Baixinho, branco e com a testa vermelha queimada de sol, sem alguns dentes e com apenas alguns fios de cabelo ruivo na cabeça, Francismar falava com os dois costureiros. O mais novo estava sentado num balde virado, fechando um buraco numa chuteira verde neon. O outro, que entendi ser o seu pai, era um idoso negro e com uma longa barba grisalha. Sem camisa, começou a ajeitar minha bolsa deitado num papelão estirado na rua suja.
“O cabra só vai sentir a besteira que fez quando levar bala”, resmungou o velho. Me abaixei para escutar melhor e ele repetiu o resmungo. O mais novo riu. Eu olhei — mal dava pra ver seus olhos escondidos pelo boné e pelo fundo de garrafa — e ele apontou para Francismar.
Aguardando sua chuteira ficar pronta, Francismar olha para mim e dispara ao amigo: “Que nada, eu gosto dela, ela gosta de mim e é essa safadeza mermo. Eu gosto de ficar com ela e ela gosta de mim”. O costureiro mais novo, com agulha entre os dentes, alerta: “Toda vez é isso, mas agora tu vai se lascar. Tanta mulé no mundo e tu vai ficar logo com a casada com um cara desse? Tá pedindo pra morrer”.
Com as sobrancelhas franzidas, Francismar levanta e tenta parecer maior: “Que nada! Tenho medo, não. E tu sabe que eu só gosto assim!”. O sapateiro mais novo provoca: “O bicho volta pra lá daqui a dois dias, tu não conseguia esperar?”. O mais velho, apontando a agulha para Francismar, disparou rindo, com ares de profeta: “Tu vai é morrer, safado! Todo mundo na favela sabe que ele já tirou a tornozeleira e agora vai atrás de tu”.
Ainda perplexo com a situação, pela coisificação de uma mulher que não conheço, perguntei que tornozeleira seria essa. O sapateiro mais novo me disse que trata-se da tornozeleira eletrônica para detentos que se encontram em liberdade.
“Oxe, deixa ele vir! Ontem eu fui subir a favela e ele tava lá, no bar de Toninho. Ficou me olhando, e eu ainda subi pra ficar com a mulé dele”, contou Francismar, quase dando pulos e se projetando para frente. Nesse momento, questionei o porquê de ele se envolver logo com a esposa de um presidiário. Até um estudante de classe média sabe que “talarico morre cedo”.
“Eu num gosto de sair com muita mulé, não sou raparigueiro, meu negócio é mulé casada. E outra: eu gosto de botar gaia em cara perigoso. Se eu vejo que o marido é trouxa, eu não faço nada. Agora, se o cara é traficante, matador, se bate nela ou essas besteiras, eu vou mermo! É pra ele sentir na gaia o mal que faz ao povo”, afirmou Francismar, com toda a pompa de justiceiro social.
Um velho manco, com a pele vermelha queimada de sol, se aproxima da conversa e dá um tapa nas costas do justiceiro social incomum. “Eita, gota, Francismar, fiquei sabendo que tu vai morrer!”, disparou o senhor, cego do olho direito, gargalhando com sua barba malfeita. Francismar fitou o nada por alguns segundos, com olhar sem expressão. Não demorou para que brincasse com o idoso: “Vamo comigo resolver o problema?”.
Minha bolsa ficou pronta. Olhei a costura e o velho avisou-me que devia só R$ 3. Dei uma nota de R$ 10 e ele perguntou ao mais novo se ele tinha troco. Com a negativa, deu um assobio grande e chamou alguém identificado como ‘Neguinho’. Neguinho se aproximou com sua bike e, ao contrário do que pensei, não era jovem. Era um idoso que chegou com a camisa de botão aberta e mostrando sua pança redonda com o umbigo para fora. Antes de pegar a nota do costureiro para trocar o dinheiro, disparou para Francismar: “Ei, mermão, tu tá metido a corajoso agora, né? Fiquei sabendo que tu tá marcado pra levar bala! Se eu fosse tu, só voltava pra casa quando o corno voltar pro presídio”.
“Meu irmão, quando ele voltar pro presídio, eu vou mandar é áudio falando que vou casar com a mulé dele”, respondeu Francismar. Todos riram e o costureiro mais novo disparou: “Manda logo um vídeo! É bom que tua cara fica gravada”. Peguei meu troco, minha bolsa e, mesmo perplexo e curioso pela possibilidade da morte deste “justiceiro” incomum que acabara de conhecer, apenas agradeci o serviço.
Quando dei as costas, Francismar me provocou, rindo: “Ei, tu que é grande, me dá teu número pra gente resolver essa parada!”. Escutei a gargalhada geral, respondi que “sou ruim de briga” e desejei-lhe apenas boa sorte.
Não sei qual foi o destino do justiceiro social incomum, mas, desde então, passei a escutar com mais atenção o Bandeira 2 e ler o Aqui PE, esperando não encontrar seu nome no subtítulo de uma manchete que anuncie “crime passional”.
VICTOR AUGUSTO, jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e estagiário da revista Continente.
*Esta crônica é baseada em diálogos reais. Para preservá-los, os nomes dos personagens foram alterados.