Resenha

A arribação de Flaviola num eterno retorno

Quarenta e quatro anos depois do álbum ‘Flaviola e o bando do sol’, músico pernambucano ressurge com o disco ‘Ex-tudo’

TEXTO JOSÉ JUVA

02 de Setembro de 2020

Mosaico com várias facetas do compositor

Mosaico com várias facetas do compositor

ARTE Sobre fotos de divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 237 | setembro de 2020]

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Flávio Tadeu Rangel Lira, 1952. O nome da pessoa, o ano de nascimento – marcas presentes e significativas ao longo de uma vida. Artistas nomeiam e renomeiam o mundo e a si mesmos, reinaugurando o poder ancestral da palavra. Aos 20 anos, o músico pernambucano Flávio Lira nasceu de novo com outro batismo. “Flaviola foi uma brincadeira urdida por mim em 1972”, diz brevemente. E com esse nome ele assinou uma das joias da psicodelia nordestina: o disco Flaviola e o bando do sol, de 1976. A obra foi gravada nos estúdios “pós-diluvianos” da mítica Rozenblit e lançada pelo selo Solar, numa parceria com a Casa Abrakadabra, empreendimento capitaneado por Kátia Mesel e Lula Côrtes. Mais de quatro décadas após a estreia, hoje clássica, Flaviola volta com Ex-tudo (2020), disco prenhe de viagens eletrônicas de iniciação, memória e delírio.

Mas tenhamos calma, esse hiato temporal pode ser enganoso. Flávio Lira nunca esteve parado. Pouco tempo depois do lançamento de Flaviola e o bando do sol, o músico foi morar no Rio de Janeiro. Lá, ao longo das décadas seguintes, criou trilhas para espetáculos teatrais como Francisco de Assis, parceria com Ciro Barcelos (ex-Dzi Croquettes), que ficou mais de uma década em cartaz, dirigiu shows musicais de outros artistas – a exemplo de Elza Soares – e fez parte da banda Braz, produzida por Robertinho de Recife, antigo parceiro musical no grupo seminal Arame Farpado. Porém, Flaviola permanecia um nome vinculado aos anos 1970, uma espécie de espectro. Esse vulto ganhou corpo outra vez, em Ex-tudo, a partir do encontro de Flaviola com a obra do músico e produtor pernambucano Domingos Sávio, o D Mingus.

Quem fez o meio de campo entre os artistas foi o também músico Juvenil Silva, que tocou com Flaviola no Abril Pro Rock de 2015. Na época, Flaviola – que não visitava o Recife havia 25 anos – recebeu de Juvenil uma série de discos de artistas pernambucanos, entre os quais os discos de D Mingus – Filmes e quadrinhos (2010), Canções do quarto de trás (2012), Fricção (2013) e Saturno retrógrado (2015). “Só ouvi a obra do D Mingus quando voltei para o Rio. Fiquei encantado. Eu me declarei apaixonado pelo trabalho dele.” Dois anos depois, a paixão se transformou em convite para uma jornada de diálogo estético. “Eu disse: ‘Quero que você faça a produção do meu disco novo’. Ele arregalou os olhos”, relembra Flaviola. “Foi uma espécie de choque, só depois fui me acostumando com a ideia”, resume D Mingus.

Ex-tudo foi feito entre idas e vindas, no tempo e no espaço. Acolhidos no Pé de Cachimbo Records, o estúdio doméstico de D Mingus, os músicos gravaram o disco entre março de 2017 e fevereiro deste ano, passando por lugares como os bairros da Iputinga, no Recife, e Aldeia, em Camaragibe – deslocamento do produtor em suas mudanças de casa. Além das andanças espaciais e temporais, o processo de gravação de Ex-tudo foi atravessado também por problemas de saúde de Flaviola. “Fui acometido por uma doença que ninguém sabia o que era. Procurei médicos de várias especialidades, fiz toda sorte de exames, ninguém me apontava nenhuma luz”, recorda o cantor.

Para o músico, 2019 foi um ano de emergência, amputação no dedão do pé direito, problemas no coração, 15 dias em coma induzido numa Unidade de Terapia Intensiva. “Entubado, num procedimento de traqueostomia, achei que eu nunca voltaria a cantar, nem falar, porque eu não falava nem nada, ninguém entendia o que eu sussurrava, era um inferno, uma solidão absurda”, relembra. Parte desse périplo pode ser intuída a partir da observação da foto icônica da capa de Ex-tudo, na qual Flaviola aparece num leito de hospital, envolto em fios, com máscara de nebulização, dedo indicador esquerdo em riste como quem sugere no meio do caos: estou aqui, não vou embora. “Eu não tinha medo de morrer, tinha medo de não concluir o disco”, afirma. “Eu não parei de compor, nem de fazer nada, mas foi o retorno do Flaviola. Acho que Flaviola ficou puto comigo porque eu aposentei o nome e, pra retornar com o nome de Flaviola, eu tinha de passar por todos esses obstáculos”, reflete agora, com a saúde restabelecida.

NOVO  ÁLBUM
Ex-tudo é uma aventura musical decididamente contemporânea, disco cheio de experimentações com sonoridades futuristas em diálogo com o passado, mas sem embarcar numa reverência paralisante. “Eu não tenho saudade nenhuma do passado”, diz Flaviola. No disco, o músico não busca reencenar a pérola da década de 1970.

A jornada pelas 12 faixas da obra, em seus 37 minutos, começa com A ideia (1’58’’), música feita a partir de um poema do paraibano Augusto dos Anjos, retirado do inventivo e soberbo Eu, de 1912. A faixa tem um delicado arranjo de violões assinado por D Mingus e Júlio Ferraz e constrói uma atmosfera folk que tece em filigrana as interrogações poéticas de Augusto. “Moléculas nervosas”, “desintegrações maravilhosas” e o “molambo da língua paralítica” nos enredam numa canção brejeira e onírica no canto de Flaviola.


Capa do álbum alude aos recentes problemas de saúde de Flaviola

Bambu (3’19’’) também foi criada a partir do contato do artista com a literatura. Desde os 10 anos de idade, por conta de uma paralisação nos rins que o deixou seis meses de cama, Flaviola se tornou um leitor voraz. A faixa é um blues cuja letra vem de um poema de T. S. Eliot, numa tradução de José Paulo Paes. Uma paisagem bucólica se afirma. “Diz-me em que sítio do bosque comigo queres flertar”, canta Flaviola. Em seguida, No centro d’ação (3’09’’), um mantra zen eletrônico e filosófico, cheio de jogos de palavras e conceitos cuja poética dialoga, por exemplo, com a vertigem condensada em versos curtos de Walter Franco. A essa altura do disco, a produção de D Mingus e suas invenções de camadas etéreas e sonoridades siderais começam a comparecer mais decisivamente. A “tração intuitiva dos sentidos”, de que fala a música, é um bom mote para pensarmos esse jogo estético delirante entre a memória do psicodelismo do passado e os devaneios e as práticas eletrônicas experimentadas em Ex-tudo.

A quarta faixa é Sem tema (3’20’’), escolhida entre as prolíficas parcerias de Flaviola com Lula Côrtes. Rock dançante, embalado por sintetizadores e batidas eletrônicas – sob o signo de um “fogo que se repete no seu ânimo”. Prepara bem o terreno para a emergência eletrizante de Poder e saber (4’58’’), faixa mais extensa do disco, que conta com a participação de Theo Galindo, cantor de novíssimos 15 anos. Theo e Flaviola cantam de modo socrático: “Saber é descobrir que não se sabe nada, a cada descoberta surge uma nova charada”.

Crânios (2’36’’), segunda parceria com Lula Côrtes presente em Ex-tudo, reverbera vibrações e energias mais reconhecíveis da psicodelia nordestina da década de 1970, numa letra enigmática e surreal costurando lagartos, cristais, ouro e ossos numa paisagem alucinada. “Eu sinto falta do Lula, da convivência, da instigação. Uma pessoa com quem tive muita identificação, mesmo com as diferenças entre o processo criativo dele e do meu”, confessa Flaviola sobre o cantor, poeta, amigo e parceiro, falecido em 2011.

“Olhos abertos pra vida, tenho toda sorte de um ser-para-a-morte e com aberta ferida sangro num inferno, retorno eterno”, canta Flaviola em Pra não desesperar (4’06’’), composição retirada do disco Canções do quarto de trás (2012), de D Mingus. Aqui entramos na passagem das sonoridades mais vibrantes, densas e visionárias do disco: híbrido de rock delirante e sossego cósmico, um dos pontos mais férteis da obra.

A trinca Pra não desesperar (4’06’’), Recife submerso (3’32’’) e Setembrina (3’08’’) apresenta caminhos insuspeitos e de deleite para a reinvenção das artimanhas do bardo Flaviola. “Quando o real despedaça e não se acorda do pior pesadelo, canto por inteiro pra não me desesperar”, reverbera a letra de D Mingus na fecunda e autoral apropriação de Flaviola.

As três canções, de autoria de D Mingus, transmutam-se na voz de Flaviola e ganham novos alcances poéticos e simbólicos no vínculo dos sujeitos líricos com outro ser histórico. Um “Recife submerso nos vales da memória” se irmana com “as voltas que o vento dá só nos levam longe pra outro lugar. Saudade, União, Aurora, vamos embora virar constelação”. Ex-tudo é um encontro frutífero de duas constelações próprias: Flaviola e D Mingus.

As últimas três canções do disco são Mata Hari (1’00’’), O bando do sol (1’35’’) e Nunca embora (4’13’’). Em Mata Hari, a cantora Numa Ciro, amiga de Flaviola, canta uma vinheta onírica atravessada por efeitos eletrônicos para a recordação da dançarina Margaretha Geertruida Zelle, acusada de espionagem e condenada à morte por fuzilamento durante a Primeira Guerra Mundial. Na letra de O bando do sol, Flaviola pergunta “Quantos bandos dentro desse grão?”, questão que nos faz relembrar os muitos diálogos criativos estabelecidos desde sempre pelo artista.

Flaviola finaliza Ex-tudo com uma iconoclasta canção que tematiza uma relação homossexual masculina. Na mais eletrônica das invenções do disco, em Nunca vá embora, uma canção composta em 1972, ele canta a potência subversiva do desejo, do gozo, dos corpos: “Ele lambe meu corpo, ele me chupa todo, ele goza sorrindo e me diz ‘menino com você vai ser uma loucura, a vida inteira vai ser uma gostosura’ e promete cobrir o meu corpo com rubis”.

Se, no disco de estreia, Flaviola contou com a perícia e artimanha de Lula Côrtes, Paulo Rafael, Robertinho de Recife, Zé da Flauta e Fernando Amaral, entre outros, em Ex-tudo, além de D Mingus, Júlio Ferraz, Theo Galindo e Numa Ciro, participaram também músicos como Juvenil Silva, Daniel Liberalino, Thiago França e Tiago Marditu. A obra foi lançada em junho pelo selo Discobertas, de Marcelo Fróes, e está disponível nas plataformas digitais – segundo Flaviola, há previsão de lançamento posterior do disco em CD e LP. Vale lembrar que, no início deste ano, o disco Flaviola e o bando do sol teve seu relançamento em vinil pela Polysom. Já faz tanto tempo e, felizmente, o bardo Flaviola continua a ser nosso amigo viajante.

JOSÉ JUVA, poeta, professor e jornalista.

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