No mercado literário atual, existe um filão de biografias musicais. Nomes como Bob Dylan e Madonna são presenças constantes nas prateleiras de lançamentos das livrarias, e têm sido agraciados com inúmeras obras, de qualidade variável, que apelam, simultaneamente, a um público casual, mais próximo à música do que à literatura, e a outro, de colecionadores capazes de comprar qualquer coisa que tiver o nome de seus ídolos na capa. Mesmo antes de 10 de janeiro 2016, dia da notícia inesperada de sua morte por câncer, David Bowie já havia entrado para esse clube.
O livro do jornalista inglês John O’Connell, Bowie’s books (no Reino Unido), ou Bowie’s bookshelf (nos Estados Unidos), lançado em novembro passado, é mais uma dessas publicações. No entanto, utiliza uma estratégia interessante para escapar do formato tradicional do gênero, a partir de informações concedidas pelo próprio Bowie. A pedido da exposição itinerante David Bowie is, inaugurada em 2013, o próprio Bowie havia elaborado uma lista de 100 livros essenciais. Os livros foram compostos, então, como uma revoada de pássaros, em uma das salas da exibição. O jornalista, então, montou sua narrativa sobre essa lista, dedicando um pequeno ensaio a cada um deles, conjecturando sua influência ou conexão a composições, personagens ou passagens biográficas do cantor.
Não se pode dizer que esses sejam os seus livros preferidos, mas foram os que o artista escolheu recomendar para representar seu universo literário. Faltam obras de autores com os quais o artista mantinha laços de amizade e admiração, além de gêneros como a ficção científica e o terror, temas presentes em sua música. Apesar de a premissa soar um pouco forçada, o trabalho de O’Connell resulta em uma leitura bastante prazerosa. Ele ainda sugere, para cada livro, a audição de uma música de Bowie e a leitura de um livro adicional.
Cada uma das publicações citadas abre a porta para uma dimensão diferente da paisagem intelectual do artista, o que é um presente para o fã que gosta de decifrar as referências do seu trabalho. A lista contempla tanto clássicos da literatura mundial quanto títulos obscuros, e de épocas diferentes, sendo o mais recente de 2008.
O amor de Bowie pelos livros é destacado já na introdução, na qual o autor cita uma reportagem do jornal Sunday Times sobre a filmagem de O homem que caiu na Terra (1976), no estado americano do Novo México. Recém-saído da turnê Diamond dogs, durante a qual estava fazendo uso constante de cocaína, Bowie foi encontrado pelo repórter em ótima saúde, limpo e dedicando suas horas vagas a outra atividade, a leitura. O artista apresentou sua biblioteca ambulante, um baú que o acompanhava em suas viagens, no qual transportava 1.500 livros. A notoriedade de seu amor pelos livros o levou a ser convidado a escrever resenhas literárias para a revista da rede de lojas Barnes & Noble, em 1998.
Truman Capote e Yukio Mishima tiveram suas obras listadas por David Bowie. Imagens: Reprodução
É impressionante que o próprio Bowie nunca tenha se aventurado a escrever os próprios livros. Ele publicou resenhas e contos e, ao final de sua vida, escreveu o musical Lazarus, mas um livro, pelo que se saiba até agora, não. Outro de seus grandes interesses, a pintura, só veio a público na década de 1990, embora tenha surgido desde os 12 anos, inspirado pela leitura de On the road, de Kerouac. O pequeno David Jones foi muito cedo apresentado aos beatniks e seus métodos de criação baseados em regras, como o cut up de Burroughs e as composições aleatórias de John Cage, que ele usaria bastante no futuro.
A música de David Bowie nunca foi confessional. Ele não fez parte da geração de cantores-compositores da década de 1970, exemplificada por Joni Mitchell, Simon e Garfunkel ou James Taylor. Sua origem é o teatro, e ele utilizou o espetáculo dos shows de rock como moldura para interpretar personagens. Em grande parte das vezes, esses personagens encontraram ressonância no zeitgeist, como Major Tom, Ziggy Stardust, Aladdin Sane ou The Thin White Duke. Outras vezes, o público mal os percebeu, como no caso de Nathan Adler, o detetive que, em 1.Outside, busca um assassino serial, descobre que os crimes fazem parte de uma performance artística, e entra em conflito porque passa a admirar a obra de arte.
“O papel que a leitura presta à busca por novas personalidades não pode ser subestimado”, escreve O’Connell, “porque ler é, dentre outras coisas, um escape – para dentro de outras pessoas, outras perspectivas, outras consciências. É capaz de tirar alguém de si mesmo, apenas para devolver depois infinitamente enriquecido”.
Os melhores insights de O’Connell surgem quando ele consegue traçar paralelos entre personagens dos livros e aqueles criados por Bowie. Sob seu ponto de vista, os Spiders from Mars, a gangue de Ziggy, derivam diretamente dos droogs de Laranja Mecânica (Anthony Burgess, 1962), inclusive ao cogitarem dar cabo de seu líder. A heroína de Madame Bovary, de Flaubert (1856), uma jovem que se vê presa a um casamento com um médico de uma cidade provinciana, é comparada à personagem devaneante de Life on Mars?, que vai ao cinema e não consegue ver o filme, entorpecida pela mediocridade da sua vida. O grande Gatsby (F. Scott Fitzgerald, 1925) é o dândi original, o misterioso e impecável Bowie que conquista a todos com seu charme e beleza.
É claro que, em um ensaio tão extenso e baseado em suposições, vez por outra o jornalista faz um malabarismo pra fazer valer um capítulo. Em Ilíada (Homero, século XIII a.C.), o autor argumenta que a figura da armadura de Aquiles ensinou a Bowie que as roupas têm a capacidade de dar poder a quem as veste. E assemelha “poder” a “sucesso”, dizendo que Bowie parasitou as forças de Iggy Pop e Lou Reed (e Reeves Gabrels, Brian Eno, Mick Jones e tantos outros colaboradores).
Em Lolita (1955), na falta de uma análise melhor, ele desencava uma entrevista de Nabokov em que este diz que o sucesso nunca vem quando o artista está querendo agradar ao público, para citar dois discos ruins que Bowie lançou nos anos 1980. Perdeu a oportunidade de entender a identificação de Bowie com o protagonista Humbert Humbert, não em sua pedofilia, mas em seu olhar europeu e irônico sobre a sociedade americana pós-Segunda Guerra, e seu profundo desprezo pelo consumismo e falta de cultura do Novo Mundo.
Às vezes, um autor é mais influente para Bowie do que o livro citado na lista. Um padrão que pode ser percebido na lista do artista é o de atração por tudo o que é transgressor, e muitas vezes ele menciona obras de autores que são, em si mesmos, personagens. É o caso de Truman Capote. O escritor era espalhafatoso em gestos e indumentária, e, com uma voz fina que se tornou sua marca registrada, não fazia a menor questão de esconder que era gay, algo raro o suficiente na época para sua cidade, Nova York, que dirá para Hollocomb, a cidade de interior que visitou durante anos, para a apuração de A sangue frio (1966). Como sua amiga Harper Lee disse em entrevista a Gloria Steinem, “Era como se ele tivesse vindo da Lua – aquelas pessoas nunca haviam visto nada parecido a Truman”. Um verdadeiro “homem que caiu na Terra.”
Ainda mais influente foi Yukio Mishima, um escritor (ator, dramaturgo, cantor, terrorista) de sexualidade abertamente fluida, assim como Bowie se revelou a partir da entrevista bombástica de 1972, na qual assumiu que era gay, apesar de ser casado com Angie Barnett. O japonês era viril e idealista, e abertamente gay, enquanto mantinha um casamento e filhos, sem transparecer nenhuma contradição. Acumulava criações artísticas em várias mídias, e morreu por haraquiri, após o fracasso de uma tentativa de golpe de estado liderada por ele. Seus livros são cheios de confrontos brutais com tudo o que era estabelecido como norma social. Foi tão inspirador para Bowie, que este produziu um quadro com seu retrato e o mantinha pendurado no apartamento que ocupava em Berlim, na época da gravação de Heroes. A influência de Mishima durou até os últimos anos da vida de Bowie. Ele chegou a citar o livro Neve de primavera (o cadáver de um cão obstruindo uma queda d’água) em Heat, música do disco The next day (2013).
O único autor que figura duas vezes na lista é o inglês George Orwell. Um dos livros é uma coletânea de artigos Dentro da baleia e outros ensaios (1940), e o outro é 1984, que curiosamente foi escrito em 1947, ano em que Bowie nasceu. Tamanha foi a influência do romance distópico, que Bowie tentou convencer a viúva de Orwell a fazer uma adaptação musical, um show e um filme, em 1973. Perante a negação, restou ao músico usar fragmentos já iniciados para compor Diamond dogs, que contém músicas como 1984, Big Brother e We are the dead, todas diretamente inspiradas na obra.
George Orwell, outro autor citado por Bowie. Imagem: Reprodução
Outros temas comuns às sugestões de Bowie são música pop, arte moderna e seu fascínio por três lugares – Japão, Berlim e Nova York. Embora o crítico Greil Marcus nunca tenha gostado do cantor, seu Mystery train (1975) é citado, e embora o músico tivesse suas ressalvas quanto ao pintor, Entrevistas com Francis Bacon (David Sylvester, 1987), também, demonstrando a disposição literária democrática do cantor.
OUTROS SOB INFLUÊNCIA A literatura já serviu de grande influência ao rock. Pink Floyd (Animals, Chapter 24), Kate Bush (Wuthering Heights, The sensual world), Rick Wakeman (Voyage to the center of the Earth), Led Zeppelin (Misty mountain hop, The battle of evermore) e Rush (Tom Sawyer) são todos amantes das letras e fizeram homenagens desavergonhadas aos seus livros favoritos em dezenas de músicas.
Que músicos da atualidade poderíamos citar como sendo entusiastas da literatura? O Radiohead mencionou o livro de Naomi Klein Sem Logo (1999) como principal inspiração para o aclamado Kid A (2000), mas, ao longo da carreira, pareceu tirar mais inspiração do cinema. House of cards é inspirada em Tempestade de gelo (1997), de Ang Lee. O clipe de Burn the witch é uma versão em animação do filme O homem de palha (1973), de Robin Hardy. O mesmo vale para bandas que os influenciaram, REM e Pixies, fãs do cinema de David Lynch e Todd Haynes.
É uma pena que não existam mais músicos com a cultura literária de David Bowie. Até mesmo bandas “cabeçudas”, como Sleater-Kinney, estão rendidas à mediocridade linguística da internet. Fizeram um disco com um título homenageando a escritora Joan Didion, The center won’t hold (2019), mas a letra de um dos primeiros singles, The future is here, fala de vício em redes sociais: “Começo o dia em uma tela minúscula (…) Nunca me senti tão desesperadamente perdida e sozinha”.
David Bowie percebeu desde cedo o valor da internet, e foi ímpar em seu uso. Na década de 1990, ele lançou não apenas um site, mas o BowieNet, um provedor de acesso que garantia qualidade de serviço aos seus fãs. A iniciativa logo cedeu sob a pressão de gigantes da comunicação como a AT&T e hoje temos exatamente o que ele temia: uma rede fechada, em que as pessoas navegam através de serviços que roubam seus dados e sua privacidade, além da liberdade de escolherem o que querem ler.
Não por acaso, um dos títulos recomendados por Bowie é The age of American unreason (2008), de Susan Jacoby. O livro descreve os movimentos anti-intelectuais do terraplanismo e da cruzada contra a vacinação, como sintomas da estupidificação do cidadão americano. A autora aponta a internet como um dos vetores da proliferação desse lixo cultural, antes mesmo de as redes sociais se transformarem em fábricas de fake news.
“Um dos maiores problemas, diz Jacoby, é que os americanos não leem mais tanto quanto já o fizeram. Eles perderam o hábito de pensar profunda e lentamente e, como resultado, não mais respeitam a história, o conhecimento ou a especialização”, ressalta O’Connell. Sua biografia nos faz conhecer um pouco mais de David Bowie, para aplacar nossa saudade, mas é, sobretudo, uma celebração aos livros.
YELLOW, designer, linguista, analista de sistemas, professor e músico.