Curtas

Desterro

Narrativa sobre uma família em ruínas é a tônica do segundo longa-metragem de Maria Clara Escobar

TEXTO Luciana Veras

02 de Setembro de 2020

Na trama, um desejo de liberdade move a protagonista Laura (Carla Kinzo)

Na trama, um desejo de liberdade move a protagonista Laura (Carla Kinzo)

Foto FRAME DO FILME DESTERRO/FILMES DE ABRIL/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 237 | setembro de 2020]

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Olha, meu amor, eu estou voltando
É tão bom chegar
Eu estou chegando
Quero te contar que me arrependi
Quero te mostrar o quanto sofri
Mas valeu a pena esse meu desterro

Os versos de Desterro foram escritos para uma das faixas de Nos teus braços, disco que Reginaldo Rossi lançou em 1972, muito antes da realizadora Maria Clara Escobar nascer. Relidos pelas quatro vozes da Comadre Fulozinha para um álbum-tributo ao Rei do Brega, ganharam a versão em que o “eu lírico” se assume feminino, versão esta que encerra o segundo longa-metragem dessa jovem cineasta. Exibido em janeiro na mostra Bright Future, um dos 10 a concorrer ao Tiger Award, a láurea máxima do 49o Festival Internacional de Roterdã, e depois suspenso no hiato causado pelo novo coronavírus, Desterro (Brasil/Portugal/Argentina, 2020) reconfigura seu percurso para se fazer visto e conhecido pelo público.

No primeiro semestre, também em janeiro, Desterro foi ao Göteborg Film Festival, na Suécia e, em junho, já sob o espectro da paralisação mundial provocada pela pandemia, esteve no Taipei Internacional Film Festival, em Taiwan. Em outubro, será apresentado na Viennale, principal mostra cinematográfica da Áustria. Maria Clara e a distribuidora Embaúba Filmes optam por retardar o lançamento nacional, pois não há previsão ainda de reabertura dos cinemas no Brasil, embora o mercado pressione e algumas iniciativas em drive-in estejam a operar em capitais como o Recife.

“Neste ano, tudo vai atrasar; aliás, já está atrasando, e acreditamos que faz sentido esperar um pouco mais. Existem, claro, os festivais online, mas vejo o motivo principal de um festival mais o encontro, o espaço do debate, do que necessariamente ser visto; então, sentimos que era melhor aguardar. Pode ser que nada mude, mas vamos demorar, um pouco, para trazer o filme para cá”, diz à Continente.

Ela não enxerga problemas na espera, afinal, constituiu-se artífice do tempo para rodar a sua primeira ficção – o documentário Os dias com ele, de 2014, é sua primeira direção de longas. “Passei sete anos para fazer Desterro e a primeira imagem que me veio é justamente a que fecha tudo: um homem sentado num banco, um corpo enrolado em um saco, uma casa a pegar fogo atrás. A partir daí, de forma inconsciente, até, o roteiro foi tomando corpo, entendendo que o próprio processo fazia parte dele.

Durante esse tempo, vimos o impeachment de Dilma Rousseff, as questões que aconteciam na minha própria família, e nosso sistema político e os discursos por trás dessa ideia de família na classe média estavam em ruínas. Era disso que queria falar: de um certo tipo de família, dessa tradição familiar da nossa classe média, que é um certo lugar para pensar o silenciamento das mulheres e a tendência de não entrar em conflitos”, observa.

Pois Desterro é a história de Laura (Carla Kinzo, que colabora no roteiro, ao lado de Caetano Gotardo) e Israel (Otto Jr.), um casal cuja primeira aparição em tela denota um relacionamento em estado de fadiga. Eles têm um filho, Laura integra uma família abastada, com irmãs que parecem mais bem-sucedidas, ao menos e em especial no tocante à maternidade e atividades afins. Israel não possui muito dinheiro e tampouco disponibilidade interna para ficar sozinho com a criança quando Laura decide viajar, e os dois já não dialogam. No entanto, há uma morte e, da ausência, da falta, da lacuna, será preciso estruturar uma nova existência. Repartido como um tríptico, desenrola-se de modo desconcertante, não somente na forma – como na escolha de Maria Clara em narrar em três capítulos não consecutivos –, mas também na caracterização dos personagens e na representação das suas linhas de fuga.


“Uma vez sabendo que vamos morrer, o que fazemos com nossas
existências, movimentos e possibilidades?”, indaga Maria Clara Escobar
Foto: Marwan Magroun/Divulgação

“Para mim, não tem distinção entre forma e conteúdo, e sempre esteve muito claro que não queria seguir a tradição de fingir que aquilo não é um filme. Não queria o pacto de ‘quanto mais real pareça, mais real se sentirá’, e, sim, um roteiro que buscasse a consciência de que é um filme, mas que é possível sentir, estar em conflito, com consciência de tudo. Conteúdo e forma, sentimento e ideia, não são coisas opostas”, responde a cineasta por telefone, em uma conversa transcorrida nesses meses em que ela veio atravessar a quarentena em Itamaracá – a mesma praia cantada por Reginaldo Rossi.

“Sobre a ordem dos capítulos, em algum momento desses anos todos escrevendo o filme, me dei conta de que não podia ser sobre o luto, sobre a dor, e que eu tinha personagens mulheres muito fortes, o que me fez pensar sobre discurso e estética. Uma vez sabendo que todos nós vamos morrer, o que fazemos com nossas existências, com nossos movimentos e nossas possibilidades?”, indaga Maria Clara Escobar.

Parte da força de Desterro reside, justamente, no segmento da travessia em que Laura, numa viagem de ônibus, permite-se afetar por mulheres que estão no mesmo compasso, literal e metaforicamente. Há Georgette Fadel (Partida) em uma passagem construída “a partir da história da mãe dela”, como revela a diretora; há Bárbara Colen (Bacurau, No coração do mundo), em um monólogo calcado em um dos incisivos poemas de Um útero é do tamanho de um punho, livro de Angélica Freitas de 2012; e há a própria Laura a flertar com o personagem de Rômulo Braga, em um caminho de desmitificação da figura arquetípica da mulher que é mãe.

“O que seria essa possibilidade de relação entre filhos e pais, e de mulheres com suas escolhas, menos na ordem da fantasia e mais na ordem da consciência? Precisa abrir mão do desejo para ser mãe ou para ser feminista? Fico tentando entender por que nossa individualidade responde a uma ideia de coletivo, a uma estrutura de sociedade... Não tenho resposta para isso ainda”, pontua.

E se o filme só deve chegar ao Brasil, de fato, no primeiro semestre de 2021, é possível senti-lo na melodia e na letra da canção entoada por Alessandra Leão, Isaar, Karina Buhr e Renata Mattar. “Hoje eu descobri, descobri meu erro, descobri que a vida começa aqui dentro do meu lar e eu quase o perdi”: são vislumbres de esperança a irromper no plano final, o fogo a dominar a casa, a fumaça a crescer no quadro e um homem de olhar vazio, impelido a se repensar.

“O fogo é símbolo de destruição, mas também de renascimento, de transformação. Podemos olhar com maturidade para uma nova forma de fazer tudo, de viver e também de morrer. O que morre talvez se materialize em outras coisas e nossos corpos, ao viver essas experiências, seguem habitando em nós, nem que seja em forma de memória”, resume Maria Clara Escobar, ela mesma uma desterrada na pandemia, para quem o filme é música, a imagem cíclica do fogo, a espera e a palavra que não se enverga. “Nos festivais lá fora, vamos com esse título mesmo, pois acho a palavra meio intraduzível”. Eis aí mais um dos mistérios de Desterro.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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