Ensaio

Uma chave para entender quem somos

Os intelectuais franceses Didier Eribon e Édouard Louis partem das próprias vidas para mostrar como a classe social é formadora e como ela dita os destinos de cada sujeito

TEXTO Bárbara Buril

01 de Abril de 2020

Ilustração Janio Santos

[conteúdo na íntegra | ed. 232 | abril de 2020]

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Juntamente com o escritor Édouard
Louis, Eribon compõe um núcleo de intelectuais franceses comprometidos, em suas obras, com a ideia de que a chave de si mesmo está na classe social onde, por azar ou sorte, se nasceu. Eles estão unidos pelo posicionamento político, uma vez que endossam o grupo da esquerda radical na França, mas também pela amizade.  Algo a que Michel Foucault na entrevista Amizade como modo de vida, publicada na revista Gai Pied, em 1981, se referiu como o problema da homossexualidade: não a verdade do próprio sexo, mas as possibilidades que ela oferece de estabelecer, inventar e multiplicar certas relações afetivas.  Uma amizade que surge de uma experiência pessoal de homossexualidade de cada um deles, mas também de um certo posicionamento político de que o privado é profundamente marcado pelo público.

Não se trata de uma ideia nova, afinal o sociólogo francês Pierre Bourdieu já havia escrito, em 1979, em La distinction, que o gosto e o estilo de vida, aparentemente privados, são profundamente formados pelo ambiente social onde se nasceu. O que é novo e interessante é que estes escritores, em especial Édouard Louis e Didier Eribon, partem das próprias vidas para mostrar como a classe é formadora e como ela dita os destinos sociais de cada sujeito. A chave de nós mesmos estaria, para eles, no destino que a sociedade nos reservou.

Retour à Reims (traduzido para o português em 2019 com o título Regresso a Reims), assim como Qui a tué mon père (“Quem matou meu pai”, ainda sem tradução para o português) e En finir avec Eddy Bellegueule (O fim de Eddy, na tradução da Tusquets, de 2018) são obras autobiográficas sobre a perversão de uma sociedade dividida em classes. São obras sobre como nascer em uma classe social oprimida pode impor aos sujeitos uma humilhante restrição à imaginação e uma exclusão praticamente perpétua de todos os meios pelos quais é possível sair do lugar do oprimido. Esses escritos, extremamente ricos do ponto de vista descritivo, revelam ao leitor uma sociedade que pode ser maquiavélica e refinada nos modos como sistematicamente produz opressões. Lê-los significa abandonar o otimismo no que concerne às promessas de mobilidade social que uma sociedade dividida em classes diz oferecer, mas também abraçar a urgência de uma radicalidade. Esses relatos revelam que, embora seja óbvio que o problema da dominação persiste, a dominação em si é muito refinada, manifesta-se através de pequenas e grandes humilhações, bloqueia a imaginação e faz do dominado um cúmplice da própria dominação.

O escritor francês Édouard Louis nos conta, no romance autobiográfico En finir avec Eddy Bellegueule, como o fato de ele ser homossexual o fez romper, de certa maneira, com o destino social comumente reservado aos homens de sua classe social na França. Diferentemente dos jovens de sua idade, que, quando terminavam a educação básica, iam diretamente trabalhar nas fábricas como operários, Édouard Louis escolheu continuar o seu percurso educacional. No entanto, não porque ele fosse mais inteligente do que os outros, ou mais esperto em suas escolhas. O fato de que ele não se enquadrava no estereótipo de masculinidade dos outros rapazes de sua idade já fazia dele um deslocado naquilo que seria o seu destino social: ser um operário. Como narra a respeito de seu pai: “Meu pai deixou de ir a escola muito jovem. Ele preferia ir aos bailes nas cidades vizinhas e ter as brigas que acompanhavam estas saídas invariavelmente (…). Mesmo quando ia ao liceu, ele ficava a maior parte do tempo excluído devido às provocações aos professores, os insultos, as ausências”. Os estereótipos de masculinidade faziam com que os “homens de verdade” das classes sociais oprimidas acabassem tomando como seus o desejo social de que fossem operários. Ir à escola e seguir as orientações dos professores significava não ser “um duro”. Significava ser um fracote.

Para Édouard Louis, no entanto, ser gay foi uma maneira de se salvar de seu destino social. Ele começou a se envolver com o teatro e, lentamente, através de pequenos acontecimentos, mas também segundo uma lógica sistemática de criação do contrário do que eram o seu pai e os homens de seu ambiente social, ele conseguiu fugir desse destino e ser, hoje, um dos jovens escritores franceses mais prestigiados do mundo. Édouard Louis publicou En finir avec Eddy Bellegueule, em 2014, aos 23 anos, e o livro virou um best-seller.

NEGAÇÃO
A deserção se deu, também no caso de Eribon, através de uma produção subjetiva contrária ao que ele era até então – e de modo intencional. Para ele, ser gay também significava se inscrever em uma rede de sociabilidade diferente daquela onde nasceu. Perceber-se como gay o levou a se inventar como tal a partir dessa descoberta, e isso se deu através da inserção em uma realidade social diferente daquela onde havia nascido. Mas, mais além, reconhecer-se como gay o levou não só a frequentar outros lugares, como também a negar a sua origem social. “Eu fui, sem dúvidas, um ‘desertor’ cuja preocupação, mais ou menos permanente e mais ou menos consciente, era de colocar a distância a minha classe de origem, de escapar ao lugar social de minha infância e minha adolescência”, confessa Eribon em Retour à Reims, obra parte autobiográfica, parte sociológica, publicada em 2009. O livro alcançou um grande sucesso como ensaio sociológico, com mais de 65 mil exemplares vendidos na França, durante os seis anos após o lançamento do livro, e 80 mil exemplares vendidos na Alemanha, um ano e meio após o lançamento da tradução em alemão, em 2017. A negação da própria origem social se vê em diversos momentos dessas narrativas. Para além de um julgamento moral, a negação era uma forma de escapar. Era a senha para fora da opressão, a chave para uma ascensão de classe.


Em 2014, Édouard Louis publicou En finir avec Eddy Bellegueule, livro que
virou um best-seller. Foto: Heike Huslage-Koch/Divulgação

Em diversos momentos, Édouard Louis também conta como foi preciso negar as próprias origens para obter algum tipo de respeito nos ambientes sociais burgueses que passou a frequentar por conta de uma ascensão social conquistada pelos estudos. Ele nos conta que a sua mãe, assim como as outras mães de sua classe social, nunca se preocupava muito com a higiene bucal dos filhos. Ir ao dentista custava muito caro e a falta de dinheiro acabava se transformando em uma “escolha”. Devido à impossibilidade de acessar determinados serviços, o que surgia era uma justificação consoladora para a restrição, e não uma culpabilização social pela precariedade a que se viam reféns.  “As mães diziam ‘de todo modo, há coisas mais importantes na vida’”, conta o escritor, denunciando como a opressão de classe acaba sendo incorporada pelos oprimidos, invertida e interpretada como uma escolha.  A “escolha”, por exemplo, de trabalhar, em vez de estudar, porque “estudar não é para nós, que somos homens de verdade”, como diziam os jovens rapazes de sua idade. Já em Paris, na prestigiada École Normale Supérieure, Édouard Louis viu os seus colegas perguntarem, diante de suas reclamações de que seus dentes doíam (ele conta que até hoje paga dentista para solucionar as dores imensas nos dentes causadas pela negligência de sua família e de sua classe social no que concerne à saúde bucal), por que os seus pais não o levaram no dentista quando ele era pequeno. “Minhas mentiras. Eu lhes respondia que os meus pais, intelectuais bastante boêmios, estavam tão preocupados com a minha formação literária que eles chegavam a negligenciar a minha saúde”, conta. Era preciso esconder as próprias origens para poder fugir.

Muitas vezes, no entanto, essas origens como que “se denunciavam”. Como escreve Eribon, em Retour à Reims, “certos reflexos de classe subsistem, apesar de todos os esforços, e especialmente os esforços de mudar a si mesmo através dos quais se pode se afastar do lugar de origem”. Os livros de Eribon e Édouard Louis, para além do fato de se unirem no que refere a uma abordagem autobiográfica daquilo que Bourdieu já havia identificado em suas obras sociológicas, também se unem pelo sentimento de vergonha experienciado por ambos os intelectuais em diferentes momentos de seus percursos de deserção e ascensão de classe. Como conta Édouard Louis, em uma manhã do mês de dezembro, dois meses após a sua entrada no liceu, houve um encontro natalino e ele resolveu usar uma roupa comprada por sua mãe como presente para a sua nova fase de vida. Era um conjunto vermelho e amarelo estridente, da marca Airness. “Eu fiquei muito orgulhoso no momento da compra, a minha mãe, também orgulhosa, me disse: ‘é o seu presente de liceu, ele custa caro, nós fizemos sacrifício para comprá-lo”, narra.

No entanto, chegando no liceu, Édouard percebeu que a roupa não correspondia àquelas utilizadas pelas pessoas de lá, que ninguém se vestia daquele jeito, que os garotos usavam sobretudo masculino ou vestes de lã, como os hippies. Minha roupa era risível. Três dias depois eu a joguei em uma lixeira pública, cheio de vergonha. Minha mãe chora quando eu minto para ela a respeito disso (eu digo que a perdi)”, escreve. A vergonha de pertencer a uma classe social oprimida e o desejo de se inserir noutro contexto social, mais valorizado, une, portanto, as obras desses escritores.

Da mesma maneira, Eribon pontua que, apesar de se sentir próximo das lutas populares e dos valores políticos e emocionais das greves dos trabalhadores, por exemplo, ele experienciava  uma rejeição profunda aos ambientes sociais onde vivem os trabalhadores. Uma identificação com os valores, mas uma ojeriza à realidade. Ele conta que, depois de sair do seu ambiente familiar, começou a detestar o contato com aqueles que eram – e que ainda são – as classes populares. “Nos tempos iniciais de minha instalação em Paris, quando eu continuava a ver os meus pais, que ainda moravam em Reims (…) ou quando eu almoçava com eles aos domingos, na casa da minha avó que mora em Paris (…), um desconforto difícil de identificar e de descrever me acometia diante dos modos de falar e das maneiras de ser tão diferentes daqueles que pertenciam aos lugares nos quais eu crescia a partir de então, diante das preocupações tão distanciadas das minhas”, narra. Aqui, Eribon se refere a um mal-estar sentido por todos aqueles que saem não só do domicílio familiar, mas do mundo social ao qual, apesar da distância, continuam a pertencer. “Este sentimento desconcertante de estar simultaneamente em casa e em um universo estrangeiro”, como escreve Eribon, em referência à escritora Annie Ernaux, cuja vida também foi marcada por esse rompimento, em certo sentido impossível, com a sua origem social bastante modesta.

RESTRIÇÃO À IMAGINAÇÃO
Além da vergonha vivida por quem deserta, também é possível perceber nessas duas narrativas como o pertencimento a uma classe social oprimida é marcado por uma restrição imposta, e posteriormente internalizada, à imaginação. A imaginação se revela como um processo que só se dá a partir de determinadas condições materiais – isto, caso o sujeito não esteja sofrendo de alucinações. Se você for um brasileiro de classe média, você pode se imaginar fazendo muitas coisas – estudar fora, passar em um concurso público, ter uma empresa rentável –, mas, se você estiver sonhando em ser presidente dos Estados Unidos, certamente você está alucinando ou está mal informado. Isso porque, para ser presidente dos Estados Unidos, é preciso ter nascido nos Estados Unidos e, se você nasceu no Brasil, é fato que você seria inelegível. A imaginação, para não ser alucinação ou simplesmente ignorância, portanto, precisa estar assentada em determinadas condições materiais. “O campo do possível – e mesmo o possível simplesmente do concebível, sem falar do possível realizável – é estreitamente circunscrito pela posição de classe”, reflete Eribon. Assim, para determinadas pessoas, a impossibilidade de conseguir o mínimo causa uma série de reações, como a raiva, o ódio e o ressentimento direcionados àqueles que não são, de fato, os responsáveis pelo problema da opressão. 

Por exemplo, Eribon narra como a impossibilidade de sua mãe em acessar a educação formal levou-a a expressar um forte ressentimento com relação à inserção de seu filho nesse universo, ainda hoje considerado privilegiado na França; e também como a sua exclusão de classe estava profundamente ligada ao seu ódio aos imigrantes. O escritor narra diversos episódios reveladores. Em um deles, Eribon conta que, quando tinha apenas 11 anos, chegou em casa depois da escola e disse a sua mãe que tinha aprendido um poema. Então, começou a recitá-lo em inglês: “I wish you a merry Christmas, a horse and a gig, and a good fat pig, to kill next year”. Assim que terminou, o que ele recebeu da mãe não foi uma manifestação de amor e de agradecimento pelo afeto expresso em forma de poema recitado, mas uma cólera repentina, um furor. Assim que ele terminou, ela começou a gritar: “você sabe que eu não entendo inglês… Você vai me traduzir imediatamente!”. E também: “você quer me rebaixar? Por um acaso, você quer me ridicularizar?”. Eribon conta, então, que começou a traduzir o poema. A crise histérica de sua mãe, então, durou apenas alguns instantes. Esse episódio, e muitos outros, deixavam patente a frustração de sua mãe em não poder seguir os estudos.

Embora, como ele mesmo escreve, os membros de sua classe social acabassem incorporando pessoalmente esse veredito social, dizendo que os estudos não são para nós, que gostamos de trabalhar”, a sua mãe expressava com frequência a frustração de não ter podido seguir os estudos. E ela surgia em réplicas como “não é porque você vai ao liceu que você é superior a nós” ou “você acha que é quem? Você acha que vale mais do que a gente?”. “Mas a frase que vinha mais frequentemente de sua boca consistia simplesmente em me lembrar que ela tinha sido privada daquilo a que eu tinha acesso: ‘Eu, eu nunca pude…’ ou ‘Eu, eu nunca tive…’”. Diferentemente de seu pai, que dizia que “não tinha tido o direito” de acessar determinados bens, em um tipo de percurso argumentativo que coloca na sociedade a responsabilidade por sua privação, a mãe deixava falar o seu ressentimento como uma forma de mostrar que as perspectivas que, para seu filho, eram sempre abertas, para ela, sempre se fecharam. “Ela fazia com que eu tivesse plenamente consciência da minha sorte”, conta Eribon, observando que ela não expressava raiva pela restrição de classe que sofria. Ao contrário, encarava a impossibilidade de acessar os estudos como certo infortúnio pessoal a que o seu filho não estava destinado.

Em diferentes momentos de sua vida, conta o escritor, a mãe sofreu restrição social para acessar aquilo que desejava. Eribon descreve que, já mais velha, ela leu um anúncio em um jornal regional sobre uma escola privada que acabara de ser criada para oferecer ensinamento sobre informática para adultos que pretendiam se inserir em novas carreiras e profissões. Como viu no anúncio uma oportunidade de se qualificar, ela se inscreveu no curso e frequentou as aulas diversas noites por semana, depois das horas de trabalho, até perceber muito rapidamente que não compreendia nada ou quase nada do que estava sendo ensinado. “Ela repetiu durante semanas que não iria parar, que iria conseguir subir de nível. Então ela se rendeu à evidência e se confessou derrotada. Ela desistiu. Amarga, decepcionada. Sua última chance se foi”, escreve Eribon. A sua última chance foi, mais uma vez, roubada pelo que podemos claramente interpretar como uma imposição de classe.

Sem a ascensão social almejada, a mãe trabalhava oito horas por dia em uma usina para que o filho Didier pudesse seguir as aulas sobre Montaigne e Balzac no liceu ou, posteriormente, quando estava na universidade, para dedicar horas aos estudos na tentativa de decodificar Aristóteles e Kant. Ele narra: “Quando ela dormia à noite para se acordar às quatro horas da manhã, eu lia até a aurora Marx e Trotsky, depois Beauvoir e Genet. Aqui eu só posso me remeter à simplicidade com a qual Annie Ernaux exprime, sobre a sua mãe que tinha uma pequena mercearia de bairro, a brutalidade desta verdade: ‘Eu tinha certeza de seu amor e desta injustiça: ela servia batata inglesa e leite da manhã até a noite para que eu pudesse me sentar dentro de um anfiteatro para ouvir sobre Platão’”. 


Retour à Reims, de Didier Eribon, é obra autobiográfica que reflete sobre a perversão de uma sociedade dividida em classes. Foto: JCS Lizenz/Divulgação

Porque a realidade impede os sujeitos oprimidos de sonharem mais alto, aquilo que é imaginado por eles tem algo de limitador para quem está fora de uma realidade de classe específica. O pai de Eribon, por exemplo, tinha o sonho de ser designer industrial. No entanto, como conta o escritor, ele foi rapidamente chamado pela realidade, porque não tinha a formação de base necessária e, sobretudo, as condições materiais necessárias a se concentrar nos estudos depois de ter passado o dia inteiro na usina. Assim, embora ele não tenha ascendido na escala social, ascendeu na hierarquia da usina, superando fases da mão de obra requerida, tornando-se, enfim, supervisor de trabalhadores. Depois do crescimento na hierarquia da fábrica,  seu pai manifestava orgulho pela nova condição profissional. “Obviamente, eu achava isto risível…”, comenta Eribon, que afirma não conseguir conceber o fato de que os desejos paterno e materno de se elevarem socialmente, que pareciam tão pequenos aos seus olhos, já fossem bastante grandes aos olhos de seus pais.

Quando, hoje, Eribon observa as dores que a mãe carrega no corpo, causadas por um trabalho fisicamente desgastante, o que vem à sua mente é o eufemismo de definir a situação dela como resultado apenas da desigualdade social, sob a qual se oculta uma crua realidade: a violência da exploração. Uma injúria inegável e posta em vários níveis. Para além da exclusão na esfera de valores que concede prestígio, ou desprezo, há o corpo, massacrado para que algumas pessoas possam decifrar Kant. Em Qui a tué mon père (a notar: o título é uma afirmação, não uma pergunta), Édouard Louis nomeia aqueles considerados por ele como responsáveis pela decadência progressiva do corpo de seu pai: Macron, Hollande, Valls, El Khomri, Hirsch, Sarkozy, Bertrand, Chirac e suas “políticas da morte”. A história do sofrimento de seu pai estaria, assim, vinculada a esses nomes. “A história de seu corpo é a história destes nomes, um após o outro, destruindo você”, escreve. A assertiva do escritor se refere a decisões políticas como as do governo Macron, que, no mesmo dia, retira cinco euros dos vencimentos mensais de pessoas mais vulneráveis trabalhisticamente na França, enquanto anuncia um corte de impostos para as pessoas mais ricas do país. Eles pensam que os pobres são muito ricos, e que os ricos não são ricos o suficiente”, critica Édouard Louis.

Apesar do vasto histórico de opressões e das formas maquiavélicas que elas assumem, as classes populares engrossaram a massa dos apoiadores da extrema direita. Ironicamente, mas não inexplicavelmente, como vimos também no Brasil, quem mais deveria ser contra o caráter antidemocrático dos discursos de Marine Le Pen, na verdade, o sustenta. O que ocorre entre essas pessoas que padecem de uma profunda injúria social é que elas encontraram, nessas figuras radicais, a representação de uma insatisfação difusa e dirigida contra as pessoas erradas, mas por uma razão específica. Não é por acaso que a mãe de Eribon passou a apoiar Marine Le Pen, apesar de ter apoiado anteriormente a esquerda trabalhadora. “A minha mãe acabou admitindo, depois de me ter sempre afirmado o contrário, que acabou votando pelo Front National (‘uma vez só’, ela enfatiza, mas eu não estou certo de que dá para acreditar nela quanto a isso)”, conta Eribon.  As razões dadas por ela: o voto no primeiro turno por Le Pen era apenas para dar uma advertência, apenas para avisar que as coisas estavam muito ruins. “As pessoas que votam por ela não a querem. No segundo turno, votamos normalmente”, justificava a sua mãe.

O que é interessante, como analisa Eribon, é que o apoio de sua mãe à extrema direita na França se traduz como um modo de defender (em silêncio, porque esse voto em Le Pen é quase secreto e não assumido, pelo menos no caso dela) aquilo que restava de uma identidade ignorada e desprezada, inclusive, pela esquerda institucional: “Por mais paradoxal que possa parecer, eu estou persuadido de que o voto pelo Front National deve ser interpretado, ao menos em parte, como o último recurso das classes populares para defender a sua identidade coletiva e, em todo caso, uma dignidade que elas sentiam como sempre pisada, e agora por aqueles que antigamente os haviam representado e defendido”. Aqui, a opressão se dá pela identificação, e não pela força, e de um modo maquiavélico, fazendo com que os oprimidos sejam cúmplices ativos da própria submissão. Por isso que é importante lê-los: para entender que uma sociedade opressora produz, intencionalmente, uma situação acachapante na qual os oprimidos são levados a endossar a própria opressão. Para compreender que o ódio, a raiva e o ressentimento, assim como a humilhação e a vergonha, são emoções experienciadas individualmente, mas cujo fundo subjetivo é falso. O fundo está fora, ele é público, é político e todos nós estamos profundamente relacionados com ele.

BÁRBARA BURIL, jornalista, doutoranda em Filosofia na UFSC e pesquisadora visitante na Universidade de Lucerna (Suíça).

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