Lançamento

Comunismo e feminismo no jornal ‘O Tacape’

Leia trecho do livro ‘Crônicas comunistas’, organizado por Ricardo Japiassu e lançado pela Cepe Editora, com textos de diferentes autores publicados no periódico

TEXTO Ricardo Japiassu

01 de Abril de 2020

Ilustração Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 232 | abril de 2020]

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IDEIAS EUROPEIAS NOS TRÓPICOS
Sempre era com nostalgia que me debruçava sobre qualquer pesquisa resgatando o passado. Este modus, porém, foi rompido quando retomei a investigação sobre uma das mentes mais instigantes do alvorecer do século XX no Recife: a feminista Alice Azedo Pimenta, autora de textos precursores da liberdade da mulher, em tons comunistas, justamente quando a capital mergulhava nas primeiras lutas do proletariado. Desconfio, inclusive, que no romance O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, a primeira obra urbana do romancista, esse vulto tenha sido transformado em personagem. Não é à toa que o poeta Waldemar Lopes confessou à escritora Luzilá Gonçalves Ferreira ser Alice “a mais inteligente da época”.

O primeiro contato que tive com Alice Azedo Pimenta aconteceu entre setembro de 1990 e agosto de 1991, quando, aluno do Curso de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, então orientado por Luzilá Gonçalves Ferreira, com fomento de Bolsa de Iniciação Científica, participei da pesquisa O outro discurso — Ensaístas pernambucanas no século XIX.  Num momento de instinto, procurei a Biblioteca Pública Estadual, onde encontrei — bastante deteriorados — exemplares do jornal comunista O Tacape. Nesses, o pseudônimo Dorina. Quem seria? Um homem travestido de mulher? Uma fêmea ocultando-se? Logo, nos textos seguintes, a revelação: tratava-se de Alice Azedo Pimenta, filha do renomado cardiologista Raul Azedo e esposa do combativo Joaquim Pimenta, autor que, com o seu Um homem de um olho só, contradisse as ideias de Gilberto Freyre.


Capa do livro. Imagem: Reprodução

Logo no princípio o jornal denota-se um tabloide “quinzenário de crítica social e educação popular”. Circulou em Pernambuco entre janeiro de 1928 e novembro de 1929, totalizando 46 exemplares, com uma média de 10 páginas por edição, capa colorida e repleto de publicidade. Ao que consta, pelo menos das leituras na Biblioteca Estadual de Pernambuco, a edição inaugural data de 1º de janeiro de 1928. Aqui, se pode saber que O Tacape constituía uma publicação familiar, pois traria sempre textos de Raul Azedo, Joaquim Pimenta e da própria Alice. Já na primeira crônica da pensadora, A defesa de Mme. Orloff, os indícios comunistas:

Eu e meu marido professávamos as mesmas ideias que antes já me eram comuns, porque meu pai também as professava: o anelo de uma felicidade para todos, o desejo de que todos fôssemos iguais, de que não houvesse na terra opressores e oprimidos. Desde criança essas ideias aninharam-se em minh’alma.

Essa pesquisa quebrou inteiramente os laivos de nostalgia, pois, de algum modo, o caso de uma mulher, na sociedade conservadora do início do século XX, se rebelar, conclamando à luta social, era por demais exótico. Resgatando as crônicas de Alice Azedo Pimenta, revelaria à contemporaneidade um empenho ainda hoje real, a busca por igualdade. Entreguei a Luzilá Gonçalves Ferreira uma pasta com os 10 escritos da autora, alguns elaborados quando de sua permanência no Rio de Janeiro — Joaquim Pimenta elegera-se deputado federal por Pernambuco — e guardei a mentalidade dela no espírito. Docente do curso de Relações Internacionais da Faculdade Damas da Instrução Cristã, apresentei, com fomento da própria instituição, o projeto de pesquisa Ideias europeias nos trópicos: Alice Azedo Pimenta e o comunismo, que vigorou, com quatro bolsistas, de novembro de 2012 a abril de 2014.

A iniciativa que, a priori, pretendia resgatar os textos de Alice Azedo Pimenta, Raul Azedo e Joaquim Pimenta, só foi possível graças à anuência da diretora da faculdade, Irmã Miriam Vieira, bem como do coordenador de Pesquisa e Extensão, professor doutor Cláudio Brandão. Convidei os alunos do curso de Relações Internacionais — Mariana Nolêto Wanderley, Lettícia Maria Beltrão Pereira, Pedro Leal Miranda e Gustavo Watts da Silva Lucas — para, ao passo que resgatariam à modernidade os escritos, aliarem a análise desses mesmos textos às teorias marxistas e feministas próprias dos estudos de internacionalistas, ciência iniciada no País de Gales após a Primeira Grande Guerra. O intento se realizou. Por exemplo, a respeito de Joaquim Pimenta resgatou-se uma publicação do folclorista potiguar Luiz da Câmara Cascudo, datada da primeira quinzena de julho de 1928, no primeiro ano de publicação, volume 13, intitulada Professor Joaquim Pimenta.

Câmara Cascudo narra:

O professor Joaquim Pimenta chegou à cátedra da Faculdade de Direito do Recife como o conselheiro Lafayette foi presidente do Conselho de Ministros — montado em dois livrinhos de Direito. Pode ele ensinar todas as matérias do curso jurídico, com as agravantes de ter ideias próprias. Particulares. Ideias que ele mesmo buscou, sem o auxílio amável do incitamento e do louvor unânimes. Para este cearense alto e sólido, de cabeleira rebelde de “camarada” russo, com feições de imperador bizantino, a vida tem sido uma conquista de ideias. Conquista tão batalhada e larga que se pode dizê-la física. Egresso do trabalho anônimo dos lavradores, pupilo de si mesmo, abriu caminho como se corta água refervente do mar — com força e ritmo. A sua jovem e energética fisionomia voltou-se para o operário. Reuniu-o, ensinou-o, disciplinou-o. Fê-lo à sua imagem e semelhança, confiado, atlético, sadio.

Vale destacar que na pesquisa, o que mais se ressaltava era a mentalidade dos cronistas. Perguntei-me: de onde vinham tais ideias? Como atracaram nos trópicos?

É o próprio folclorista que nos revela: “O tema da influência social russa é exclusivamente uma sugestão”. Com a pesquisa, os ensaios dos pesquisadores elaborados — Raul Azedo e o comunismo; As crônicas de Alice Azedo Pimenta e o comunismo; A veia revolucionária de Joaquim Pimenta e, por fim, Joaquim Pimenta e o comunismo no Brasil — foi possível obter uma resposta: por meio da literatura, as novas ideias implementadas no Leste Europeu aportavam no Recife. Seria a Rússia um bom exemplo do Comunismo? Para a família Azedo Pimenta sim, pois tudo lhe parecia correr bem naquele país. E mais, embora ressaltasse nos seus textos ser bem casada, Alice Azedo Pimenta defendia o direito ao divórcio feminino. Impressionante, na pesquisa, é que dela somente os textos foram resgatados, nenhuma informação a mais, fotografia, passaporte (o do esposo encontra-se depositado na Fundação Joaquim Nabuco), onde estudou — pois era aprimorada —, nada nos consta.

Somente uma quadrinha, publicada no livro Clã do Açúcar, de Lemos Filho, fala de um atentado que sofrera por conta da atuação política do marido.

Para as bandas do Recife
parece ir haver “pitomba”.
Visto que numa das praças
já pipocou uma bomba.

No coração da “Veneza”
e da polícia agourenta,
ia senso assassinada
a dona Alice Pimenta.

Além da mentalidade dos escritores, a pesquisa assegurou à posteridade uma faceta desconhecida em Pernambuco: salvou da destruição o testemunho das lutas do proletariado, num Recife que se desenvolvia, salvaguardando fatia da história das mulheres no estado que, através da imprensa, conclamavam novos ares, direitos igualitários e liberdade. Vejamos um dos textos de Raul Azedo publicado na primeira quinzena de fevereiro de 1929, no seu segundo ano de circulação, exemplar 27.

O plano lançado faz algum tempo, no Rio, com repercussão em um ou outro estado, de organizar-se o comércio em classe política, não no sentido vulgar da sistemática oposição ou de incondicional apoio aos governos, mas como um corpo autônomo, agindo por si, com diretriz própria, deveria ser, agora mais do que nunca, sobretudo em Pernambuco, o ponto capital de uma campanha, partindo especialmente de elementos novos, ainda não abatidos pelo exaustivo labor da vida de negócios, ser tampouco deteriorados pelo ceticismo ou a acomodatícia indiferença que invade certos espíritos incapazes, por velhice ou mesmo por índole, de se deixar atrair pela chama de um ideal.

Completamente diverso da nossa era, o fazer jornalismo de então espanta um bocado. É o caso do texto Perseguição às ideias, em que o próprio Raul Azedo fala de si e desnuda toda a ideologia própria num artigo autoassinado, empregando — de maneira impressionante — a terceira pessoa do singular. Pasmem: nada organizado conforme o jornalismo do nosso milênio. Outro modus operandi, portanto, dominava a imprensa à época.

Em forma de resgate e publicação, as crônicas dos escritores, recolhidas em O Tacape, foram por mim organizadas no livro Ideias europeias nos trópicos — título original — que publico pela Cepe Editora, agora intitulado Crônicas Comunistas. Dessa forma, vem a se tornar de conhecimento público o que estava resguardado apenas em instituições, como o setor de microfilmes da Fundação Joaquim Nabuco, tendo em vista que os exemplares impressos entre 1928 e 1929, depositados na Biblioteca Pública Estadual, encontram-se em avançado estado de deterioração, dificultando qualquer consulta. O mesmo acontece com os tabloides colecionados pela Faculdade de Direito do Recife. Na Fundaj, faltam algumas edições do periódico, o que levou à impossibilidade de definir a data de alguns artigos agora publicados neste Crônicas Comunistas. Assim, a pesquisa científica elaborada cumpre a sua função: resgatar à modernidade um passado ainda incólume, desconhecido e, sobretudo, ameaçado de desaparecer ante as intempéries do tempo e da pobreza da própria conservação do acervo. Por fim, podemos abordar levemente a seção Textos esparsos, que revela pequenos conteúdos publicados nas capas de O Tacape. Muitos desses pensamentos ressaltam a ideologia do periódico logo num primeiro relance, na primeira página do veículo de imprensa. Alguns são assinados, outros não. Temos, então, que toda a preocupação com esta leitura final é resguardar o pensamento da família Azedo Pimenta, que desapareceu da história pernambucana sem deixar rastro ou vestígio, quando nem mesmo se anunciou o fim da publicação de O Tacape. Com a edição e lançamento de Crônicas Comunistas, talvez algumas novas informações se juntem à pesquisa e tomara que encontremos algum descendente do clã que possa nos revelar aspectos desconhecidos dessa aventura ideológica.

CRÔNICAS

ALICE AZEDO PIMENTA
Ano 1 — Nº 1 — 1º de janeiro de 1928

A defesa de Mme. Orloff

Maria Lúcia enviou-me hoje, pela manhã, o jornal, com este bilhete:

Dorina — mando-te (para julgares mais um perfil de mulher) este jornal de Petrogrado, cujo título significativo — Rússia Vermelha — evoca rajadas de heroísmos e abnegações..

Quanto a Mme. Orloff, acho-a heroica, mas cruel. E tu? — Maria Lúcia.

Um traço a lápis indicava-me uma coluna com a seguinte epígrafe: A TRAGÉDIA DE NICAROW.

E li:

Compareceu ontem a julgamento, perante enorme assistência que se mantinha num grande silêncio comovido, a protagonista da tragédia de Nicarow. Mme. Sonia Orloff, apesar de sua extrema palidez, proveniente dos longos dias de reclusão, aparentava completa calma de espírito.

Interrogada pelo juiz, declinou dos serviços do advogado, que concede a lei. Não pretendia, disse, ocultar a verdade ou mascará-la. No nosso árduo papel de repórter, faremos o possível para descrever exatamente o que foi a memorável sessão do dia 26:

Madame Orloff trajava vestido escuro, de mangas compridas e colarinho alto. Tem 32 anos e nasceu na Rússia Menor. Filha de pais camponeses, viera muito cedo para a capital, matriculando-se na universidade. Não é bonita, mas tem uma fisionomia extremamente simpática. O olhar reto, franco, fala-nos alguma coisa em seu favor. Ela agiu certa de que cumpria um dever; de que nada lhe restava fazer a não ser executar uma suprema resolução que tomara consigo mesma.

Era precisamente uma hora, quando passou a referir os acontecimentos que a arrastaram à barra de um tribunal. A sua voz ressoava tranquila e velada sob o silêncio impressionante.

— Sr. Juiz, eu declino dos serviços de um advogado que a lei concede aos criminosos. Nada pretendo esconder: a mentira e a chicana, neste momento, não seriam cabíveis, o meu crime é mais um crime de convicções. Peço, Sr. Juiz, para defender-me publicamente de acusações dolorosas por parte de jornais governistas. Alguns deles, desfavoráveis e injustos, com expressões descorteses, desceram ao ponto de atribuir o meu ato a paixões que deprimem! O Dia, num amargo insulto, diz que esse “ato tresloucado” pode ser considerado um crime passional! Eu não aceito nem a ofensa de ser considerada uma amorosa, nem a defesa que esta designação implica.

Desprezo o insulto como prescindo da indulgência. Não, Sr. Juiz, não foi o amor carnal que me levou tão longe; não emprestem sentimentos vulgares a um ato que me enobrece. Não. Defendi o homem que amava, vinguei a orfandade de meus filhos. Esta explicação é necessária.

Agi com inteira serenidade, em toda plenitude dos meus sentidos. Se lamento sentar-me hoje no banco dos réus, não quer dizer que trepidasse em renovar esse gesto, caso fosse preciso! — Parou um momento, respirou forte, tendo já as faces coradas pelo esforço. Olhou lentamente o auditório emocionado, e prosseguiu com a mesma calma, o mesmo timbre de voz: — Vou dizer em poucas palavras os antecedentes do fato que me impeliu a cometer o crime. Este já por si não interessa. Os jornais relataram-no com todos os detalhes, alguns dos quais ofensivos à minha dignidade. Eu e meu marido professávamos as mesmas ideias que antes já me eram comuns, porque meu pai também as professava: o anelo de uma felicidade para todos, o desejo de que todos fôssemos iguais, de que não houvesse na terra opressores e oprimidos. Desde criança essas ideias aninharam-se em minh’alma.

Quando, depois de casada, eu e o meu marido conversávamos sobre o risco a que elas nos expunham, me perguntava ele:

— Se o governo mandar agredir-me, e se eu sucumbir, que farás tu

Invariavelmente lhe respondia:

— Quem o matar, terá a mesma sorte.

E quando ele tombou, morto por soldados disfarçados, aquele autocrata cruel e sanguinário, jurando-se inatingível, respirou satisfeito.  Pensara mal...

“Há um ano que a bala que o feriu repousava inofensiva no tambor do meu revólver.”

Já vê, Sr. Juiz, que os maiores martírios não me fariam retroceder. Quarenta que passassem, essa bala procurá-lo-ia incessante. E quando, ao penetrar nos seus aposentos particulares, olhando-o frente a frente, apontei-lhe a arma, vi que daquele homem cruel e astuto restava um pobre homem acovardado e trêmulo. Acusaram-me os jornais de que eu o matara no momento em que ele tinha uma criança ao lado. Não é verdade! Não que esse fato fizesse baixar a mão que vingava.

Ele já havia caído quando uma criança, que me parecia de seis a oito anos, entrou assustada, chorando em grandes gritos. Procurava levantar aquele corpo, cujos olhos extremamente dilatados, a fisionomia contraída, repugnavam. Inclinei-me para tirá-la dali. Lágrimas, contraditórias lágrimas, corriam-me pelas faces. Chorava de alegria por ter cumprido o que tantas vezes prometera; chorava de piedade pela criança que via chorar; chorava de pesar por me terem os acontecimentos arrastado a um ato do qual não me arrependia; chorava de saudade de mim mesma, aniquilada para todo o sempre. Olhei o ferimento, cujo sangue começava a coalhar, parecendo cansado de correr. Grandes gotas vermelhas saíam de vez em vez pelo orifício e, resvalando por sobre o sangue gelatinoso, faziam um pequeno círculo no chão.

Passos apressados ressoavam; perto tiniam armas.

Não desejava fugir. Entreguei-me à prisão.

Ah! A prisão! Túmulo sem esquecimento! E há três meses que, encerrada nele, espero que me façam justiça! Não me defendo, não me acuso, exponho fatos.

Vou terminar, Sr. Juiz. Para que contar inomináveis sofrimentos, desde que se fechou sobre mim a porta que dá para a vida?... — Calou-se exausta.

Ouviam-se soluços nas galerias. O olhar do juiz era um olhar de perdão. Momentos depois, pairava para Mme. Orloff o sol da liberdade.

Pousei devagar o jornal. Pensei em escrever a Maria Lúcia, analisando-lhe esse caráter de mulher. Mas não o fiz. Para quê? “Quem com ferro fere, com ele será ferido”. Por que, por esnobismo, por medo de ser mal julgada, hei de dizer que ela não tem coração, se eu faria o mesmo?

Dorina (Alice Pimenta)

ALICE AZEDO PIMENTA
Ano 2 — Nº 42 — Segunda quinzena de setembro de 1929

À margem da vida

Os últimos assassinatos ocorridos nesta capital devem pesar na consciência dos legisladores como crimes: duas mulheres tombaram sem vida e três outras feridas gravemente.

Não foram revólveres vingativos ou punhais acerados que as abateram: foram as leis brasileiras. Foram decretos que armaram braços de maridos cruéis. Se tivéssemos o divórcio, essas infelizes não teriam sucumbido. E eles também se tornaram assassinos porque, a não ser assim, estariam ainda presos a cadeias que lhes pareciam de ferro.

Eu pressinto um meio riso na face daqueles que leem estas divagações. Não, eu não preciso de divórcio!

Não que me prendam à casa o casamento civil ou religioso! Não que me prendam nela preconceitos de espécie alguma!

É algo muito mais poderoso, muito mais sólido de que simples rituais. É o dever. Fossem quais fossem os motivos que me fizessem desejar mutações de vida, eu os desdenharia. Sou feliz em meu lar. Mas isso não constitui razão suficiente para que me desinteresse da sorte das outras que não o são.

Contam-se por centenas os crimes passionais. Mas, se ao homem desprezado fosse dado separar-se inteiramente de sua mulher, ele não preferiria à sua liberdade dez ou vinte anos de cadeia!

O divórcio, como nós temos, é uma farsa cruel. Cada um dos cônjuges deve ter o direito de renovar seu viver.

O casamento brasileiro é o único ato sério da vida do qual não se pode fazer experiência.

Os legisladores chineses denotaram, ao escreverem seus códigos, maior dose de generosidade e conhecimento humano. Se durante um certo número de meses o casal se dá bem, renova o seu contrato. Se foram infelizes, não o serão para sempre.

Quem, antes do casamento, disse ao noivo ou à noiva: “Depois de casado farei isto ou aquilo que não desejas...”

Todos sabem que, durante o noivado, eles e elas são verdadeiros anjos de bondade. Mas, depois, vem a realidade, vem a vida, e bem poucos se conformam ou se resignam com a amarga desilusão. E muitos procuram fugir de um lar ao qual, moralmente, continuam presos. E muitos mais infelizes trocam o vazio de uma casa sem afetos pela fria laje de uma célula, talvez menos fria do que o ambiente de seu ninho desfeito.

Estas linhas, escritas à vol d’oiseau, não têm a pretensão de querer mudar convicções.

Os que pensam de modo contrário continuarão a fazê-lo, tendo arraigada na consciência a certeza que a razão está consigo. Mas, se pudessem ver (como nos laboratórios precisam os Raios X os pontos atingidos de um pulmão), se fosse dado a alguém contrário à separação definitiva examinar de perto e a olhos nus o que de doloroso existe nesta tortura em todos instantes, se fosse dado a alguém  o sofrimento, far-se-ia em sua consciência um raio de luz.

Eles sabem que o casamento brasileiro prende à casa, até a morte, mulheres sofredoras. Mas de que valem, moralmente, os elos dessa cadeia? Não será sempre melhor ter presa pelo afeto uma mulher do que tê-la presa por conveniências sociais? Não é mesmo esta prisão matrimonial imposta às pessoas, um caminho para o desvario? Senão, vejamos: na França, uma senhora divorciada será sempre uma senhora; o mesmo respeito a cercará. Poderá casar ou poderá deixar de o fazer; mas para ela continuará morto o marido que a abandonou. No Brasil, uma senhora separada do marido ficará à margem da vida! Não poderá tornar a casar, família nenhuma terá de bom grado relações com ela; não poderá viver inteiramente por si, porque bem sabemos como é mal remunerado o trabalho feminino. Muitas vezes não partiram dela os motivos para o divórcio, mas é sobre ela que, doravante, pesará como maldição a lei que nos rege.

Os jornais noticiam um fato que demonstra claramente o que de pungente existe nesta farsa.

Um homem (não quero citar nomes) abandonou durante três anos a mulher que Deus lhe deu. Para a infeliz, os primeiros tempos de separação não foram mais do que um longo martírio. Nunca o homem que a deixou procurou indagar se foi custosa a íngreme ascensão. Nunca procurou saber de quanta humilhação foi feito o pão que a alimentara. E essa mulher, a mais honesta de todas as mulheres, pois que a Fo a impelia, para não sucumbir na vida, ligou-se a outro homem. Se este ato era de boa vontade, se representava um sacrifício, nunca transpareceu em seus olhos que as lágrimas cansaram.

Passam-se três anos. Esta mulher, ligada a outro homem pela necessidade e a quem tira-se todos os direitos, seria natural que ficasse esquecida no lar que a acolhera. Mas, não! V o marido, convence-a de que deve voltar, que está mudado, que uma vida nova ressurgirá para eles.

E, com a volta dela para sua casa, lhe tem demonstrado cabalmente a pureza de suas intenções; se fosse uma leviana, continuaria no lar que não era o seu. Talvez mesmo um novo amor, feito de gratidão, tivesse brotado em alma pelo homem que a acolhera.

Mas, assim que lhe mostraram a porta de ferro, pois que é a do dever, ela, na certeza absoluta do que aconteceria (cartas dirigidas à sua mãe diz-nos do pavor de que estava possuída ante o assassinato frio), não trepidou no momento. Segue-o para tombar depois, ensanguentada e fria.

Mas que razões teriam posto na mão deste marido a arma vingadora? O amor? O ciúme? Não! Nem um, nem outro. Ele a matou para casar com outra.

Pobre mulher sacrificada! Quem te abateu não foi um marido sanguinário, sedento de vingança! Tu, pobre infeliz, nada fizeste! O que te abateu foi a cadeia de bronze que te ligava a ele e que ligava ele a ti: o casamento indissolúvel. Se não fosse isso, ele não se lembraria mais que respiravas sobre a terra: unir-se-ia calmamente àquela que escolhera seu coração agora. Mas vivias... E o homem que te recebeu, toda vestidinha de branco numa manhã de sábado, enxotou-te barbaramente da vida noutra manhã de sol!

Considerem aqueles que manipulam as leis que regem os destinos das mães brasileiras. Pensam eles que o divórcio, como deve ser realmente, trará a todas as mulheres desejos de liberdade. Mas, se este desejo já existe em seus corações, de que valem cadeias? Pensem os senhores legisladores nos destinos das mulheres brasileiras, que leis iníquas arrojam, pela crueldade de seus editos, em escravas ou adúlteras.

Rio, 1924

Dorina

RAUL AZEDO
Ano 2 — Nº 25 — Primeira quinzena de janeiro de 1929

Princípios de autoridade
Conheço dois: um que se apoia na razão, exercendo-se sobre as consciências por intermédio da lógica e da eloquência dos fatos, outro que se apoia na força bruta, exercendo-se, por intermédio das baionetas, sobre a passividade ou a resistência vencida; um que age pela ideia, impalpável, porém em essência um começo de movimento, outro que age pelo músculo, servo indiferente de estímulos nobres e de paixões ignóbeis.

Aquele é quase sempre o órgão da verdade, que dita leis de bronze, tão duradouras quanto o comporta a relatividade universal; este é, às mais das vezes, o instrumento do despotismo que a paixão e o interesse transitoriamente instigam ou a ignorância desencadeia.

Um tem a natureza da Phoenix, que renasce sempre das próprias cinzas; o outro se putrefaz e se desagrega como a matéria de que o sopro vital a desampara.

O primeiro falava pela boca do navegador genovês quando afirmava que o globo terráqueo era redondo e do lado oposto ao conhecido se encontravam outros países, o segundo impunha-lhe silêncio, brandindo, em 1487, com o Colégio de Salamanca: “Crer que a terra seja esférica é incompatível com os dogmas da fé..., por conseguinte o projeto de Cristóvão Colombo repousa sobre uma base falsa e imaginária e o que ele pretende não pode ser verdadeiro”.

O primeiro ensinava, como Galileu e Copérnico, que a terra gira em torno do sol; o segundo sentenciava, a 22 de julho de 1632, com os cardeais da Santa Sé: “Dizer que a terra não é o centro do mundo, nem imóvel, mas que se move com um movimento diurno, é uma proposição absurda e falsa em filosofia e, considerada teologicamente, ela é pelo menos errônea na fé”.

Foi aquele que incrustou no firmamento da ciência as leis de Kepler e de Newton; foi este último que mandou sacudir às águas do Reno, e benzeu-as depois, para que de lá não mais emergisse o prelo de Guttenberg e de Schoefler, condenado como máquina diabólica.

Um é sempre reconhecível, idêntico a si mesmo, inalterável como o sol, que brilha para todos e em todos os tempos; o outro se mascara, transmuta-se, mima, dissimula-se com as cores ambientes, contradiz-se no tempo e no espaço, nunca age como causa, mas sempre como efeito que se subordina e enrabicha. Sicambro a adorar o que já queimou e a queimar o que já adorou.

Era em nome deste que, em 1790, enforcavam o Tiradentes e, um século depois, apontavam o caminho do exílio a Pedro II.

Era esse princípio de autoridade que maneava o punho de Nicolau da Rússia ao traçar os ukases que atiravam à morte lenta, nos gelos da Sibéria, milhares de infelizes criaturas, e ainda o mesmo que, em dias próximos, faz tombar aquele soberano com toda a sua família, varados pelas balas da guarda vermelha.

A autoridade da força só se torna respeitável quando ela se conjuga à autoridade da razão e da justiça: fora disso ela se chama:  coação, violência, tirania, crime.

Raul Azedo


JOAQUIM PIMENTA
Ano 1 — Nº 20 — Segunda quinzena de outubro de 1928

De queda em queda

Em toda a sua movimentada história política, jamais atravessou o Brasil uma quadra mais dolorosa e tão sintomática de degradação social: falência de tudo, de homens e de instituições. Falência de caráter, de pudor, de critério. Regime de estupidez e de ensino de venalidade e de traição. Governos, congressos, tribunais, todos conspiram contra o Direito, contra a Justiça, contra os destinos da própria nacionalidade. Ser subserviente, ser canalha, pactuar com todas as iniquidades, aplaudir ou justificar todas as infâmias, todos os desmandos, tornou-se lugar-comum, ou, antes, escada que dá para os altos postos eletivos, da judicatura e da administração. O escândalo da Revista Supremo e a consequente impunidade dos responsáveis por ele são bem uma síntese da época.

O país está transformado em vasto bazar onde se mercadeja com as consciências a honra nacional. Dispersa-se o chanfalho e sob ameaça de metralhadoras a mocidade das escolas, porque se ergue em protesto contra insultos que atiram sobre nós, sobre a família brasileira, foliculários corridos de outras terras, pela polícia ou pela fome. Ao capitalista estrangeiro as concessões mais desastrosas e comprometedoras; o sacrifício à sua insaciável avidez, como nesse recentíssimo aumento de tarifas da Great Western, de milhões de compatriotas sem ânimo para uma reação, genuflexos e suplicantes ante os magnatas da República, instrumentos da pirataria britânica, convertidos em algozes dos próprios irmãos.

Falar em princípios constitucionais, em direitos do povo, é repetir chavões enferrujados, é cair no ridículo, é passar por visionário. O momento é de um realismo desconcertante para os que ainda se perdem em devaneios idealistas. É de arranjos, de negociatas, de aproveitamento de situações que não têm probabilidades de reproduzir-se, escola essa inaugurada em Pernambuco pela quadrilha sergista, com imitadores mais ou menos de igual calibre em todos os estados desta divertidíssima federação.

E enquanto triunfam os desonestos e os cínicos e um povo faminto se arrasta bocejante, a tropeçar em togas poluídas na lama infecta do suborno e do favoritismo; enquanto nos acotovelamos com escroques e facínoras para os quais, em vez de prisões, se constroem palacetes suntuosos, a maioria dos que murmuram e imprecam contra semelhante estado de coisas, logo emudece à simples ideia de que possa rondar por perto a sombra espectral de um guarda civil.

É que o medo supersticioso da farda e do cassetete já se tornou tão entranhado entre nós que só por si garante a estabilidade de um regime de mistificações. Sobre ele assenta, pois, a solidez da engrenagem oligárquica que está reduzindo o Brasil a uma nação de ínfima categoria na história social contemporânea. Medo hereditário, lamentável legado dos nossos avós, que se habituaram às cenas aviltantes do tronco. Emancipar-nos desse sentimento de covardia diante do poder, ou de quem quer que o encarne, chefe de Estado ou soldado da Polícia, eis a magna questão. Espanque-se esse pesadelo ancestral que infundem homens de carne e osso como nós, só pelo fato de trazerem à cinta um espadagão ou de empunharem um pedaço de pau, que um gesto apenas basta para mudar a trajetória de um país digno de melhor sorte, de alcançar um nível mais alto de civilização e que está sendo vendido a retalho e todos os dias ultrajado por hóspedes cada vez mais audazes em escarnecê-lo, porque, longe de os reprimir, os nossos governantes ordenam, ao contrário, o espaldeiramento dos brasileiros de vergonha que ainda sabem reagir.

TEXTOS ESPARSOS
Ano 2 — Nº 13 — Primeira quinzena de julho de 1928

Professor Joaquim Pimenta

O professor Joaquim Pimenta chegou à cátedra da Faculdade de Direito do Recife como o conselheiro Lafayette foi presidente do Conselho de Ministros — montado em dois livrinhos de Direito. Pode ele hoje ensinar todas as matérias do curso jurídico com as agravantes de ter ideias próprias. Particulares. Ideias que ele mesmo as buscou sem o auxílio amável do incitamento e do louvor unânimes. Para este cearense alto e sólido, de cabeleira rebelde de “camarada” russo, com feições de imperador bizantino, a vida tem sido uma conquista de ideias. Conquista tão batalhada e larga que bem se pode dizê-la física. Egresso do trabalho anônimo dos lavradores, pupilo de si mesmo, abriu caminho como se corta água refervente do mar — com força e ritmo. A sua jovem e energética fisionomia voltou-se para o operário. Reuniu-o, ensinou-o, disciplinou-o. Fê-lo à sua imagem e semelhança, confiado, atlético, sadio. E o relógio quis guiar o relojoeiro.

O tema da influência social russa é exclusivamente uma sugestão. Nunca um raciocínio. Menos ainda um estudo. Não conheço proletário entusiasta que possa admitir o imperialismo econômico do Estado soviético. Não sei de tribunista fogoso que saiba a extensão das concessões de Lênin na teoria de Marx, o rito de inigualável aridez partidária que é Stalin, a morte do individualismo pedagógico que é Lunatcharsky.

Isolado da prática socialista pela dispersão e aniquilamento das correntes proletárias que o seguiam, o professor Pimenta voltou e subiu ao domínio puro da doutrina. Da exegese. Do comentário. Da análise introspectiva, pesando, contando, medindo. A significação gráfica de seu pensamento atual deve aproximar-se daquela espiral de Vico. Uma espiral ascendente cuja amplitude dos círculos progressivos coincide com a demora da meditação da trilha seguida. O “problema russo” não volta à sua banqueta de observação. É um ponto de referência. Aceita a teoria da ondulação universal do rumaico Basílio Conta. O desnível aparente no equilíbrio ético ou estético de um país, reduz-se a uma antepreparação, retardamento ou ascencionismo, inevitável na curva evolutiva da civilização. A república dos Soviets é um exame in anima nobile, o meneur dos discursos estoirantes, é o sereno prelecionador de sociologia. A oratória do professor Pimenta é característica. Ela não tem arroubos, tropos vibrantes, girândola que fende zimbrando o ar, num clarão e num estralejar de sucesso. É igual, contínua e plana sem ser monótona. Não discute, não ensina, não prega. Expõe, explica, coteja. Apela diretamente para o cérebro e não para a simpatia do auditório. Avança a exposição numa técnica lenta e sutil.

Vagarosa. Demorada. Como se dispusesse, cauteloso, reis e torres num tabuleiro de xadrez. Envolvente pela sinceridade. Derredor irradia-se o halo sugestionador do tribuno das praças, do agitador temeroso, do demagogo feroz. Esse guia de milhares de homens, sociólogo, jornalista, economista, mestre em todos os Direitos graúdos e miúdos, é o caso da mais tranquila incompreensão coletiva que eu conheço.

Pernambuco ressoa depressa. É uma caixa de ressonância. O menor trisso, o mais leve esgar, troveja e faísca como tempestade. Caixa de ressonância... Podem abrir. Está vazia. Capital do Norte brasileiro, Recife é casa-grande depois da Abolição. Todas as aves chilreantes deste aviário voaram e a passareira é triste e oca. As suas melhores expressões mentais são fanáticas ou céticas. O meio-tom foge dos assuntos, esquiva-se, rápido, ladeando as atitudes duras.

O professor Pimenta, idealista, romântico, lírico, reage. Reage a sério, rugindo, batendo vento com seu montante de aço. Inútil montante pela intangibilidade dos adversos. São inimigos visíveis e impalpáveis. Fumaça e poeira. Compensa-o saber que é uma das raras mentalidades vivas. O menos bacharel desta ilustre classe que usa o fura-bolo com rubi e tira retrato com o dedo esticado e apontador. O menos hierático, o menos solene, o menos hirto. Para equilíbrio, um homem com alma, espírito e cérebro claros e honestos. Pode-se divergir dele, mas o seu talento é preciso, oportuno, coerente.

Vive a nobre intensa do espírito. Até aqui não se entorpeceu debaixo da borla. Não baixou os ombros robustos de lasquenete sob o aconchego do capelo macio. O professor Pimenta merece um mais aproximado trabalho de crítica. Ter-se-á de examiná-lo, discuti-lo, combatê-lo. O necessário é que não se faça silêncio em volta deste esplêndido temperamento de lutador, soldado de todas as bandeiras libertárias, aliado de todos os gritos de sofrimento.

Quando o professor Joaquim Pimenta resolveu dirigir uma revista, chamou-a O Tacape. Pela arma deduzam o pulso do guerreiro.

Natal, julho de 1928

Luiz da Câmara Cascudo

RICARDO JAPIASSU é jornalista. Atuou no Diario de Pernambuco e no Jornal do Commercio. Fez doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na USP e recebeu o prêmio literário da Academia Pernambucana de Letras pela feitura do romance Dias secretos (2014). Atualmente é professor na Faculdade Damas da Instrução Cristã.

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