Depoimento

Hilda Hilst: 90 anos da mulher da Casa do Sol

O curador, jornalista e artista narra sua convivência com a escritora paulista que faria 90 anos este mês

TEXTO Jurandy Valença

01 de Abril de 2020

No jardim da Casa do Sol, a escritora rodeada de alguns dos seus muitos cachorros

No jardim da Casa do Sol, a escritora rodeada de alguns dos seus muitos cachorros

Foto Eduardo Simões/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 232 | abril de 2020]

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Este ano se completam 90 anos do nascimento da autora paulista Hilda Hilst (1930–2004), e uma série de comemorações está em curso desde fevereiro nas cidades de São Paulo e Campinas, além de outras do país. No dia 15 de março passado encerrou em São Paulo, no Museu da Imagem e do Som, o projeto Revelando Hilda Hilst, com curadoria minha, e que reuniu fotógrafos, atores, atrizes, dramaturgos, cineastas, jornalistas e filósofos em torno da autora. O projeto foi uma homenagem que apresentou uma Hilda com múltiplas facetas, além da escritora, poeta, dramaturga e cronista, mas também uma desenhista que criava seres híbridos que se situavam entre o humano, o animal e o vegetal em uma atmosfera que dialoga muito com o surrealismo. O projeto abrigou uma exposição que reuniu fotografias e desenhos de Hilda nunca antes exibidos em público, além de uma instalação sonora inédita na qual é possível ouvir a sua voz por intermédio de gravações originais realizadas na década de 1970.

A mostra também apresentou leituras de seus poemas por artistas como a cantora e pianista Cida Moreira, as atrizes Bete Coelho e Glamour Garcia, a cantora e ativista Preta Ferreira, a jornalista Erika Palomino e o estilista Dudu Bertholini; e leituras dramáticas de duas – de suas oito peças – escritas em 1968, em plena ditadura militar, O visitante e As aves da noite. A primeira contou com a participação de Camila Pitanga, Pascoal da Conceição, Samuel de Assis e Thais Peixoto, com direção de Claudia Schapira, uma das fundadoras do premiado Núcleo Bartolomeu de Depoimentos; e a segunda leitura com nomes como Carol Duarte, Flávio Tolezani, Geraldo Rodrigues, Jhonny Salaberg, Matheus Nachtergaele, Nelson Baskerville e Nilton Bicudo, com direção de Sandra Corveloni, integrante do Grupo Tapa, que ganhou em 2008 o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes.

Também foram exibidos o documentário Hilda Hilst pede contato, de Gabriela Greeb, e Unicórnio, de Eduardo Nunes. O primeiro foi lançado durante a Flip 2018, que homenageou a autora. O filme é um misto de documentário e ficção, e narra de forma poética o período no qual Hilda tenta contato com os mortos, baseada em estudos de um físico sueco. Durante anos, na década de 1970, ela realizou inúmeros registros em áudio de suas tentativas. Esse material é o fio condutor do filme, que embora tenha uma atriz, Luciana Domschke, interpretando a autora, é a voz de Hilda que se ouve o tempo todo. O segundo filme, escrito e dirigido por Nunes, é uma adaptação de dois contos de Hilda Hilst: Matamoros, presente no livro Tu não te moves de ti, e O unicórnio, do livro Fluxo-Floema. O elenco reúne Patrícia Pillar, Barbara Luz, Zécarlos Machado e Lee Taylor. Na história, Maria, vivida por Barbara Luz, aguarda com a mãe, interpretada por Patrícia, a volta de seu pai (Zécarlos Machado). A relação das duas muda com a chegada de um outro homem à rústica casa de campo em que moram (Lee Taylor).


Pintura feita por Hilda Hilst.
Imagem: Acervo Maria Luiza Mendes Furia/Divulgação

Mas Revelando Hilda Hilst também apresentou ao público duas facetas praticamente desconhecidas da autora paulista e pouco exploradas até o momento: a escritora que também desenhava e que manteve em vida uma estreita aproximação não só com as artes visuais, mas com vários artistas com os quais conviveu desde a década de 1950. Entre os artistas que criaram capas ou ilustrações para seus livros ou com quem conviveu estão nomes como Darcy Penteado, Clóvis Graciano, Wesley Duke Lee, Anésia Pacheco e Chaves, Olga Bilenky, José Luis Mora Fuentes, Kazuo Wakabayashi, Cid de Oliveira, Antonio Padua Rodrigues, Jaguar, Arcangelo Ianelli, Maria Bonomi, Millôr Fernandes, Pinky Wainer, Renina Katz, Mira Schendel e Arthur Luiz Piza, entre outros. Na exposição, os visitantes tiveram acesso a 15 primeiras edições originais dos livros de Hilda, com capas de vários dos artistas citados acima, além da matriz da xilogravura de Maria Bonomi feita para a capa do livro Kadosh (1973), um dos livros exibidos.

Hilda Hilst realizou uma série de desenhos e aquarelas entre o final da década de 1970 e final dos anos 1980. Grande parte deles, cerca de 150 desenhos, encontra-se abrigada no Centro de Documentação Alexandre Eulálio, na Unicamp, em Campinas. A mostra apresentou 15 desenhos de Hilda, que, para mim, eram uma outra forma que ela tinha de “escrever”. É como se os desenhos e sua escrita se fundissem naquilo que chamo de pictografias. Como se ela quisesse reconfigurar sua escrita dispondo de outras ferramentas além das palavras. Da mesma maneira que um texto exprime sensações, figuras, perspectivas, cores e luzes, por exemplo, Hilda usa em seus desenhos o traço, a linha e a cor criando uma linguagem visual muito própria. Alguns desenhos, por exemplo, foram realizados de uma única vez; com Hilda iniciando e dando continuidade à forma idealizada com uma única linha que segue adiante sem interrupção até o desenho ficar pronto, até colocar “um ponto final” em sua obra.

Hilda tinha o costume de desenhar enquanto falava ao telefone, conversava com amigos ou estava sozinha. Essa outra forma de escrever (os desenhos + os escritos) criam essas pictografias. Um pictograma (do latim picto, pintado + grego graphe, caractere, letra) é um símbolo que representa um objeto ou conceito por meio de ilustrações. Pictografia é a forma de escrita pela qual ideias são transmitidas por intermédio de desenhos. Esse universo plástico/simbólico hilstiano remete aos antigos “bestiários” que surgiram na Idade Média e que tinham como intenção mostrar a conduta animal e humana por intermédio de iluminuras e desenhos com animais reais, fictícios ou exóticos que representavam atos moralizantes e/ou de uma conduta a ser seguida. Embora nesses bestiários as cores predominantes sejam o vermelho, dourado, amarelo, azul e verde; a cor principal usada por Hilda em seus desenhos era o azul ou o vermelho da tinta da caneta Bic que ela usava para anotar, rascunhar, escrever. O ato de escrever para ela estava intimamente ligado ao ato de desenhar.


Pintura feita por Hilda Hilst em 1971.
Imagem: Acervo Maria Luiza Mendes Furia/Divulgação


Era muito raro Hilda utilizar outro material, como no caso das aquarelas criadas e usadas no livro Da morte. Odes mínimas, que, em vez de usar o preto, cinza ou branco, cores usualmente associadas à morte, Hilda apresenta uma palheta de cores quentes, vivas, ensolaradas com vermelho, amarelo, verde, azul, laranja e rosa. Vale dizer que as obras não foram criadas para serem meras ilustrações dos poemas, elas dialogam e complementam os mesmos, seguindo uma coerência conceitual e muito poética. Afinal, o livro trata da morte, da efemeridade, da liquidez da vida, e Hilda usa justamente a aquarela, técnica de pintura na qual as cores são misturas com água.

Mas, além dessas preciosidades, foram exibidas na exposição cerca de 20 fotografias de Hilda Hilst, registradas por quatro fotógrafos, a maioria nunca antes vistas pelo público, e realizadas em períodos diferentes, com a autora ainda jovem e, depois, já consagrada. A primeira série exibe registros de 1959, quando ela tinha 29 anos, realizados pelo fotógrafo português Fernando Lemos, falecido em dezembro do ano passado, e revela uma Hilda quase como uma diva hollywoodiana no auge da sua beleza. A segunda série, realizada em 1990 pelo fotógrafo, arquiteto, músico e desenhista paulistano Gal Oppido (1952), retrata Hilda com 60 anos. Ele registrou a autora durante uma entrevista que o escritor Caio Fernando Abreu fazia com Hilda, em um apartamento no bairro dos Jardins.

A maioria das imagens nunca foi exibida. As duas últimas séries trazem registros do fotógrafo paulistano Eduardo Simões (1956), que realizou uma série de fotos de Hilda Hilst na sua residência, a Casa do Sol, para a edição dedicada à autora do Cadernos da literatura brasileira, do Instituto Moreira Salles. As imagens registram não só Hilda, mas sua casa e seu entorno, inclusive seus inseparáveis companheiros, as dezenas de cachorros que moravam com ela. E, por último, uma série de fotografias do também paulistano Eder Chiodetto, curador de fotografia, em registros sete anos antes da morte da autora. Nessas fotos, Hilda aparece na sua mesa de trabalho, na porta da chácara onde morava, com a imponente alameda de palmeiras ao fundo e o portão do século XIX que permitia aos amigos e convidados adentrarem no espaço mágico que era a Casa do Sol. Assim como uma foto do mítico relógio na sala da casa no qual não registra as horas, mas apenas o tempo representado por uma frase: “É mais tarde do que supões”.

MORTOS
Em Revelando Hilda Hilst, a voz da autora paulista, seus retratos e sua escrita emergem para o público para revelar um dos mais importantes nomes da literatura brasileira. Durante muitos anos, durante a década de 1970, Hilda iniciou um experimento no qual tentava se comunicar com os mortos. “Vocês mortos vivem?”. Era a pergunta que norteava sua busca incessante para alcançar o – quiçá – inatingível. Hilda se isolou na Casa do Sol, em Campinas (SP), e lá permaneceu até sua morte. Tive a sorte e o prazer enorme de morar e trabalhar com ela durante quatro anos no começo da década de 1990. A primeira vez que ouvi falar o nome Hilda Hilst foi em 1979, em uma matéria do programa Fantástico, na qual ela afirmava se comunicar com mortos. Eu tinha 10 anos e aquilo me assombrou durante semanas, meses. Afinal, quem era aquela mulher que escrevia e vivia isolada, cercada de cachorros, em uma chácara chamada Casa do Sol, que nomeava Deus pelos mais diversos nomes como Relincho do Infinito, Grande Obscuro, Sorvete Almiscarado, Lúteo-Rajado, Querubim Gozoso, O Mudo Sempre, Caracol de Fogo e O Inteiro Desejado, entre tantos outros, e que ainda se comunicava com os mortos?


Desenho feito por Hilda Hilst em 1982.
Imagem: Cedae/Unicamp/Divulgação


Eu vivia em Maceió, já era um leitor compulsivo e sonhava em ser escritor e poeta. Oito anos depois, uma amiga me deu um livro de Hilda para ler, A obscena senhora D, e desde então minha vida nunca foi a mesma. O livro, considerado a obra-prima da autora, será relançado em breve pela editora Companhia das Letras em uma edição especial. Na época que li não era e ainda não é uma leitura fácil, mas sabia que estava diante de algo completamente diferente:

Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem por isso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu a procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu?.

Eu não só ouvi como resolvi ler o que podia de Hilda e, mais que tudo, conhecê-la pessoalmente. E lembrei imediatamente do Samuel Beckett, por dois motivos. O primeiro, porque ele havia sido secretário do James Joyce (e eu considerava Hilda o Joyce dos trópicos, da língua portuguesa); segundo, porque ele descrevia um de seus personagens da maneira como eu me sentia ao ler Hilda: “…seu ser estava sem eixo ou perfil, seu centro em toda parte e a periferia em parte alguma”. Aos 21 anos sai de Maceió (AL) – de ônibus – para São Paulo com uma ideia fixa: ser o secretário de Hilda Hilst. E descobrir novos eixos.

Era outubro de 1990, fui morar em uma pensão perto da Avenida Paulista, de onde, de um orelhão, liguei três vezes para a Casa do Sol, o único número de telefone que até hoje nunca esqueci, e que havia conseguido por intermédio de um amigo, o poeta e escritor alagoano Nilton Resende, que morava nessa mesma pensão e tinha vindo antes de mim para conhecer a Lygia Fagundes Telles, que era muito amiga de Hilda. Só na terceira vez que liguei foi que ela atendeu, lhe disse meu nome e que tinha vindo de Alagoas para conhecê-la. Ela duvidou, fez várias perguntas, respondi todas e só então ela me convidou para ir à Casa do Sol. Nos conhecemos em um final de semana de novembro de 1990 e, em março do ano seguinte, ela me convidou para morar e trabalhar com ela em troca de casa, comida e tempo. Ela me disse, “dinheiro eu não tenho, mas você vai perceber mais velho que o tempo é mais valioso que o dinheiro”. Hilda reforçava sempre essa frase e mostrava o relógio da sala, que citei anteriormente.


Desenho feito por Hilda Hilst em 1971.
Imagem: Cedae/Unicamp/Divulgação


Hilda reclamava muitas vezes quando diziam que sua escrita era hieróglifa, “uma tábua etrusca”. Mas eu sempre a lembrava que a escrita hieróglifa significava “escrita dos deuses”. Ela ria discretamente, acendia um Chanceller – seu cigarro preferido – e voltava à leitura do dia. Ela nunca lia apenas um livro, sempre eram dois ou três abertos na sua mesa, todos grifados com canetas de diferentes cores que ela sempre tinha à mão. E, invariavelmente, um dos livros era algum que ela estava relendo pela segunda ou terceira vez. E, na maioria das vezes, um deles era alguma biografia, gênero literário de que ela gostava muito, ou um livro de filosofia. Foi durante os anos que convivi com ela, na Casa do Sol, que mais li na vida. Foram mais de 300 livros lidos no período. A maioria indicado por Hilda ou pinçado da sua biblioteca particular, e grande parte deles motivo de várias conversas nas noites, enquanto assistíamos ao Jornal Nacional e a novela das nove, bebendo uísque.

Nunca esqueço quando, semanas depois de estar morando na Casa do Sol, pedi a ela para ler meus poemas e opinar sobre eles. Eram cerca de 20 poemas, creio, que selecionei de uma série de mais de 50 escritos entre os 18 e 21 anos, em Maceió. Hilda pediu para eu lê-los em voz alta, pois assim ela saberia o tom, o ritmo que eu tinha dado aos poemas, e que ao final da minha leitura opinaria. Concordei e me pus a ler os poemas. Ao final, Hilda me olhou com firmeza, pegou no meu braço com delicadeza e disse calmamente: “Ju, se você pensa que é poeta está completamente enganado, isso é uma merda, não é poesia. Ainda”. E levantou da cadeira, foi até a estante de livros ao lado e escolheu três livros. Eu jurava que seriam de poesia, mas não. Hilda me dá os volumes e diz para eu ler e que depois iríamos comentar sobre. Eram Ecce Homo, do Nietzsche; O livre arbítrio, do Schopenhauer; e Temor e tremor, do Kierkegaard. E eu, de cara, perguntei: “mas Hilda, são todos de filosofia!”. E ela responde: “sim, Ju, um grande poeta é mais que tudo um grande filósofo. E é a filosofia que vai te apontar uma direção para a poesia, para dentro”.

Quando releio suas obras sempre lembro de uma frase de um dramaturgo que li há anos: “O que precisa ser realmente eficaz não é a narrativa, mas o gráfico de forças que o autor mobiliza em sua escritura”. É que ler Hilda requer um esforço quase físico. Não é só a mente, o cérebro que age, é todo o corpo. Sua escrita causa estados sinestésicos no leitor. Ela retorce a sintaxe, o fluxo narrativo e estabelece uma construção linguística que cria novas e outras possibilidades de leitura, com junções, conexões, fissuras, brechas, rasgos, interstícios, linhas de fuga, dobras e desdobras no discurso. Outras maneiras de habitar as coisas, a linguagem. Nessa estrutura polissêmica feita de epifanias, descalabros, humor, desejo, erudição, sexo, religião, política, filosofia e cotidiano, sua escrita se apresenta comprometida com a produção de sentidos, significados, possibilidades, a produção de perguntas, de questionamentos, de dúvidas. E, mais que tudo, de intensidades. Hilda Hilst não produz entendimentos, produz intensidades.


Hilda nos anos 1950. Foto: Fernando Lemos/Divulgação

Só muitos anos depois fui perceber que a Hillé de Hilda no seu livro A obscena senhora D, além de ser – de certa maneira – ela mesma, era também a Hylé de Deleuze e Guattari, aquela que é um fluxo contínuo, que “designa a continuidade pura que uma matéria possui idealmente”. Assim era Hilda para mim. Um fluxo contínuo de intensidades. E que parecia anunciar como o Demônio em sua peça A morte do patriarca (1969), a chegada de um novo tempo em que será preciso “reviver alguma verdade”, “experimentar outras palavras”, descobrir “alguma coisa que emocione novamente” o homem.

COLISÃO
Certa vez, em uma entrevista, Hilda disse que o neutrino demorou para ser descoberto porque é um elemento que não tem propriedades físicas, nem massa, nem carga elétrica e nem campo magnético, e que só pode ser detectado quando colide com outro elemento. E completou afirmando que “o ato de escrever tem muita coisa do neutrino. A gente escreve e vai atravessando os corpos mais densos e opacos possíveis, até que se encontre um elemento de colisão. Então, para esse elemento, tudo o que dissemos e que pareceu incompreensível, obscuro, torna-se claro, rutilante”. Durante o tempo que convivi pessoalmente com Hilda Hilst, e os anos seguintes e até hoje convivendo, estudando e relendo sua obra, tento de alguma maneira promover essa colisão para que sua pessoa e sua obra possam se tornar mais claras, cada vez mais luzentes.

Aproveito o ensejo para compartilhar duas páginas dos diários que escrevi na Casa do Sol nos quase quatro anos que convivi com Hilda. Há meses tenho me debruçado sobre eles para publicá-los ainda este ano. Mas, relendo e relembrando esse passado que foi um divisor de águas na minha vida, me lembro todo o tempo de uma frase de outro grande escritor, o William Faulkner, “o passado nunca está morto. Nem sequer é passado”.


Relógio de parede da sala da escritora setencia: “É mais tarde do que supões”.
Imagem: Eder Chiodetto/Divulgação

Casa do Sol, manhã, 5 de setembro de 1992
Comentei no café da manhã sobre como o lixo de cada pessoa pode dizer tanto ou tudo da pessoa. Hilda concordou, disse que as coisas mais pérfidas e obscenas de uma pessoa estão no lixo delas.

Verdade, se formos pensar na etimologia da palavra obsceno, do latim é obscenus, o que é ofensivo ao pudor, mas Hilda lembrou que também tem a ver com a palavra latina caenum, que é sujeira. Pensei na hora que a sujeira de cada um é relativa, mas que carrega em si a verdade mais absoluta dessa pessoa. É aquilo que a gente quer esconder embaixo do tapete, que não quer mais, nem ver e nem ter, então vai pro lixo. Falei pra Hilda que já procurei ponta de baseado em lixo e achei. E o que era lixo reluziu. Aí falei que gostaria muito de ter visto o lixo do Kafka, do Mapplethorpe, do Visconti, do Proust, do Fassbinder e do Francis Bacon. Hilda riu muito, disse que o do Kafka queria muito, mas também queria ver o lixo do Heidegger, da Hannah Arendt, do Heisenberg e do Jorge de Lima, ah, da Clarice também.

Falei que esse sim era um lixo ontológico e quântico e rimos muito.

Aí Hilda ficou séria de repente e me olhou e disse que no fundo todos nós temos que conviver com os nossos lixos o tempo todo, não só o físico, mas principalmente o subjetivo, que só quem suporta saber viver com isso ascende. Pensei na hora que quando ela bebe toda noite também é para esquecer, mesmo que temporariamente, seu próprio lixo.

Eu quero remexer meu lixo interno sempre, eu tenho que enfrentar minhas sujidades custe o que custar. Quero ser como a flor de lótus, exuberante que vive em meio ao pântano.


Hilda nos anos 1990. Foto: Gal Oppido/Divulgação

Casa do Sol, 2 de dezembro de 1992. Madrugada vazia e plúmbea
Durante o final da tarde, enquanto escutávamos Scriabin, comentamos sobre o peso saturniano que paira sobre nós. Hilda tem uma coisa com Saturno, disse para mim que não adianta pôr as coisas para baixo do tapete, seja de chita ou persa, que Saturno chega e uma hora levanta, suspende esse tapete e tudo vem à tona. Na hora pensei que Saturno era bem psicanalítico, meio freudiano de trazer para a consciência toda a sujidade e podridão que habita também em nós. Pensei tudo isso, mas me calei e acendi um cigarro enquanto Hilda colocava mais uísque no copo alto e me pedia mais gelo.

Sinto em umas noites o peso de Saturno que a tudo comprime, encolhe, devora. Mas também estrutura. Será que as pessoas pensam que se pensar é fácil? Que se olhar para dentro, encolhido num canto qualquer, os ossos pra dentro, o maxilar rijo de lucidez, parado, no escuro mesmo que claro, se autodevorando, isso é fácil? Não é não.

A casa é grande, vagueio à deriva, fico à espreita de qualquer alento, mas só há silêncios de palavras não faladas, pequenas e grandes tristezas, melancolias enviesadas. Na cozinha silenciosa, um cachorro zanza sem destino certo, me olha sem me ver. Na mesa grande de madeira, sob a luz de velas, o crisântemo amarelo emana sua beleza. Fico parado vendo e sentindo tudo isso. Choro quieto, envergonhado de saber aquilo que sinto e vejo. Vou para sala e vejo o uísque na mesinha, pego mais gelo, sento no sofá. Sozinho na sala eu digo delicadezas mudo para mim mesmo, acomodo desculpas na ponta da minha língua, faço cara de desentendido para ninguém.

O meu coração sonha gramados e sonho que da minha pele verdejam ramos com folhas enormes reluzentes e que pendem perguntas sem respostas em cada flor.

Coleciono urgências. Tenho fome, não tenho fantasmas.


Entrada da Casa do Sol, anos 1970. Foto: J. Toledo/Divulgação

JURANDY VALENÇA, jornalista e artista visual. Morou e trabalhou com Hilda Hilst entre 1991 e 1994, e voltou a morar na Casa do Sol, em 2012, para ser o diretor de projetos do Instituto Hilda Hilst (IHH), onde permaneceu por dois anos. Atualmente trabalha com gestão cultural como diretor adjunto do Centro Cultural São Paulo (CCSP) e é redator do Mapa das Artes São Paulo há 16 anos.

A Casa do Sol, sede do Instituto Hilda Hilst (IHH), recebe visitas e residências artísticas nas mais diversas áreas, não só em literatura. As propostas podem ser feitas para períodos de um final de semana, uma semana e até um mês, e abarcam poetas, escritores, atores, atrizes, dramaturgos, músicos, fotógrafos, acadêmicos, tradutores, matemáticos e físicos, por exemplo. Informações podem ser obtidas no site do Instituto Hilda Hilst ou pelas suas redes sociais.

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Extras: Jurandy Valença declama poema de Hilda, trecho do diário da poeta e do seu próprio diário pessoal.

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