Curtas

Todos os lugares

O artista Alex Červený lança o seu primeiro livro, uma publicação curiosa, divertida e ilustrada que se inscreve na grande chave da literatura de viagem

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Abril de 2020

Reprodução do óleo sobre tela 'Atlântida' (2011) é uma das que compõem o livro

Reprodução do óleo sobre tela 'Atlântida' (2011) é uma das que compõem o livro

Imagem Alex Červený

[conteúdo na íntegra | ed. 232 | abril de 2020]

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Todos os lugares é o primeiro livro do artista paulistano Alex Červený. E essa é uma afirmação bastante parcial, quando conhecemos vários livros coassinados por ele. Não apenas isso, mas livros que, sem sua presença, não teriam a menor graça. Ou livros que, com a sua presença, ganham imensa graça. Como diz o artista, há tempos ele desejava publicar um livro monográfico, mas, por vários motivos, isso não aconteceu. “Depois de 30 anos de trabalho, sem nenhuma publicação um pouco mais robusta em meu nome, além de pequenos catálogos e folders de exposições, achei que poderia me dar ao luxo de uma autoedição. Saiu em parceria com a galeria e sob o selo amigo da Circuito”, comenta, em conversa por e-mail.

A galeria a que ele se refere é a que o representa, a Casa Triângulo, e onde aconteceu exposição homônima, em dezembro de 2019, com o lançamento posterior do livro. E o “selo amigo” da editora Circuito diz respeito à amizade que Červený cultiva com os editores Renato Rezende, que também é artista visual (“Renato é genial e o livro saiu por insistência dele”, elogia), e Beto Furquim, que também é poeta e músico (“com ele, tenho mais dois livros: Banhei minha mãe e Labirinto”, situa). Parcerias que evidenciam, também, que nenhum empreendimento do tipo livro é um ato solitário, mas resultado de várias colaborações.

Sobre Todos os lugares, trata-se de uma publicação curiosa, divertida e ilustrada que se inscreve na grande chave da literatura de viagem, gênero que atrai muitos leitores e que pode abarcar publicações compostas por cartas, documentos, relatos, crônicas, anotações, desenhos, mapas, tergiversações, dicas, imaginação, invenção e o que mais couber dentro das nossas mentes, malas e blocos de notas.

Para compor seu livro, Červený optou pela estrutura de glossário, em que cada capítulo reúne lugares onde ele esteve em ordem alfabética. Somente as capitulares A, B, C, D... Z que abrem cada um deles já trazem uma diversão em si, porque o artista criou – a exemplo dos manuscritos e iluminuras antigos, referências que lhe são tão próximas – desenhos para as letras, em geral corpos nus masculinos em diferentes situações e posições, outra referência forte em sua obra. Nem todos os lugares visitados receberam comentários, alguns são apenas menções.

Aí vão uns exemplos:

BARCARENA
(cidade no Pará)

Acordo sufocado no meio da noite porque o ar-condicionado parou. Abrir a janela não é uma opção porque os insetos invadem. Sair do quarto e integrar-se à noite, sim. Tateio até a beira do rio e verifico que a escuridão é total. O rapaz me tranquiliza dizendo que a eletricidade precisa voltar em no máximo 40 minutos para que não se esfriem os altos-fornos da fundição de alumínio, pois o prejuízo seria monumental. Em menos de 40 minutos a luz voltou.

As capitulares adornadas com desenhos são um dos detalhes divertidos da publicação. Imagem: Divulgação 

FOUR CORNERS
(ponto turístico dos Estados Unidos)

Arizona, Colorado, Novo México e Utah. Quatro ângulos retos, alinhados aos pontos cardeais no meio do nada. Posicionando bem o pé no marco de bronze, você pode pisar nos quatro estados simultaneamente, porque não existem limites para o turismo.

SALTA
(cidade da Argentina)

Na Argentina meia-noite ainda é cedo. Saí em busca de mais um choripán, dei algumas voltas e uma hora depois encontrei algum som e luz. No auge da noite, surgiu no estreito palco uma formosa índia Aymará. Alta, nariz adunco e longos cabelos negros, dublando e dançando Toxie da Britney com perfeição raramente vista.

O leitor terá notado que humor, ironia e coloquialidade perpassam os verbetes criados por Červený ou, pelo menos, boa parte deles. Isso reverbera a disposição de espírito do artista: ele diz que já contou algumas dessas histórias em rodas de amigos. “Primeiro, achei que só os nomes dos lugares bastavam para rechear as páginas ilustradas, mas o Beto Furquim, um dos editores e grande amigo me olhou e... ‘mas, e as histórias?’. Ele conhece meu arsenal de histórias, que faz parte do meu ‘traquejo social’, para romper silêncios constrangedores, tentar animar rodas difíceis e disfarçar eu mesmo minha timidez.”

A composição de textos e imagens ao longo das páginas não é simétrica, embora haja algumas analogias; também não há relação de subordinação entre as duas linguagens, cada uma mantém sua relevância e autonomia. Estão ali reproduzidos desenhos, pinturas, aquarelas e obras em técnicas mistas de várias dimensões e datações, fiéis ao estilo figurativo detalhista deste artista.
Ele revela de onde surgiu a estrutura em verbetes do livro: “Esta lista de lugares surgiu primeiro na pintura Los hombres no deben llorar (canção do Leonardo Favio), que é uma choradeira só. Fui pintando pequenos bustos de homens sofredores num limbo escuro e começaram a surgir listas de ‘conforto’, de comidas, de músicas e de lugares. A lista dos lugares começou aí. Retirada para fora do quadro, ela foi ampliada, colocada em ordem alfabética”. A ideia de trazer os nomes dos vários lugares visitados pelo artista na sua grafia e no seu idioma originais foi de Furquim, um elemento que dá charme aos verbetes, como sugere Červený.


Capa de Todos os lugares, editado pela Circuito.
Imagem: Divulgação 

O livro tem apresentação de Renato Resende e traz, ao final, um texto crítico do escritor e filósofo Rodrigo Petrônio e uma cronologia do artista feita pelo curador Giancarlo Hannud, ambas de excelente qualidade.

Todos os lugares permite, assim, o encontro prazeroso com a figuração livre do artista, ligada ao seu cultivo pelas viagens e deslocamentos. Se, por acaso, nos deparamos antes com seu estilo – em ilustrações para livros ou outros suportes –, rapidamente reconhecemos sua gramática visual, que nos remete a algo simples, familiar e arcaico, a um só tempo.

No que diz respeito ao tema, relatos de viagem, Červený pontua a “admiração absoluta pela figura do artista viajante (de Eckhout, Ender a Claudia Andujar) e a vontade de incorporar minhas viagens como matéria-prima de um livro, e ser reconhecido também como artista viajante”. Deu certo.

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da revista Continente e professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.

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