com cera em alguma clínica que a mãe havia levado. Lembro olhar e pensar: “Mas pra que isso? Será que não dói?”. Bom, quando chegou a minha vez, que foi apenas aos 15 anos (minha mãe não me deixou depilar as pernas antes disso), descobri que, sim, doía e doía muito. Ficava tensa e sentia suor no corpo inteiro de apreensão. As idas à clínica de estética eram escassas – não era sempre que eu tinha coragem de passar por aquele ritual. Dessa forma, optei pela gilete para me ajudar no processo, mas ela nunca foi uma amiga. Quase sempre me cortava, mesmo usando sabonetes especiais para a prática – até um tipo de “espuma de barbear” para mulheres eu cheguei a comprar. Com tudo isso, automaticamente defini que minha pele era sensível e não havia muito o que ser feito.
Marcela Guimarães, em autorretrato
Através de conversas que tive com diversas mulheres sobre o assunto da depilação para meu projeto fotográfico Mulheres Adultas têm Pelos, todas me afirmaram o mesmo: “Minha pele é muito sensível, tenho alergia à gilete”. A ideia do projeto surgiu, principalmente, da minha curiosidade em saber como o assunto da depilação reverberava para outras mulheres. Pessoalmente, já estava no processo de deixar os pelos crescerem um pouco mais, às vezes, para ver como eu me sentia com isso, como as pessoas ao meu redor reagiam. Através das redes sociais, busquei amigas e amigas de amigas que estavam no mesmo processo que eu, topavam ter essa conversa e serem fotografadas. A abordagem era bem tranquila: eu ia até a casa dessas mulheres, conversávamos um tempo sobre o assunto e depois fazíamos as fotos. Mesmo sendo a primeira vez de várias sendo fotografadas, todas foram super abertas e receptivas comigo e com o projeto.
E assim foi ao longo de um ano e meio, tempo que levei para fotografar 14 mulheres. Como é um projeto pessoal e feito nas minhas horas vagas, várias coisas atravessaram o processo de criação: um término de relacionamento, mudança do interior para a capital, adaptação a uma rotina completamente diferente da que eu estava acostumada, contato com pessoas e visões de mundo novas. O projeto amadureceu junto comigo e deixei ele levar o tempo que era preciso para ser colocado no mundo.
Por sempre tratar e olhar com muito amor para ele – apesar de, às vezes, perder um pouco as esperanças –, acredito que é mesmo este o caminho que escolhi para falar sobre o assunto “tabu” da depilação. “Mas como se fala através do amor sobre isso?”. Por amor podemos entender também acolhimento. Pessoalmente, essa é a principal forma que procuro lidar com as questões externas que chegam até mim e sinto dificuldade em digerir por completo, em um primeiro momento. Eu abro espaço e deixo ali o tempo que for preciso para entender o que exatamente me causou o conflito.
Nas conversas que tive com essas várias mulheres enquanto fotografava para o zine, percebi que o processo de aceitação dos pelos não é algo linear, e que acontece de forma gradual para cada parte do corpo também. Algumas mulheres se sentem bem com a presença de pelos na axila e virilha, mas preferem tirar os das pernas. Algumas lidam bem com os pelos na maior parte do corpo, mas continuam a tirar a sobrancelha, por exemplo. “A axila eu tiro sempre, mas acabei deixando porque você falou de fazer as fotos, aí falei ‘Bom, vamos ver então como é ter’. Porque, na real, na axila me incomoda um pouco, mas sei que é pressão social, estética, é uma desconstrução que eu ainda não cheguei lá”, disse Jéssica Alonso, no zine Mulheres Adultas têm Pelos.
Capa da primeira edição da publicação, lançada em 2019
Tem ainda as mulheres que não se incomodam com a presença dos pelos, mas se sentem bem também quando tiram. “Quando eu tiver a oportunidade, penso em fazer depilação a laser (...) Mas enquanto não posso fazer, eles (pelos) ficarão aí e eu tô de boa com isso”, contou Bianca Brandão no zine.
Para Fernanda Mozer, o questionamento sobre a depilação surgiu a partir de alguns outros que ela já estava fazendo para si: “Com a discussão que teve do coletor e do anticoncepcional, me veio muito sobre questionar ‘o que é o meu corpo?’, o que é esse contato que eu tenho com o meu corpo, quando os meus pelos crescem, como eles são (...) não nos permitem conhecer o nosso corpo. A gente está sempre podando ele de várias formas. Você tem a primeira menstruação, já começa a tomar anticoncepcional. Aparece um pelo, você já tira ele”, contou, no zine Mulheres Adultas têm Pelos.
A verdade é que esse assunto está presente nas nossas vidas desde a infância. A primeira pergunta que eu fazia para essas mulheres era “Qual é a primeira lembrança que vem à sua mente quando pensa nesse assunto?”. Me surpreendi bastante com algumas respostas, mas aqui destaco duas situações que Amanda Buttler passou e relatou para o projeto: “Quando eu tinha 6 anos, um menino da escola disse que eu tinha muitos pelos no braço (a parte de cima do braço), que eu parecia menino. Eu cheguei em casa e raspei tudo com a gilete, sozinha”. “Uma vez eu raspei a sobrancelha inteira acidentalmente. Eu tinha 12 anos. Me tranquei no banheiro e comecei a tirar com a pinça, mas achei muito dolorido, aí fui direto com a gilete mesmo. Quando vi, sem querer eu tinha tirado ela quase inteira.”
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Mas como passamos a acreditar que algo que cresce naturalmente em nossos corpos não deve estar ali e nos convertemos à rotina de retirada dos pelos? Bom, se olharmos historicamente para a prática da depilação, em uma pesquisa rápida no Google, a maioria dos resultados apresentará que o primeiro vestígio que se tem conhecimento da prática vem do Egito e Grécia Antiga, onde homens e mulheres usavam tecidos ou pele de animais, regados à cera de abelha, para a remoção dos pelos.
Jéssica Alonso no zine
A arte também teve seu papel, através da representação que se fez dos corpos: quando aparecia, a de mulheres era pouco visível e não havia a presença de pelos; já as famosas esculturas gregas revelavam pequenos cachos nas genitálias dos homens. Os pelos passam a ser associados ao que se entende como a “masculinidade” e os marcadores de gênero passam a tomar forma. Da Antiguidade à Idade Média, a religião participou do assunto também. Algumas defendiam a retirada, como, por exemplo, na tradição muçulmana, e outras defendiam a permanência, como símbolo de castidade para a Igreja Católica.
Durante séculos, o hábito de se depilar ficou “adormecido”, de certa forma. Com a inserção das mulheres () no mercado de trabalho no início do século XX, o cenário mudou. O trabalho delas nas fábricas exigia movimentos que fizeram os vestidos serem adaptados de modo a facilitar a execução das tarefas. As mangas foram retiradas e com isso os pelos das axilas, que continham uma carga erótica enorme por, de certa forma, revelar como era o “íntimo” das mulheres, passaram a ser retirados. No Brasil, os primeiros anúncios de retiradas de pelos passaram a circular nas capitais em 1915.
Nos anos 1930, a popularização de instrumentos para depilação se deu com as vendas nas farmácias. Logo a depilação se tornou uma questão de higiene pessoal e a higienização do corpo feminino passou a ser vendida como um ideal de beleza. O clima tropical teve grande influência na popularização do ato no país. Mundialmente nossa depilação é conhecida como brazilian wax que é quando se remove quase todos os pelos da virilha (por vezes a remoção é total) deixando apenas uma “faixa”, que é a faixa que cabe no biquíni.
Se com fatos históricos entendemos que o hábito da depilação e a associação dele a uma questão de higiene pessoal são construções sociais e com fins mercadológicos, nós, mulheres que não nos sentimos bem com tal hábito, conseguimos nos identificar melhor com esses fatos apresentados. Pessoalmente, na adolescência, me achava estranha por não conseguir me adequar à rotina da depilação. Por não ver outras meninas e mulheres com pelos ao meu redor ou na televisão e revistas, guardei comigo esses questionamentos até a idade adulta, quando comecei a ter contato com algumas mulheres que não se depilavam. Foi quando minha curiosidade atiçou e finalmente tive coragem de chamar mulheres para conversarem sobre o assunto comigo, e, assim, criei o projeto fotográfico que comento acima. Acredito que quando encontramos pessoas com os mesmos questionamentos que nós, os conflitos internos ficam um pouco mais leves e fáceis de se digerir. É visando esse lugar de troca que mantenho ativa a página do projeto.
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Com uma mudança tão grande em nossas vidas como a presença da pandemia da Covid-19, questionamentos sobre o que se faz necessário e as prioridades em nossa rotina diária passaram a ser discutidos. “Se você não se depila na quarentena porque não está sendo vista por ninguém, tem certeza que se depila porque quer?”, questiona (em espanhol) arte publicada no perfil de Instagram @armocosas. Essa imagem foi bastante compartilhada na rede social no início da quarentena e muitas pessoas marcaram o perfil do projeto Mulheres Adultas têm Pelos. Compartilhei o meme no stories do perfil do projeto e várias seguidoras responderam que também estavam repensando a questão da depilação naquele momento, que estavam deixando os pelos crescerem pela primeira vez em algumas partes do corpo.
Foto detalhe de Amanda Buttler, para Mulheres Adultas têm Pelos
Fazer uma segunda edição do zine estava nos meus planos para 2020, mas, com a pandemia, vários planos foram adiados ou adaptados; então decidi adaptar uma nova edição para o momento atual. Aproveitei a semana de comemoração de um ano de lançamento do zine, no fim de junho, para divulgar um formulário de inscrição para a nova edição. Foram 330 inscrições e aproveito este espaço para dar um pequeno #spoiler da primeira fotografada.
Patrícia Saldeado (Salvador-BA), 36 anos, é economista de formação, trabalha em projetos sociais e é mãe da Flora, de 3 anos. Ela me contou que, desde a primeira vez que depilou com cera, aos 12 anos, estranhou o ato, pois se assustou com a dor. “Já deixei de sair com pessoas em encontros por não estar depilada. Já deixei de ir à praia também por isso (...) No meu último relacionamento, eu deixei meus pelos crescerem e sempre percebia o que ele achava. Eu sentia que era ‘ok’, mas quando eu depilava era tipo ‘uaaau’”.
Ela comentou também que, hoje em dia, escolheu seguir seu próprio fluxo e tempo, e procura estar tranquila com suas escolhas. Os pelos da axila, para ela, são mais tranquilos de lidar, mas os da virilha e perna não, principalmente quando ela sabe que os vai expor. “A gente foi pra praia dia desses, estava bem vazia, ficamos afastadas das pessoas, e aí me deu coragem de ficar com os pelos da virilha à mostra. (...) Teve uma hora que nós passamos por algumas pessoas e eu pensei ‘O que é que eu vou fazer?’. Bom, não fiz nada. Assumir os pelos é também uma questão política, então há que se enfrentar, quebrar e romper”.
Patrícia Saldeado, a primeira fotografada para a segunda edição do projeto
Sobre os pelos da axila, que ela deixou crescer recentemente, comentou que, por enquanto, está tranquila. Porque, nas videochamadas que precisa fazer por conta do trabalho, não há necessidade de muita movimentação com os braços, então, há menos chances de as pessoas verem. Patrícia pondera, entretanto, que, quando voltar a trabalhar presencialmente, vai precisar se preparar para lidar melhor com a questão. “Normalmente eu viajo muito, encontro com várias pessoas, faço apresentações... Então, estou imaginando já como será no presencial. (...) Mas eu quero muito conseguir bancar isso, faz um tempo que quero.”
Mesmo continuando a raspar os pelos das pernas, comentou ficar um tempo sem raspar e não se incomodar com isso. “Em quatro meses de quarentena, eu raspei duas vezes os pelos da perna. Ele chega a ficar grande mesmo, e aí eu raspo. Eles não me incomodam [na sensação], a questão desses [pelos das pernas] é mais estética mesmo.”
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Questionar a cultura da depilação vai além de olhar para história da prática, achar que é uma questão de higiene pessoal ou que feministas querem ditar “novas regras”. É sobre a autonomia dos nossos corpos, sobre desmistificar o que acreditamos ser belo e feio, é sobre entender que o ato pode ser algo que muitas mulheres gostam de fazer, mas que não significa ser algo natural ou obrigatório.
A palavra feminismo – assim como o movimento feminista – ganhou bastante espaço nos últimos anos. Escrevendo dessa forma, ganhar parece ser um presente que as grandes empresas e mídia nos deram, como um presente de consolação. O movimento feminista reivindica, há muito tempo, direitos básicos, mas que não são garantidos às mulheres.
Se crescemos em uma sociedade que, desde nossos primeiros meses de vida, já nos empurra a cor rosa como marcador de gênero, nos coloca laços na cabeça – sem ao menos ter cabelo direito para segurá-los – e fura nossas orelhas para diferenciar se é menino ou menina, questionar o ato da depilação é apenas mais um meio de revermos algo que foi decidido por outra pessoa sobre nossos corpos. E nós apenas continuamos a reproduzir tal prática sem saber direito o porquê dela, se realmente queremos e gostamos de reproduzi-la.
Se você me disser que se sente mais “limpa” sem os pelos, lhe convido a revisitar sua memória para entender melhor em qual contexto você viu pelos serem associados à sujeira. Sobre o odor que a presença deles pode causar, a dermatologista Adriana Leite, em uma entrevista para revista Marie Claire, comenta que odor e suor são naturais, independentemente de se a pessoa se depilar ou não. A única recomendação extra que ela faz, caso você decida não se depilar, é: “Secar bem os pelos para evitar a proliferação de fungos – o mesmo que poderia acontecer no couro cabeludo, por exemplo”.
Arte publicada durante a quarentena no perfil @armocosas
Há a possibilidade de sentir-se melhor consigo mesma quando se está com a pele “lisinha”, mas posso afirmar que, no meu caso, me sentia bem com a pele lisa e me sinto igualmente bem com os pelos. A diferença é que agora não preciso passar pelo ritual da dor da depilação.
Algumas mulheres falam que não acham que a depilação dói tanto assim, ou que tudo bem lidar com um corte ou outro da gilete, mas aí questiono: você não se incomoda com a dor e os cortes ou se acostumou a lidar com a dor e os cortes? E se você se acostumou, eu lhe pergunto: você se acostumou com a dor? Será que esse tipo de acomodação à dor não tem alguma ligação às várias dores e violências que somos ensinadas a nos acostumar ao longo da vida como mulheres?
Sei que a dor de uma depilação com cera não é comparável à dor de uma violência física ou psicológica contra a mulher, isso não é uma tentativa de comparação, apenas uma tentativa de fazer você refletir sobre a origem do “normalizar a dor”, que pode ser a mesma. É por isso que assuntos como a depilação causam tanta agitação e discussões. Quando passamos a questionar regras que estão estabelecidas há tanto tempo em nossa sociedade, a estrutura do edifício começa a bambear. Se uma ou outra coluna cai, em algum momento será impossível que ele se sustente nas poucas que sobrarem; aí ele passa a ter grandes chances de cair.
Como feministas – e acredito que em todos os movimentos sociais – nosso objetivo é, sim, que esses edifícios caiam, para abrir espaço para novas construções. A vida está em constante movimento. Pessoas, pensamentos e ideias evoluem de acordo com o passar do tempo: é algo natural. Vai além de nós como indivíduos. Vai além do nosso círculo de amizades ou familiar, além da nossa cidade, estado ou país. Questionar esses padrões tão enraizados em nossa sociedade envolve o coletivo por vezes, mas, ao fim, é também sobre as escolhas e a vida individual de cada pessoa. Eu, Marcela, felizmente fui criada em uma família que respeita as diferenças, independentemente de concordar ou não, e é essa mensagem que espero e anseio por levar sempre em meu trabalho.
MARCELA GUIMARÃES, fotógrafa, videomaker e performer, investiga em seus trabalhos os lugares que a mulher ocupa na sociedade, sua relação com o privado, público e político. É criadora do projeto Mulheres Adultas têm Pelos, fanzine que aborda, através de fotos e relatos, a cultura da depilação. @marcelaguimaraes___