Impossível falar de memória sem vinculá-la à cultura. Em países onde ainda ecoam os sons das correntes dos colonizadores, como o Brasil e seus vizinhos latino-americanos, as políticas culturais têm um papel fundamental não apenas de reconhecimento festivo da diversidade, mas de afirmação da existência e da cidadania plena dos seus diversos povos e segmentos sociais. Por isso, os posicionamentos da nova secretária especial de Cultura do Governo Federal, Regina Duarte, no seu pronunciamento de posse, em 04 de março, e na entrevista concedida ao programa Fantástico, da Rede Globo, no dia 09 do mesmo mês, preocupam.
Primeiramente, política pública não se faz com jogo cênico, emaranhado de mãos, caras e bocas, deslocados do sentido do bem comum e desconsiderando a diversidade de sujeitos que integram a nação. Não se faz política pública negando as obrigações do Estado junto às minorias, ainda mais no Brasil, onde as chamadas minorias representam, na verdade, a maioria da população.
Mas não podemos ser ingênuos, a moral cristã conservadora é a grande balizadora do modus operandi dessa gestão, presente nas narrativas defendidas junto ao seu eleitorado, e, portanto, de definição das categorias “maiorias” e “minorias” pelas suas lentes. A busca pelo controle dos corpos e da sexualidade de mulheres e do segmento LGBTI+, presente em outras políticas setoriais, igualmente se manifesta nas de cultura. No ano passado, o Observatório de Censura à Arte registrou pelo menos 23 denúncias de cerceamento da liberdade artística no país. Parte considerável delas envolvia a temática LGBTI+.
Ao afirmar, em entrevista, ao jornalista Ernesto Paglia, da Rede Globo, que “o dinheiro público deve ser usado de acordo com algumas diretrizes importantes, porque é o que a população que elegeu este governo espera dele”, seguido de outra resposta burlesca: “você não vai fazer filme para agradar a minoria com dinheiro público”, a secretária demonstra que o Governo mantém os olhos fixos no retrovisor da história. Nesse espelho, é possível avistar o reflexo da trajetória patrimonialista, personalista e patriarcal da política nacional, memórias de um passado que se faz presente.
Não à toa, ser também passível de crítica o dito patriotismo, apresentado por Regina Duarte em sua posse, como motivo para aceitar o casamento com o governo Bolsonaro. Segundo a secretária especial, o fez “antes que algum aventureiro lance mão” - utilizando, contraditoriamente, trecho da canção de Chico Buarque, crítica ao período ditatorial, tão reverenciado pelo ideário bolsonarista. A fala truncada remete a práticas conhecidas na história do país. É de conhecimento comum, as inúmeras experiências brasileiras de instrumentalização do sentimento patriótico para articular a população, inclusive, contra a democracia, em sacrifícios irracionais dos seus próprios direitos.
É particularmente perverso e perigoso quando esse suposto patriotismo aparece discursivamente emaranhado a uma devoção quase messiânica a um líder político. Estabelece-se o apego aos ideais do líder, e não aos interesses e necessidades de uma nação plural e multicultural como a nossa. Dividem-se os cidadãos em nós e os outros a partir da máquina de Estado. São a polarização e a segregação instituídas como política de Estado. É a negação da democracia.
A democracia, enquanto exercício de “autoridade partilhada”, para utilizar a definição do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, não pode ser refém do Estado burocrático neoliberal, tampouco ter como base a liderança carismática de uma figura política a oferecer soluções simplórias desconectadas do cenário complexo no qual se está. Tal quadro só agudiza a crise de representação política e de credibilidade nas instituições públicas, as quais afastam as pessoas da política, ampliando o fosso entre a busca do bem comum e a busca das recompensas individuais.
Ao promover uma espécie de inversão sobre as relações secularizadas de autoridade e, portanto, naturalizadas, a cultura democrática aparece como uma ameaça aos poderes constituídos, sendo alvo de uma série de iniciativas que tentam deslegitimá-la, apresentando-a como incoerente, desordeira, ineficiente e ultrapassada.
Por isso mesmo, o sinal de alerta (mais uma vez) se acende quando a secretária especial afirma que as minorias têm direito à liberdade de expressão desde que busquem as suas formas de apoio na sociedade civil. Assim como quando avalia o engajamento de parte da classe artística ao movimento #EleNão como causador da polarização política no país e “um tiro no pé”. Por que seria “um tiro no pé”? Nesse contexto, o governo federal, por meio de sua agente pública, parece assumir que busca súditos e não cidadãos com direito legítimo à expressão, ao posicionamento ideológico, do mesmo modo que aparenta instrumentalizar a relação entre artistas, produtores culturais e governo a partir do financiamento. Isto não é pacificação.
É preciso estar atento, pois a aversão à cultura democrática se espraia por meio de expedientes sutis e dispositivos discursivos, os quais não se pode desprezar. Nas narrativas autoritárias, dos que odeiam a democracia, nem sempre está presente, explicitamente, a rejeição ao modelo, mas, sim, a acusação de um suposto desserviço prestado por quem questiona o poder constituído, manifestando-se a favor da diversidade e das minorias. Joga-se com os recursos públicos, fonte primordial para a produção cultural nacional, e com a memória, desenvolvendo estratégias de interdição da comunidade artística e da circulação de informações e de ideias.
Esse não é um fenômeno novo na história do país. Liberdade de imprensa, liberdade artística e movimentos sociais ativos são termômetros da democracia. Caminham lado a lado. Complementam-se. Por isso, pelo que foi e contra o que foi, é urgente a pressão social.
NATALY QUEIROZ, jornalista, doutora em Comunicação e professora universitária.