Na trama, a adolescente Ana (Maria Galant) e sua irmã Julia (Anaís Grala Wegner) vão para o interior atrás do pai, quando a doença de sua mãe se agrava. “Ana, a irmã mais velha, seria uma representação dessa geração contemporânea de mulheres que sabem dos seus direitos e não se curvam às imposições sociais. Já Julia, a irmã mais nova, nós construímos pensando em uma utopia. Como seria uma mulher que não foi ensinada a ter medo? Do que ela seria capaz?”
O filme tem uma leve pegada apocalíptica, sem abdicar do lirismo. “Irmã aborda diversas questões pessoais para nós, sobre as relações familiares e nossas memórias”, explicou Vinícius Lopes. “Mas também aborda um sentimento sobre o país, mais precisamente o de 2016, que foi um momento de turbulência política e social, cujos efeitos continuamos sentindo até este momento. Vivíamos em um momento pré-apocalíptico naquele período.” A ideia inicial era ver as duas em uma jornada enquanto o mundo à sua volta desmoronava. “Daí o asteroide, os dinossauros e todos os elementos que compõem a narrativa começaram a se interligar. É o fim do mundo ou o começo de um novo?”, questionou Lopes.
Irmã, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, também participou da mostra Geração 14+, na Berlinale. Foto: Carine Wallauer/Divulgação
Tanto Caru Alves de Souza quanto Luciana Mazeto e Vinícius Lopes acreditam que as mulheres, hoje, estão mais equipadas a lidar com o machismo e a dizer o que pensam. “As meninas mais ligadas nessa questão de feminismo e da necessidade de ter esses laços de solidariedade estão mais preparadas para enfrentar juntas esse tipo de problema. O machismo não é um problema só de uma mulher, mas de todas nós”, disse Caru.
Para Luciana Mazeto, “não existe mais volta para o que aconteceu no país, nesse sentido”. Ela defende: “Essas gerações sabem dos seus direitos, sabem que a situação pode ser modificada, que existem outras formas de existir, de se relacionar, de se expressar, de expressar seu corpo, a sua sexualidade. Não importa o quanto tentem oprimir a manifestação disso na nossa sociedade, não existe mais volta. Quando acontece uma tomada de consciência, ela passa de mãe para filha, para o filho, de irmã para irmã, de amiga para amiga, das amigas para os amigos. Ela se multiplica”.
Os filmes são uma oportunidade de espalhar essa tomada de consciência para mais meninas e meninos, homens e mulheres brasileiros, e de garotas e jovens se verem representados na tela.
ALICE JÚNIOR E NARDJES A.
No caso de Alice Júnior, o diretor Gil Baroni espera poder despertar empatia e identificação em, pelo menos, alguns espectadores. A produção tem um tom leve e divertido, principalmente graças à sua protagonista, vivida por Anne Celestino Mota, que, como sua personagem, também é trans. Alice muda-se do Recife para o interior do Paraná por causa do trabalho de seu pai. Sofre bullying, mas resiste e conquista aliados no caminho. A aposta do filme é manter uma atitude positiva: Alice não é uma vítima, mas a heroína de sua história.
“Parece simples falar de primeiro beijo na adolescência, mas a complexidade surge quando o primeiro beijo acontece num corpo transexual, especialmente no Brasil, que tem a maior taxa mundial de morte de transexuais”, escreveu Baroni, num depoimento no material de imprensa do filme para o Festival de Berlim. “Alice é trans, e sua existência é sinônimo de resistência. Estamos vivendo um momento delicado no Brasil em que os conservadores estão ganhando espaço com discurso de exclusão, encorajando o ódio, fomentando o medo e insistindo em deslegitimar as novas configurações familiares. Gostaríamos que a história de Alice tocasse o coração das pessoas e aumentasse a conscientização daqueles que ainda não entenderam a beleza e a diversidade de cada ser humano.”
Alice Júnior não apenas escalou como ouviu sua atriz no desenvolvimento do projeto, na tentativa de ser mais autêntico e respeitoso com seu olhar e experiências. Meu nome é Bagdá também escutou Grace Orsato, sua atriz principal, e o coletivo de meninas esqueitistas. “Não dá mais para contar a história do outro sem a participação do outro. Isso não cabe mais no mundo”, disse Caru Alves de Souza. “Não quer dizer que eu só possa escrever histórias sobre mim mesma. Quem reivindica só quer que, se você vai fazer uma história sobre mim, que eu esteja nessa narrativa de alguma maneira. Todo cineasta e artista tem de começar a repensar. Por que escrever a história sobre o outro sem a participação do outro? Não faz nenhum sentido.”
Em Alice Júnior, o diretor Gil Baroni, busca despertar empatia dos espectadores com a sua protagonista trans. Foto: Divulgação
No caso de Karim Aïnouz, Nardjes A. era um documentário feito no calor da hora. Na verdade, o cineasta estava na Argélia para desenvolver outro projeto, sobre a guerra de independência do país e a história de amor de seus pais – ele é filho de um argelino com uma brasileira. Na primeira vez que tentou filmar, com uma câmera profissional, a polícia o impediu. “Vi que seria importante seguir alguém durante um dia nas manifestações”, disse o cineasta. Uma amiga o apresentou a Nardjes, uma atriz. “Eu a adorei”, disse. Ela topou ser filmada, com uma condição: que ela não fizesse o papel de ninguém, mas o papel dela mesma.
“Nardjes queria poder se manifestar como ativista naquele dia”, explicou o cineasta. “No momento em que filmei, não tinha certeza se ela era a protagonista ideal. Mas depois ela virou a protagonista ideal, porque acho que de uma certa maneira ela condensa, na história da sua família, a história da Argélia pós-independência: os avôs que lutaram na guerrilha contra a França, os pais que eram altamente engajados, o pai que era do Partido Comunista, muito envolvido na política de autonomia do país. Nesse sentido ela me parecia a nova geração, que era fruto de duas gerações que lutaram por um país independente. Para falar do que estava acontecendo, ela traria uma camada histórica, mas, ao mesmo tempo, muito viva. E isso era muito bonito.”
Nardjes A. capta a energia do momento e a esperança da jovem população argelina de construir uma sociedade melhor, mais democrática, mais aberta e justa. Nardjes A. é uma pessoa de verdade que vive na Argélia, mas seus desejos não são muito diferentes daqueles de Bagdá, Ana, Julia e Alice, personagens fictícias que moram num bairro trabalhador de São Paulo, em Porto Alegre ou no interior do Paraná. Colocar esses desejos na tela é fundamental para alimentá-los e para o futuro do cinema nacional.
Em Nardjes A., Karim Aïnouz acompanha a atriz argelina Nardjes durante um levante pacifista em seu país, ocorrido em 2019. Foto: Divulgação
“Acho superimportante ter filmes para jovens que não sejam aqueles empacotados, que já existem. É fundamental pensar nisso, principalmente nos dias de hoje. Acho legal que tenha cineastas pensando nisso”, disse Caru. Luciana Mazeto e Vinícius Lopes quiseram colocar algumas experimentações de linguagem num filme voltado para jovens que não necessariamente estão habituados a esse tipo de cinema. “É um teste, uma aposta, um convite”, disseram os dois, que fizeram Irmã de forma independente, por não terem sido contemplados em editais de fundos municipais e federais.
Esses cineastas tentam olhar para o futuro do Brasil em personagens e em espectadores, num momento em que o futuro do cinema brasileiro está incerto. “A situação é periclitante, para dizer o mínimo”, disse Karim Aïnouz. “É muito preocupante quando se tem uma atividade econômica interrompida de maneira tão arbitrária, não clara – essa é a grande questão, quando não se tem um inimigo na sua frente, tudo é muito nebuloso. A Ancine existe, mas o trâmite dos projetos demora muito. É uma situação de grande instabilidade para uma atividade que estava indo de vento em popa.”
Sua preocupação maior é justamente com a nova geração – diretores como Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, que estão estreando nos longas de ficção com Irmã, e Caru Alves de Souza e Gil Baroni, que estão nos segundos longas com Meu nome é Bagdá e Alice Júnior, respectivamente. “Como essa nova geração vai conseguir fazer cinema como atividade profissional, não só como atividade amadora? Essa é uma questão muito importante”, afirmou Aïnouz. Que esses novos diretores tenham a garra de suas protagonistas para lutar por um futuro melhor, mais democrático, mais justo e cinematográfico.
MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.