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Poeta, escritor e um dos nomes mais importantes da tradução no Brasil, Paulo Henriques Britto é professor do curso e da pós-graduação em Letras na PUC-Rio e, nas suas poucas horas vagas, dedica-se ao piano. Nascido em 1951, no Rio de Janeiro, desenvolveu o hábito da leitura bem cedo. Descobriu a poesia aos 10, quando foi com a família morar nos EUA. Aos 12, já tendo aprendido inglês, suas aulas do idioma não costumavam ser destinadas ao ensino de gramática, mas a mergulhos em obras de autores como William Shakespeare, Emily Dickinson e Edgar Allan Poe. Alguns desses, outros escritores – como William Faulkner, Philip Roth, Charles Dickens, Wallace Stevens, Thomas Pynchon, Nadine Gordimer e Elizabeth Bishop – seriam, anos mais tarde, vertidos para o português por ele, num trabalho que hoje soma 120 títulos traduzidos.
Como poeta, Paulo Henriques Britto tem seis livros publicados, entre os quais Macau (de 2003, vencedor dos prêmios Portugal Telecom de Literatura Brasileira, hoje intitulado Prêmio Oceanos, e Alceu Amoroso Lima), Formas do nada (2012) e o mais recente Nenhum mistério (2018). Entre os temas recorrentes na sua poética estão as reflexões existenciais sobre “o nada”, que ele comenta mais adiante. Na ficção, lançou o volume de contos Paraísos artificiais, em 2004. Em processo de revisão, o próximo volume está previsto para ser lançado ainda este ano.
Com simpatia e simplicidade, Paulo recebeu a Continente para uma conversa, realizada em dezembro do ano passado na varanda do seu apartamento, contando com uma bela vista, iluminação e clima agradáveis, junto aos ruídos da cidade. Dali, avistavam-se as estantes, de sua sala, repletas de livros. Literatura, processos de criação artística, as experiências em mais de 40 anos dedicados à tradução e docência foram alguns dos assuntos que discutimos. Ele comentou, também, sobre alguns de seus poetas preferidos, em línguas portuguesa e inglesa, a paixão por música e um pouco de seu deslumbramento pela matéria-prima de seu ofício: a palavra.
Os poetas Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade
e João Cabral de Melo Neto. Imagens: Reprodução
CONTINENTE Como você está?
PHB Exausto (sorrindo)! O ano (2019) foi barra pesada. Fiz 11 viagens, estou com oito orientandos, minha vida está assim. O Departamento de Letras está sobrecarregado. Uma professora pediu aposentadoria há um ano e meio, só agora pudemos fazer um concurso para substituí-la. Então, ficou todo mundo jogando com 10 no campo. Finalmente, a partir de março, vamos ter uma pessoa para substituí-la. Mas, enquanto isso, todo mundo ficou sobrecarregado com o excesso de orientandos.
CONTINENTE E qual a sua expectativa para 2020?
PHB Para a PUC? A academia está toda em crise. Está havendo uma diminuição dos alunos. Não é nada catastrófico, mas é um panorama de crise. As turmas estão diminuindo, está todo mundo preocupado. Existe um plano concreto do governo de acabar com o ensino superior e com a pesquisa. Para quem é da área de pesquisa é preocupante, menos para mim, porque sou da rede privada. A PUC-RJ é mais ou menos privada, a chamada comunitária, que é privada, mas não tem fins lucrativos. Um status entre uma pública e uma privada. Enfim, não está ligada diretamente ao Ministério da Educação, então, a gente está um pouco mais protegido das loucuras do atual governo.
CONTINENTE Como era você como aluno, Paulo? A sua formação na graduação.
PHB Minha formação foi muito caótica. Passei a minha infância e adolescência achando que ia fazer Científico (antigo Ensino Médio). Fiz Científico, estava entre Matemática e Física. Gostava muito de Física e Astronomia… Mas aí, um ano antes do vestibular, troquei para Psicologia. Seis meses antes, troquei para Matemática. Fiz concursos para Teatro e para Matemática. Passei nos dois, mas não fui para Teatro. Fiz seis meses de Matemática e abandonei novamente. Fui estudar Cinema em Los Angeles, abandonei o curso. Fiz um ano e meio de Cinema, em São Francisco, abandonei o curso. Voltei para o Brasil e comecei a estudar Linguística. Quando estava mais ou menos no meio do mestrado, desisti, mas defendi, acabei a dissertação, só que decidi que não ia mais estudar Linguística. Comecei a trabalhar com tradução, na PUC-RJ. Continuei como professor de Tradução e cada vez mais fui gravitando para a Literatura, que, na verdade, nunca estudei formalmente. As únicas coisas que eu consegui completar na vida foram esse curso de Licenciatura em Inglês e Português, na PUC-RJ, e o mestrado em Língua Portuguesa, Linguística.
CONTINENTE Mas como é que a literatura chegou mesmo?
PHB Ah, sempre gostei de literatura. Mas, criado na burguesia da Tijuca, ninguém pensava em virar escritor ou tradutor. As opções eram seguir carreira militar, como o meu pai; ou ser professor, como a minha mãe, de preferência, de uma área científica que tinha mais prestígio. A coisa foi acontecendo.
CONTINENTE E você nunca cogitou seguir carreira militar, como o seu pai?
PHB Nunca. Nem fazer Medicina ou Engenharia. Meu pai era engenheiro, meu irmão e quase todos os meus primos também são. A opção rara de Letras, embora minha mãe fosse professora primária, ninguém esperava isso da gente. É uma coisa que foi indo.
CONTINENTE E por que traduzir somente inglês?
PHB Porque é a minha segunda língua. Fui para os EUA ainda pequeno, antes de ir estudar na Califórnia, já tinha ido com a minha família. Morei dois anos e meio lá e voltei perfeitamente bilíngue. Hoje, já não sou mais perfeitamente bilíngue, mas o inglês não é uma língua estrangeira para mim.
CONTINENTE Nunca pensou em traduzir outras línguas?
PHB Não sou bom em línguas. As pessoas acham que eu sou bom em línguas porque falo inglês muito bem, mas não vale. Eu era garoto, aprendi, mas nem sou muito bom. Estudei um pouco de latim, já não lembro muito bem. Estudei francês, meu francês é péssimo. Leio espanhol e italiano mais ou menos. Mas não sou tão bom em línguas, não.
CONTINENTE Você integra um dos grupos de pesquisa em tradução mais importantes do Brasil. Dos anos 1980 para cá, o que mudou?
PHB Ah, mudou muita coisa. Na área de tradução, mudou drasticamente. Quando comecei a trabalhar como tradutor, em 1973, 1974, a tradução era uma atividade quase clandestina. Não tinha tabelamento, não tinha sindicato. Eu estava presente na reunião que fundou a Abrates (Associação Brasileira de Tradutores), com o núcleo inicial do qual saiu o sindicato. Na área acadêmica, o campo de estudos de tradução começa nos anos 1970 também. A primeira obra importante, considerada um marco nos estudos de tradução, é Depois de Babel, do George Steiner, que é de 1975. (James S.) Holmes, o inglês radicado na Holanda, que vai fundar a área de estudos da tradução, também vai publicar seu primeiro trabalho ao final dos anos 1970. Comecei exatamente no momento em que a tradução estava virando uma área de pesquisa acadêmica e, no Brasil, estava se regularizando a situação de tradutor. A oficialização mesmo, se não me engano, foi em 1988, quando saiu a regulamentação pelo Ministério do Trabalho da profissão. De lá para cá, mudou muito. A tradução virou uma coisa mais bem-remunerada. Não muito bem, mas mais bem, certamente. E mais organizada. O nível das traduções de livros, dublagens e legendagens melhorou muitíssimo. Você não imagina como era ruim. No meu curso de Tradução, na PUC-RJ, uma vez por ano, a gente compara muitas traduções e as analisa. Eu sempre mostro para os alunos as traduções de poesia de um grande poeta modernista norte-americano, publicado no início dos anos 1960, e era inacreditavelmente ruim o nível das traduções. É coisa que, hoje em dia, nenhuma editora aceitaria um serviço daqueles. O nível geral da qualidade de tradução no Brasil mudou muito. Melhorou bastante.
CONTINENTE Por que formar tradutores?
PHB Para você trabalhar, entrar no mercado, não precisa de diploma. Na minha geração, ninguém tem diploma. Hoje em dia, se você aparece com o diploma de uma instituição respeitável, como a PUC-RJ — ou, mais ainda, a Universidade de Santa Catarina, que é o maior curso de Tradução do Brasil. Isso já é um diferencial. Nossos alunos fazem um estágio, nos dois últimos semestres em que eles já vão trabalhar. Vão para o mercado, atuar em tradução de filmes e em editoras. De certo modo, a gente já facilita a vida deles. Já é tipo meio caminho andado. Hoje em dia, você ter uma formação em tradução, primeiro que os erros que você cometeria no início da sua carreira, você comete na sala de aula, é uma coisa boa. Segundo que, pelo próprio diploma, pela formação e criação desse estágio que o aluno tem, ele já chega mais bem preparado para o mercado.
CONTINENTE Sei que você escreveu o livro A tradução literária (2012). Mas, com cada vez mais pessoas traduzindo textos, inclusive com o auxílio da internet e do Google Tradutor, o que é a tradução em 2020?
PHB Pois é, as pessoas tinham uma ilusão, há décadas atrás, de que a informatização tornaria o trabalho do tradutor supérfluo. O que aconteceu não foi nada disso, apenas mudou. Cada vez mais o tradutor é uma pessoa que trabalha em cima de um texto que já passou por uma máquina. No caso do tradutor de patentes, o técnico, hard, o trabalho que ele faz é de controle de qualidade. Aquilo já vai para um software que traduz, faz uma pré-tradução e ele faz os ajustes. O que é, em termos de quantidade de trabalho, menor, mas continua sendo uma atividade crucial, porque a máquina vai continuar cometendo sempre certos erros. Já o tradutor literário, como eu, a coisa é muito diferente. O que é que eu faço? Quando traduzo uma obra de não ficção, pego um parágrafo, coloco no Google Translate e aquilo vira uma base para trabalhar. Evita que eu pule uma frase. Mas, ali, eu vou aproveitar, talvez, só 50%. Quando é ficção, aí eu não faço isso. Poesia nem se fala. O máximo que faço, quando estou cansado, é ditar, para um programa que escreve o que estou dizendo, na língua em que estou falando. Depois eu colo, jogo no arquivo do Word. Quer dizer, então, o trabalho do tradutor mudou, a gente usa informática o tempo todo. Mas a ideia de que o tradutor seria dispensado, isso não. Quem é que vai preparar os softwares de tradução? São tradutores. Pessoas da área de informática, assessoradas por outras da área de tradução. A própria constituição desses softwares é um trabalho de tradutor, hoje em dia. Está apenas mudando a natureza, mas o trabalho do tradutor nunca será supérfluo. No caso da literatura, então, nem pensar.
CONTINENTE Qual o seu poeta favorito?
PHB Ah, é difícil dizer isso (risos).
CONTINENTE Então, escolhe alguns nomes.
PHB Em língua portuguesa, foram básicos para a minha formação Fernando Pessoa, Manuel Bandeira. Mais adiante, Drummond; um pouco depois, Cabral. Em língua inglesa, eu comecei a ler na escola, quando fui morar nos EUA, com uns 12 anos. A professora botou a gente para ler Shakespeare, Emily Dickinson, Edgar Allan Poe, Walt Whitman… Então, já comecei a ler esses caras feras. Uma coisa que teve muito impacto na minha formação foi a descoberta do Wallace Stevens – acabei virando tradutor dele. Foi o poeta de língua inglesa que, talvez, mais tenha me impactado.
CONTINENTE Imaginei que você citaria Fernando Pessoa.
PHB Ah, esse foi fundamental, sem dúvida alguma, para a minha formação.
CONTINENTE Qual poema você gostaria de ter escrito, Paulo?
PHB Uma porrada (risos)! Em língua portuguesa? Sei lá, uma porrada. Tabacaria, do Álvaro de Campos; Máquina do mundo, do Drummond; Uma faca só lâmina, do Cabral; tanta coisa do Bandeira que nem dá para dizer. Gosto muito do Jorge de Lima também, Invenção de Orfeu foi uma grande descoberta minha nos meus 30 e poucos anos. Coisa extraordinária descobrir aquele livro.
CONTINENTE E de língua inglesa?
PHB De língua inglesa? Alguma coisa da Bishop. Certamente, alguma coisa do Stevens, alguma coisa do Eliot, alguns outros poetas… Gosto muito do James Merril. Se eu tivesse tempo, até traduziria alguma coisa dele.
CONTINENTE Como nasce o seu primeiro livro de poemas Liturgia da matéria (1982)?
PHB Eu sempre escrevi e dizia para os meus amigos que só publicaria quando tivesse 30 anos. Li uma crônica do Bandeira, que tenho até hoje. Acho genial, quando um bando de adolescentes vai à casa dele: “Não, não mostre isso para mim que já sei que é ruim. Mas não joguem fora, eu joguei fora e me arrependo. Guardem, mas não publiquem nada antes dos 20 anos”. Aí, eu pensei nisso e disse: “Vou esperar até os 30”. Quando eu fiz 30, as pessoas começaram a me pressionar. Comecei a organizar o livro, que acabou saindo aos 32 anos.
CONTINENTE E o que mudou nas suas temáticas de lá para cá?
PHB Temática não mudou muito, mudou muito a técnica. Eu tinha pouca técnica, na época, e tinha vontade de trabalhar com formas clássicas de uma maneira diferente, como eu vi basicamente o Pessoa e o Bandeira fazerem. Queria fazer isso, mas não tinha domínio técnico, ainda era frágil. Então, eu escrevia um pouco com verso livre por não ter competência para trabalhar com a forma. À medida que fui pegando mais segurança, cada vez mais, fiz o que era, desde o começo, o meu projeto, que era trabalhar com formas fixas. Usando-as de uma maneira mais criativa, não muito rígida.
Foto: Monica Ramalho
CONTINENTE Na maioria dos seus livros, você escreve em outra língua. No caso, além dos poemas em português, há poemas em inglês também.
PHB É, são minhas duas línguas. Não escrevo em outras. Escrevo nas línguas que considero minhas, português e inglês. Leio muito em inglês, tanto quanto em português, senão mais. Falo pouco, hoje em dia. Mas leio muito e tenho a capacidade de pensar em inglês. Às vezes, tenho a ideia para um poema que já sai em inglês. Muitas vezes, o poema sai em inglês antes de sair em português. Muitas vezes, escrevo em português e faço uma versão em inglês. Todos os meus livros têm poemas traduzidos.
CONTINENTE Como é se autotraduzir?
PHB Chamo de tradução, porque é uma tradução mesmo. Não faço outro poema. Não caio naquela tentação de revisar drasticamente. Guardadas as diferenças de sempre, tento fazer o mesmo poema em outra língua. A ideia é essa.
CONTINENTE Nos anos 1990 e 2000, um público mais amplo pôde conhecer sua obra, por conta das premiações. Para você, hoje em dia, onde se situam as cenas poéticas anteriores? A dos anos 1980, a Geração Mimeógrafo? E os contemporâneos?
PHB Bom, muita coisa que você está perguntando, mas vamos lá. Do ponto de vista etário, eu pertenço à Geração Mimeógrafo, mas tive uma formação muito diferente da deles. Desde o começo, eu tinha o interesse de fazer outro tipo de poesia. Eles começaram a publicar muito cedo, jovens, nos anos 1970. Só publiquei nos anos 1980, aí ficou parecendo que sou de outra geração. De lá para cá… É difícil a gente ver o presente, é mais fácil a gente olhar para trás e ver retrospectivamente o que foram os 30, 40 anos atrás. Todo ano, dou um curso na pós-graduação (em Letras) na PUC-RJ de poesia contemporânea. Pego três ou quatro poetas e estudo as obras deles. Estou com esse curso há quase 10 anos, então, já tenho uma ideia razoável da produção contemporânea. Agora, é um recorte muito estreito. Acabo privilegiando poetas que são da região Centro-oeste e da região Sul, que eu tenho mais contato. Tenho menos contato com poetas do Nordeste e do Norte. Como não frequento blogs e revistas de poesia, porque não dá, só leio livros, e já é um volume inacreditável. Você não imagina a quantidade de livros de poesia que recebo pelos correios. Fora os que eu compro. Tenho duas estantes cheias só de poesia e não está cabendo mais. O que posso dizer é que você não tem, pela primeira vez em muito tempo no Brasil, uma situação que de um mainstream e uma ou duas divergências. Por exemplo, no século XIX, você tinha o mainstream, que era Parnasianismo, e uma dissidência, o underground, que era o Simbolismo. Depois, você vai ter, ainda esse Parnasianismo, ele vai se manter como mainstream. A partir dos anos 1920, os modernistas são o underground. Uma série de movimentos dentro do Modernismo e dissidências. Mais ou menos a partir da Tropicália, do AI-5, em 1968, a situação muda drasticamente no Brasil. A partir daí, você não tem mais movimentos e contramovimentos. Não tem mais mainstream e áreas divergentes, o que acontece é uma proliferação de tendências, que as pessoas futuramente vão conseguir catalogar melhor do que a gente agora. A primeira foi a chamada “poesia marginal”, a Geração Mimeógrafo, que também durou um tempo, mas já se dispersou. Claro que tinham poéticas diferentes, Ana Cristina César era diferente do Chacal, mas havia elementos comuns. A partir da época em que começo a publicar, nos anos 1980, não tem uma coisa muito clara. Você pode apontar tendências mais formalistas; um débito muito forte com o Concretismo, que é o caso do Ricardo Aleixo. Eu o estudei, nesse semestre, com meus alunos. Há uma tendência cada vez maior de uma poesia escrita por mulheres que afirmam o feminino. Tem um grupo muito grande de poetas jovens, que tematizam a questão da viagem, da mobilidade, do movimento, uma poesia que se aproxima da dicção de prosa, que fala o tempo todo de lugares, pessoas conhecidas. Isso é um tema comum, vários poetas contemporâneos trabalham assim. Você tem uma poesia mais étnica, que trabalha com elementos de negritude. Não chegam a ser escolas ou correntes. Como classificar, por exemplo, o Ricardo Aleixo? Estou com ele na cabeça porque acabei de estudá-lo. É um poeta que tem temas da negritude, mas, acima de tudo, é um pós-concreto. A gente olhando ao redor vê muita diversidade e não tem uma coisa que polarize, como teve durante a poesia marginal, o Concretismo. Não tem mais isso. Não tem um mainstream contra o qual há dissidências. Só há dissidências, vamos dizer assim.
CONTINENTE É difícil falar sobre si, mas, como você disse… Você teve uma formação diferente do pessoal da Geração Mimeógrafo. Como vê a sua poesia? Será que dá para se classificar?
PHB Trabalho uma poesia mais formal, tem uma temática lírica mais tradicional, convencional. Acho que meu débito principal é com Bandeira, Drummond, Pessoa e os poetas modernistas ingleses.
CONTINENTE Como é sua dinâmica de escrita do poema?
PHB Tem surtos, tem épocas. Passo uns três ou quatro meses produzindo muito, depois paro. Por exemplo, estou numa fase de uns seis meses que escrevi uma loucura. Agora, secou. Estou há um tempo, desde novembro, que não faço nada. Depois volta. Não tem nada a ver com estar ocupado ou não. Estava arrancando os cabelos, trabalhando e produzindo loucamente. Agora que está baixando um pouco a poeira, não está dando impulso de escrever nada. Com o conto é mais raro ainda. Uma ideia para um conto, tenho uma vez a cada cinco anos. Tento elaborar. Fico cinco, 10, 20, 30 anos trabalhando num conto. Até que um dia ele sai.
CONTINENTE O que você faz nas suas horas vagas?
PHB Não tenho (risos)! Quando não estou dando aula, estou traduzindo. Quando não estou traduzindo, estou cuidando do meu neto ou escrevendo um paper… Meu único lazer é estudar piano. Tento estudar 40 minutos por dia, mas hoje, por exemplo, não vai ter. Vou pouquíssimo ao cinema, e tenho a vida social, esses grupos todos de amigos que me convocam. Tenho mil coisas para fazer, vou a uma média de um lançamento por semana. Não estou exagerando. E tem pilhas de coisas para ler.
CONTINENTE Você sempre tem muita coisa para ler.
PHB Leio muito. Tenho que ler cada vez mais pelo meu trabalho. Tento acompanhar a poesia contemporânea brasileira e a portuguesa também. Estou com um amigo lá (em Portugal) que trocamos livros. Tudo o que sai interessante de poesia, ele me manda. E mando para ele. Então, estou mais ou menos por dentro de poesia portuguesa. Coisa que, há 10 anos, eu não sabia nada do que estava rolando lá. Poesia de língua inglesa, acompanho menos ainda, mas, quando vejo algo muito importante sendo falado, eu corro atrás e leio. O que me interessa mais, o que tento mergulhar mais são os modernistas, até Bishop, mais ou menos. Os modernistas da primeira geração são os que conheço melhor, que estou tentando estudar mais. Os contemporâneos chegam de vez em quando, mas não dá. É muita coisa. Também estou tentando ler romances, acompanhar e preencher alguns buracos da minha formação. Estou lendo Os moedeiros falsos, de Gide agora, que é um autor que li pessimamente. Volta e meia, pego um escritor e digo: “Devia ter lido esse cara e não li”. Aí, começo a me obrigar a ler. Minha formação foi muito mais de língua inglesa e portuguesa, então, no francês tem deficiências muito graves. Só comecei a estudar poesia francesa mais a sério há 10 anos.
CONTINENTE Com pouco tempo livre, o que você faz para espairecer e se divertir no Rio de Janeiro?
PHB Basicamente, pegar um cinema, sair com os amigos. É um monte de amigos! Estudar piano que, para mim, é uma terapia ótima. Brincar com meu neto, talvez, seja a minha melhor terapia. É porque são momentos que eu não dependo tanto das palavras. A palavra, para mim, é trabalho. Quando estou estudando piano, como sou um péssimo pianista, dá um trabalho desgraçado aprender uma peça muito simples. Tento me concentrar em movimentos físicos, que não têm nada a ver com palavras. Isso é muito bom para mim. Ouvir música também, eu ouço muita música.
CONTINENTE E você prefere ser pai ou avô?
PHB (Abre o sorriso) Ah, ser avô é muito bom. É diferente, mas ser avô é maravilhoso.
CONTINENTE Um de seus livros de poesia se chama Formas do nada (2012). Como você pensa o mundo e a existência a partir desse nada? Que nada seria esse?
PHB Tem uma visão que é muito arraigada em mim. Eu me formei na época que o existencialismo era moda. Cresci lendo Sartre, esse pessoal. Então, tenho muito claro na cabeça, com muita convicção, que não há nada previamente dado na vida. A vida quem faz é você, você faz durante um tempo o que fizer, depois morre e acabou. Sai do nada e volta para o nada. O que você tem é que manipular essas formas. Tem o momento que você vive e precisa trabalhar esse momento. Acho que é um dos temas que mais vão aparecer. Eu li muito Wallace Stevens, ainda no período de formação, e ele é um poeta muito curioso, porque é claramente materialista, mas ser materialista para ele é um problema. Num dos grandes poemas dele, que é o Sunday morning, ele diz que Deus morreu, mas existe agora o belo, a arte, que o substitui. Tem essa necessidade de substituir alguma coisa. E eu, lendo ele, pensava: “Poxa, não tem essa necessidade de substituir, porque não tem nada antes, não faltou nada”. Na geração do Stevens havia isso. Relendo agora a obra toda do Beckett, falei: “Como o religioso está presente em Samuel Beckett?”. Para ele, a não existência de Deus é um problema. Para mim, não é problema nenhum. Para mim é um “não problema”. Existem questões, como lidar com a morte e tal. Mas isso não se coloca sob uma ótica pós-religiosa. No próprio Eliot, a religião é uma construção que ele vai fazer para substituir o lugar de uma fé espontânea, que ele não tem, há muito tempo. Minha maneira de abordar esses problemas é um pouco diferente da geração do Sartre, do Wallace Stevens e esse pessoal todo, porque eles partem de uma coisa que, para eles, é um problema. Para mim, não é um problema. É um ponto de partida. Então, é um tema que vai ser recorrente. Isso não é visto em si como uma falta e, sim, como o que é ou o que não é.
CONTINENTE A Flip escolheu homenagear a poeta Elizabeth Bishop. O que você acha dessa escolha?
PHB Olha, não acho nada. Estão me ligando, tive várias conversas com eles. Várias pessoas me procuram. Minha primeira reação foi que a ideia foi muito boa, acho ela uma grande poeta. Agora, as pessoas estão levantando coisas que acho que não são irrelevantes. Será que justamente agora, quando a gente tem um governo de extrema direita, seria o momento de, pela primeira vez, escolher uma escritora que não só não é brasileira? Que isso é o de menos, mas que ela, privadamente, em cartas que não foram publicadas, sem dúvida alguma, manifestou adesão ao regime militar? Quer dizer, até que ponto isso não seria algo a ser considerado pelo pessoal da Flip? Dada a reação de muita gente a isso, permanecer na posição original deles, será que é uma atitude de firmeza? Ou será teimosia? Confesso que não tenho uma coisa clara na minha cabeça ainda. Estou ouvindo todo mundo, conversando com todo mundo. Estou achando que, de modo geral, a tendência das pessoas é não gostar da ideia. Eu temo que se a Flip levar isso a cabo, que o tema que menos se discuta na próxima edição seja literatura. Vai ser uma Flip de pessoas trocando desaforos com a absoluta falta de civilidade que hoje em dia impera no Brasil. É tudo mais grosseiro, mais agressivo. E as pessoas da Flip acham que temos que ter uma discussão racional sobre isso. Vocês estão no Brasil de hoje? Ou estão chegando de Marte? Quem está tendo uma discussão racional hoje em dia no Brasil? Não estou vendo discussão racional em lugar nenhum, seria ótimo haver discussão racional sobre isso. Eu acho que não tem clima no momento. Não estou de cabeça feita ainda. Ainda vou discutir, vou ter mais umas reuniões com pessoas da Flip, mas, no momento, me inclino para a ideia de que talvez fosse melhor homenagear… o Cabral, que faz 100 anos de nascimento agora e que é uma pessoa que está acima do bem e do mal. E até promover uma mesa, discussão, sobre o caso, não varrer para debaixo do tapete. Mostrar o que houve, mas não sei se a homenagem seria muito boa. Eu próprio estou na dúvida, consultando vários amigos. Até para levar uma posição que seja representativa. Pessoalmente, minha primeira reação foi muito positiva. “Que bom, a Bishop. Vão me chamar lá, vou falar sobre Bishop”. Mas a reação e o nível de passionalidade com que as pessoas estão reagindo não são muito promissores.
CONTINENTE A gente falou de tradução de poesia, mas você também é um grande tradutor de romances.
PHB É, o que mais traduzi foram romances.
CONTINENTE E como é sua relação com a prosa?
PHB Na verdade, eu sempre quis escrever prosa, mas tenho muita dificuldade. Consegui escrever uns contos, deve sair um algum dia. O segundo (de prosa) já está mais ou menos pronto.
CONTINENTE Seu primeiro livro de prosa é o Paraísos artificiais (2004), né?
PHB É sim, o segundo deve sair este ano, se tudo correr bem. Isso ainda não está muito definido.
CONTINENTE Esse próximo já tem título?
PHB Provavelmente vai ser O castiçal florentino, é um conto que saiu na revista Piauí. Na verdade, minha grande paixão é a música, não é nem a literatura. O que gosto mesmo é de música. Se eu tivesse o mínimo de talento musical, não tenho a menor dúvida que chutaria tudo e faria música (risos).
CONTINENTE O que você gosta de escutar?
PHB Hoje em dia, 50% do tempo, ouço Bach, os outros 50%, ouço outros compositores eruditos. Ouço muito jazz. Gosto muito de cool jazz, bebop, Miles Davis… MPB, eu ouço muito menos que antigamente, mas ainda acompanho. Mais coisas do meu tempo que coisas novas. Coisas novas, escuto pouco. Rock, ouvi muito uma época. Hoje em dia, ouço pouco e, quando ouço, é mais rock de minha época também.
CONTINENTE Conta mais dessa sua paixão pela música.
PHB Pois é, estudei piano quando era menino, depois larguei. Estudei canto uma época, fiquei apaixonado pelas canções de Schubert, aí, comecei a estudar canto, acompanhando no piano. Depois larguei o canto. Há alguns anos, eu comprei o piano e voltei a estudar meu repertório básico, que é Bach, Bethooven, algumas coisas mais simples…
CONTINENTE Precisa de muita dedicação.
PHB É, 40 minutos por dia e, mesmo assim, não sendo todo dia é muito pouco. São peças fáceis. Meu repertório nunca passa de uma dúzia de peças. Quando eu treino uma nova, já começo a esquecer uma velha, que não vou ter tempo de tocar.
CONTINENTE Você pensa em pesquisar mais sobre música?
PHB No momento, minha pesquisa na PUC-RJ é em cima de tradução de letras de músicas. Estou orientando dois alunos que estão trabalhando com isso. Tem um amigo meu, de Curitiba (PR), que é o Caetano W. Galindo, que traduziu Ulysses, do Joyce. Ele também está interessado no assunto, estamos escrevendo um artigo a quatro mãos, que um dia a gente apronta nesse verão. Um aluno está trazendo música popular. Quer dizer, como traduzir uma letra que possa ser cantada na melodia original? A ideia é essa.
CONTINENTE Voltando à tradução, como foram suas primeiras experiências na atividade?
PHB Eu tinha acabado de chegar da Califórnia e arrumei emprego num curso de inglês que tinha aqui no Rio, bem tradicional. Mas eu estava saindo da casa dos meus pais, pagando aluguel, aí precisava de um dinheirinho extra. Um amigo meu, que hoje em dia é médico, estava fazendo uns bicos de tradução, foi ele quem me levou para a reunião. Quando eu vi, estava fundando a Associação Brasileira de Tradutores (Abrates), junto com Raimundo Magalhães Júnior, Paulo Rónai, criaturas que nunca tinha visto. Todos na faixa dos 70 anos, eu tinha 22 anos, você imagina… Então, esse meu amigo me levou e me botou na editora Imago, que tinha em Copacabana, que fazia tradução de psicanálise. Comecei a fazer revisão, a Imago tinha contratado muita gente de tradução, me botaram na revisão. Fiquei pouco tempo na Imago, depois pulei fora. Traduzi um pouco para a L&PM, várias editoras, até que comecei a trabalhar para a Brasiliense, que era uma editora importante nos anos 1970. Fiz uma coisa ou outra para a Nova Fronteira. Na Brasiliense, fiquei conhecido do Luiz Schwarcz, quando ele saiu para abrir a Companhia das Letras, ele me levou junto. Aí, abandonei a Brasiliense e fui para a Companhia das Letras, foi uma sorte. Se tivesse ficado lá… Fiz o primeiro livro que vendeu na Companhia das Letras, que foi o Rumo à Estação Finlândia (1940/1986), de Edmund Wilson, uma tradução que saiu em milhões de edições. Basicamente, desde então, traduzo mais para a Companhia das Letras. Uma ou duas que traduzo para outras pessoas. Antes de entrar para a pós-graduação, em 2002, fazia muita produção avulsa de versões para inglês de trabalhos acadêmicos. Coisas bem pagas, com prazos apertados. Mas, quando entrei para a graduação, comecei a orientar, dar aula na pós, fazer muitas pesquisas, ter que publicar… Abandonei, praticamente, as versões. Hoje em dia, estou em um ritmo muito devagar. Faço um livro ou, no máximo, dois, por ano, para a Companhia das Letras. Praticamente, não trabalho para mais ninguém.CONTINENTE Qual foi o texto mais difícil de traduzir até hoje?
PHB O arco-íris da gravidade (1973), romance do Thomas Pynchon. Livro mais difícil que eu já traduzi. Pynchon é uma pessoa ótima. Responde, dá todas as dicas. As cartas longuíssimas que ele mandava, respondendo cada dúvida minha. Uma maravilha trabalhar com o escritor. Livro difícil, né? Mas o cara te ajuda. Pior era traduzir quando o autor já morreu, como foi o caso de O som e a fúria, do William Faulkner. Tinha uma palavra que eu não sabia o que era. Escrevi para uma norte-americana, que estava aqui, no Rio. Ela trabalhava em Los Angeles com um professor que era especialista em Faulkner. “O que quer dizer essa palavra?”, ela perguntou ao professor dela. “Não sei, ninguém sabe”. A palavra não tem no dicionário. Depois que ele morreu, descobriram que ninguém sabia. (O termo é flak-soled, para descrever a mão de uma personagem. Ninguém até hoje faz ideia do que seja.)
CONTINENTE O que faz um bom tradutor, a seu ver?
PHB Minha ideia e os poucos escritos teóricos de tradução que eu tento desenvolver é a seguinte: você vai produzir um outro texto, em outra língua. Mas esse outro texto tem que ser tal, que as pessoas que conhecem o original e a outra versão vão dizer: “Ah, é o mesmo texto”. Você leu o mesmo livro. Claro que não é o mesmo texto, é outra língua, tudo diferente. Mas é o mesmo em elementos, no caso do romance, da história, dos personagens, no estilo. No caso do poema, na forma. Quando agrega uma série de elementos que uma pessoa de fora que conhece diz: “Isso aqui é uma tradução. São o mesmo tempo”. Então, o tradutor fez o trabalho dele. A ideia é essa. Claro que nada disso é uma definição fácil, tudo isso é altamente sujeito a chuvas e trovoadas, mas, em última análise, é isso.
CONTINENTE Paulo, quanto de ficção é necessário para sobreviver?
PHB Para mim, um bocado. Não sei botar em números, não, mas eu preciso. Gosto de cinema, de ler romances. Acho importante.
CONTINENTE E Música.
PHB Música para mim é diária, é uma coisa que eu não vivo sem.
CONTINENTE Pronto, é isso. Obrigada, Paulo.
PHB De nada, minha querida. Mais um copinho d’água?
ERIKA MUNIZ, jornalista e graduada em Letras.