Portfólio

Sallisa Rosa

Caminhar bem, caminhar junto

TEXTO Pollyana Quintella

04 de Março de 2020

Fotoperformance da série 'Identidade é ficção', feita em 2019

Fotoperformance da série 'Identidade é ficção', feita em 2019

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 231 | março de 2020]

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Umuarama, do tupi, quer dizer “local ensolarado onde se encontram os amigos, lugar de descanso”. No dia 15 de junho de 2019, quem passava pela orla da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, podia ver uma placa de madeira com a mesma palavra indígena fincada em um terreno ocioso. Com um pouco mais de atenção, era possível observar ali um grupo trabalhando no plantio de mandioca em pleno sábado, no meio da cidade.

Tratava-se de uma proposição artística de Sallisa Rosa, artista goiana contemplada com a Bolsa Pampulha 2018/2019, um programa da Prefeitura de Belo Horizonte realizado por meio da Secretaria Municipal de Cultura e pelo JA.CA — Centro de Arte e Tecnologia, oferecendo apoio para o desenvolvimento de pesquisas de artistas de todo o país.

Quando começou a residência, em março de 2019, Sallisa se interessou por um terreno localizado em frente ao Museu de Arte da Pampulha (MAP), destinado a abrigar seu anexo. Embora a ideia de um novo prédio para o museu tenha surgido em 2012, as obras nunca aconteceram, mantendo o território vazio. A artista, então, planejou realizar uma retomada simbólica da terra, uma vez que “não são os indígenas que estão nas cidades, mas as cidades que se situam em territórios indígenas”, como explicou. Além disso, os museus são reconhecidos por uma vasta trajetória de violência, sobretudo quando se trata de objetos não-ocidentais. Não são poucas as coleções etnográficas constituídas através de roubos e saques em nome da ciência, o que vem gerando fortes discussões sobre repatriação de objetos aos seus países de origem. Retomar simbolicamente o terreno destinado a construir um novo museu seria um modo de elaborar outros sentidos para a instituição no presente.

Quando decidiu realizar a ação, a artista procurou o Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas, uma organização formada por ativistas indígenas e não indígenas, criada por ocasião da Mobilização Nacional Guarani Kaiowá, em 2012. No comitê, encontrou apoio para convidar outros indígenas residentes na cidade, além de criar uma convocatória pública pelo Facebook, conseguindo reunir mais de 100 voluntários ao longo do dia.

Às nove da manhã, o grupo já estava reunido pedindo permissão à terra, antes de o plantio começar. Em seguida, parte dos voluntários plantava as manivas, ramas da mandioca, enquanto outro grupo preparava um almoço regado a peixe tambaqui, milho, batata e pajuaru, bebida fermentada de mandioca. A atividade se estendeu até o fim do dia, rendendo conversas sobre a história da mandioca como tecnologia indígena, a cultura da farinha do Brasil e meios possíveis para descolonizar a alimentação, tudo ao redor de uma fogueira. Sallisa explicou aos presentes que a ação proposta, intitulada Horta de mandioca, responde a uma divisão territorial originária, na qual existem os “povos do milho”, que habitam parte do que chamamos de América Latina; os “povos da batata”, que é o cultivo tradicional dos povos dos Andes; e os “povos da mandioca”, que são os povos originários do Brasil e região. “Acredito essa ser a divisão indígena deste território Abya Yala (nome indígena para América)”, defende a artista, em breve texto que elaborou para o site em que explica sua proposta.






Registros da ação proposta pela artista no Museu da Pampulha, Belo 
Horizonte, 2019.
Fotos: Alex Oliveira/Divulgação

Defender a farinha de mandioca em relação à farinha de trigo, amplamente consumida no Brasil, seria um modo de afirmar um repertório de saberes autóctones milenares. “Entendo a mandioca como caminho artístico ancestral, como possibilidade de enraizar a cultura indígena na cidade. A mandioca é tecnologia indígena e é também um ser encantado, cultivado coletivamente”, disse Sallisa.

É extensa a discussão sobre a transculturalidade da arte hoje, gerando polêmicas entre a Antropologia, a História da Arte e suas relações com comunidades não ocidentais. Indo além de critérios estéticos, os povos indígenas nos ensinam a pensar uma experiência artística que não culmine exclusivamente na contemplação ou na reflexão, mas que produza relações de sociabilidade. Em vez de interpretar a obra, somos convidados a investigar quais são as reações e as intencionalidades que ela provoca no decorrer da interação social. Assim, mais do que significar algo, uma obra é capaz de “produzir presença”, situação não muito distante do que entendemos por arte contemporânea hoje.

Mas os dilemas nem sempre se resolvem. Ao final da residência, quando a equipe do MAP perguntou qual obra da artista seria doada ao acervo do museu, Sallisa respondeu que seria a própria mandioca, enfrentando impasses institucionais. Como seria manter a horta viva para além de sua presença? Como conservar a raiz no museu? O futuro de Umuarama segue incerto, e seu legado foi testar alguns limites da própria instituição. As mandiocas, no entanto, continuam crescendo, enquanto as obras do novo edifício não começam.

ALÉM DAS RAÍZES
Em 2018, na véspera das eleições presidenciais no Brasil, perguntaram ao líder indígena Ailton Krenak como achava que os índios resistiriam a um novo endurecimento político no Brasil. Ele ofereceu uma resposta que se tornou célebre desde então: “Tem 500 anos que os índios estão resistindo, eu estou é preocupado com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”.

Se o governo Bolsonaro prometeu não demarcar mais nenhum centímetro de terra indígena, entre outros atentados aos direitos de suas comunidades, como o projeto de lei recente que pretende liberar o uso de terras indígenas para garimpo, o meio artístico, ao contrário, vive um momento de forte e crescente interesse pela alteridade, fruto de uma série de lutas anteriores por políticas públicas, com demandas por representatividade e participação. No que tange à questão indígena, os últimos anos presenciaram uma série de exposições coletivas interessadas em seus repertórios, incluindo bienais internacionais.




Performances da série Identidade é ficção, 2019. Fotos: Divulgação


Na mesma série, Sallisa ironiza a imagem que se tem dos indígenas, como se vivessem
em outra era. Foto: Divulgação

No entanto, o desafio ainda é resistir ao fetiche do exótico e as soluções de representação nem sempre são satisfatórias. O indígena no Brasil enfrenta generalizações variadas, sendo constantemente reduzido a um todo homogêneo, não histórico, pressionado a responder a uma expectativa idealizada, embora o país tenha mais de 300 etnias distintas, segundo dados do IBGE. Foi a partir dessas questões que Sallisa Rosa desenvolveu a série Identidade é ficção (2019), exposta até dezembro de 2919 na mostra coletiva Estratégias do feminino, com curadoria de Daniela Thomas, Fabrícia Jordão, Helena Severo e Rita Sepulveda de Faria, no Farol Santander, em Porto Alegre. São autorretratos que buscam refletir sobre as diversas possibilidades de identidade cultural em um contexto urbano e globalizado. “O julgamento que uma pessoa faz da minha identidade diz muito mais sobre ela mesma, de seus preconceitos e estigmas, do que sobre o que eu realmente sou”, pontuou a artista.

Em uma das fotos que expôs, sua mão aparece pintada de rosa choque, enquanto come um pequi – uma alusão à pintura corporal indígena com jenipapo, de cor negra. A substituição de uma cor pela outra gera estranhamentos de ambas as partes: frustra as expectativas de pureza que o homem branco nutre pelo outro e também produz questionamentos de parentes indígenas. Em outra imagem, ela aparece ao lado de um dinossauro artificial, sugerindo viver em tempos primordiais. São críticas irônicas e bem-humoradas, através de imagens expostas em porta-retratos envoltos com luz led azul. Pertencer ao coletivo e, simultaneamente, dar voz à própria singularidade pode ser uma árdua tarefa, fazendo notar que identidade é um conceito em deslocamento, constantemente em processo. Escrever a si mesmo também é tarefa política.

 
Para a série Resistência, iniciada em 2017, Sallisa se inspirou no protesto de Tuíra Kayapó.
Fotos: Divulgação

Já na série Resistência, iniciada em 2017, Sallisa se inspirou na indígena Tuíra Kayapó, mais conhecida pelo episódio em que colocou um facão no rosto do presidente da Eletronorte, opondo-se à construção da usina de Belo Monte no Pará, em 1989. A artista então realizou uma série de fotos registrando facões de pessoas próximas e familiares, como o pai, a irmã e outros colegas, como se capturasse objetos íntimos e pessoais. Se a ferramenta, no entanto, é um claro símbolo de ameaça e resistência, ela é também amplamente utilizada no dia a dia no campo, na cozinha e nos trabalhos rurais. São facões pessoais que nos contam histórias coletivas, registrando práticas dissidentes de sobrevivência. Reproduzindo-as em lambe-lambe, a artista espalhou as imagens pelos muros de várias cidades, até ser convidada pelo Museu de Arte de São Paulo (Masp) a expor um conjunto delas em Histórias feministas: artistas depois de 2000, com curadoria de Isabella Rjeille, no ano passado. Sallisa levou os lambes para dentro do Masp, por fim incorporados também ao seu acervo.

CAMINHAR BEM
Mas é preciso voltar três anos antes para compreender como se deu seu ingresso no mundo das artes visuais. Em 2016, quando cursava o mestrado em Criação e Produção de Conteúdo Audiovisual, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Sallisa começou a frequentar uma série de reuniões no Museu de Arte do Rio – MAR. Tratava-se de um trabalho colaborativo entre a equipe do museu, pesquisadores e indígenas com o objetivo de elaborar uma exposição de curadoria compartilhada. Intitulada Dja guata porã (em guarani, “caminhar bem, caminhar junto”), a exposição teve coordenação de Clarissa Diniz, José Ribamar Bessa Freire, Pablo Lafuente e Sandra Benites, e o processo de concepção reuniu indígenas de todo o estado do Rio, entre os povos Guarani, Puri e Pataxó, além da participação de movimentos como a Aldeia Vertical e a Aldeia Maracanã.

Semanalmente, as propostas para a exposição iam sendo discutidas pelo grupo, que se dividiu entre o museu e as aldeias. Foi nesse processo que Sallisa resolveu transformar uma pesquisa que já existia em instalação artística. Oca do futuro (2017) era um cômodo fechado, situado no meio do espaço expositivo. Quando o público o adentrava, encontrava ali uma rede de dormir, além de uma série de fotografias de indígenas que vivem em contexto urbano no Rio de Janeiro, registrados pela artista entre 2014 e 2017. Do lado de fora, um letreiro de led revelava o título do trabalho, mesclando referências ancestrais e futuristas. A artista queria evocar questões sobre cosmologia originária, integração nacional e a identidade de povos indígenas na cidade.


A instalação Oca do futuro, de 2016, foi exposta no Museu de Arte do Rio (MAR).
Fotos: Divulgação

Foi a partir dessa experiência que Sallisa encontrou na arte contemporânea um meio pelo qual poderia expressar seus anseios de modo mais experimental, buscando refletir sobre os desafios e as contradições que os povos indígenas atravessam em contexto globalizado.

O antropólogo Marcio Goldman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), descreve um caricato episódio que parece esclarecer os embates que o trabalho de Sallisa Rosa vem expondo desde então. No mercado local de Ilhéus, uma antropóloga vê um turista comprando artesanato de um vendedor que se apresenta como tupinambá. “Um pouco cético, o turista pergunta se ele é mesmo índio; ele responde que sim, que é índio; o turista insiste na dúvida, suspeitando de uma ascendência negra; o índio confirma que é tupinambá; o turista ainda argumenta: ‘Mas você não parece índio!’. E a resposta: ‘O que o senhor queria? São 500 anos de contato’”.

POLLYANA QUINTELLA, curadora e pesquisadora independente. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Colabora com pesquisa e assistência de curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR).

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