Portfólio

Flora Assumpção

Natureza, cultura e criação

TEXTO Olívia Mindêlo

03 de Fevereiro de 2020

Série 'Herbário' (2015-2017), desenho sobre fotografia

Série 'Herbário' (2015-2017), desenho sobre fotografia

Foto FLÁVIO LAMENHA/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 230 | fevereiro de 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

Uma imagem custa tanto trabalho
à humanidade quanto uma
característica nova à planta.

(Jacques Bousquet, em A água e os sonhos, de Gaston Bachelard)

Ao desgarrar-se do natural, o homem ocidental moderno instituiu para si um abismo ilusório; porém, igualmente passível de assombro, como ocorre a toda criação mental. Se, de um lado, essa artificialidade deu aos bípedes certa segurança para lidar com o meio – e capacidade para produzir novas realidades (ou naturezas) –, de outro, nos persegue como uma doença, um paradoxo sobre sermos e não sermos deste mundo. O antídoto está ironicamente na (nossa) própria natureza, com toda sua engenhosidade criativa; está também nos cientistas, pensadores e artistas que veem na dimensão da experiência uma conexão com o todo mais vibrante e profundo.

O filósofo e poeta Gaston Bachelard (1884-1962) sabia disso, ao posicionar a imaginação como um lugar de aprofundamento, de contaminação e de resposta criativa ao meio. Como nos lembra a pesquisadora Yohana Junker, a artista Flora Assumpção, nascida quase um século depois do francês, também cultiva essa consciência, quando procura no próprio fazer da linguagem visual sua forma de estar no mundo por inteiro, tecendo outras realidades com rigor e obstinação. Colocar-se diante da obra dessa mineira formada em São Paulo é entender, à luz de Bachelard, que “a imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade”.

A obra de Flora é o real per si reagindo esteticamente a elementos preexistentes do nosso meio – plantas, animais, fenômenos naturais, onde encontra as chamadas formas primordiais, base da criação de tudo que existe. Uma vez compreendido isso, um mundo novo se descortina à nossa frente e nos convida a uma imersão onde tudo está interligado. Buscando respostas nas artes visuais, sobretudo no desenho que se expande e encontra no trabalho manual aquilo que restitui a potencialidade de seu ofício, Flora problematiza a fenda entre natureza e cultura. E, assim, nos coloca diante de situações como a de uma paisagem de mata intocada cuja perspectiva é modificada pelo seu enquadramento. Sobre as plantas selvagens, ela traça grades ornamentais e emoldura nossa visão, limitando-a a certa apreciação confortável, como uma janela de observação e proteção, também por isso dual, pois seus desenhos telúricos se contaminam da paisagem e nos fazem respirar, libertando a imaginação.


Imagens da série Herbário (2015-2017), desenho sobre fotografia em instalação de backlights, com 2 x 3 m cada. Sesc Osasco (SP). Foto: Flávio Lamenha/Divulgação

A série Herbário (2015-2017), sobre a qual falamos acima, é significativa para pensar o trabalho de Flora. Estão aí elementos que integram sua pesquisa desde muito cedo, sua observação sobre a natureza, sua interferência no verde do reino vegetal, suas experimentações formais. Vemos ainda os padrões geométricos naturais como fonte poética de criação e questionamento. “Existe uma constante também em meu trabalho que são as caixas. Os herbários são imagens fotográficas que fiz, mas pensando sempre meu trabalho como desenho, pois acabei interferindo com as grades, que são imagens desenhadas, vetorizadas por cima das fotografias. E quando falo da ideia de caixa, é porque a moldura completa essa grade como janela”, explica a artista, também professora de Artes Visuais e propulsora do grupo e da revista Têmpera, no Recife.

Em 2017, a série foi exposta no Sesc Osasco (SP), em formato de 10 backlights instalados no caminho do jardim, como uma proposta da própria instituição. “Isso veio completamente de acordo com o meu trabalho, porque está em um ambiente natural que é uma paisagem um pouco domada pelo homem, pois há o paisagismo do Sesc”. Para a artista, o conceito de herbário, como uma criação humana, “é a ideia do orquidário, do jardim botânico, do controle de outra espécie; é sempre a questão da humanidade controlando outras espécies da natureza”.




Trepantes II com Serpentes azuis I e II (2019), exposição Ovo, Villa Ritinha, Recife.
Fotos: Alícia Cohim/Divulgação

Pensando as criações de Flora como um contínuo – conforme podemos constatar observando sua pesquisa visual desde o início dos anos 2000 e segundo ela mesma encara –, descobrimos que as caixas mencionadas pela artista surgem como elementos de coesão e solução estética. Esses objetos aparecem de diferentes maneiras em seu repertório visual, seja nos relicários de resina cristal da série Fósseis, de 2013, na qual ela apreende delicadamente pequenas cobras – sua coleção de colares de metal; seja nos estojos de maquiagem que viram Ostras (2014-2017), da série Pequenas naturezas; ou ainda no aprisionamento de outras de suas serpentes (Serpentes azuis [Das criaturas híbridas]) dentro de uma antiga jaula de leão, ainda mantida no quintal da Villa Ritinha, no Recife, onde expôs recentemente com o grupo Têmpera.

Através das caixas, Flora trabalha tanto o conceito de dominação e controle presente em nossa cultura, ou do natural versus o artificial, quanto a sua maneira particular de lidar com a materialidade plástica, seu maior artifício de sedução.



Fósseis (Coleção I) (2013). Resina cristal, metais diversos e aço inox, 6 x 35 x 50 cm
  
Ostra IV e Ostra tripartida (2014-2017), da série Pequenas naturezas.
Objetos com plástico, vidro e papel. 



Squamata [Azul], da série Pequenas naturezas. Acrílico, papel e tecido. 
Fotos: Flávio Lamenha/Divulgação


PROCESSO CRIATIVO
Flora costuma dizer que “podemos fazer arte com qualquer coisa, mas não é qualquer coisa que é arte”. Graduada em Artes Visuais pela USP, onde também tirou seu diploma de mestrado e doutorado na mesma área, a pesquisadora faz questão de frisar: “Sou uma artista visual que tem uma formação clássica: eu aprendi a desenhar, depois aprendi a pintar, depois aprendi a fazer gravura. Só depois, a partir do bidimensional, expandindo o desenho para o espaço tridimensional, é que cheguei à escultura. A minha escultura se dá por um pensamento que foi o da expansão do bidimensional, uma ideia que hoje a gente chama de desenho expandido”.

Foi no mergulho teórico-prático da pós-graduação que aprofundou seu amadurecimento artístico nessa direção, tanto conceitual quanto esteticamente. “A primeira obra da série A natureza da natureza, de 2015, foi quando comecei a trabalhar o ar, o espaço profundo e suspenso. Eram os módulos sem apoio em superfície. É uma série que é a minha tese de doutorado, que se desenvolve a partir da minha dissertação de mestrado, mas que também sai do meu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), então meu trabalho é todo um contínuo, ele mostra a intelectualidade, o raciocínio que existe nas artes visuais”. Ao submeter suas criações ao espaço tridimensional, a artista promove uma relação com as arquiteturas dos lugares onde vem desenvolvendo projetos expositivos.

Nessa construção, é ponto estruturante a descoberta de uma dobra de costura tradicional através da qual criou módulos manualmente, com diversos materiais, dando origem a uma série de trabalhos monumentais. A instalação Drusa, feita em 2013 como intervenção na arquitetura da Galeria Emma Thomas (SP), marca o início desse processo com as dobras. A instalação de plástico translúcido criou um ambiente imersivo, todo azul, que remete diretamente a essa relação produzida pelo ser humano frente ao mundo circundante. As formas lembram redemoinhos e, pela luz, nos atiram em uma atmosfera gélida atraente, como se estivéssemos a testemunhar fenômenos promovidos pela água em interação com o ar. O título faz referência às transformações geológicas que ocorrem no interior das rochas, a partir do resfriamento da lava vulcânica que dá origem a uma infinidade de cristais. Tal referência visual se mostra ainda mais evidente em seu conjunto de “cavernas” (da série Pequenas naturezas), com objetos em vasos de vidro que contêm encrustada uma espiral de sobreposições coloridas feitas com as mesmas dobras – nesse caso, de papel – formando degradés hipnotizantes.


Drusa (2013-2014), instalação feita a partir de desenho com acetato translúcido. Galeria Emma Thomas (SP). Foto: Flávio Lamenha/Divulgação

Sobretudo com essas dobras, a repetição é um elemento estético que Flora persegue com afinco. Do exercício, nascem escamas, folhas, trepadeiras, heras, mandalas, bichos e mesmo cristais, a depender dos materiais e formas escolhidos. E essa pesquisa, é preciso lembrar, vem de antes, quando o desenho só ocupava a superfície plana, por meio de pinturas, gravuras, fotogravuras e fotografias. Com essas linguagens, ela já articulava um diálogo com a tridimensionalidade, sendo uma constante, desde o princípio, pensar as duas dimensões espaciais simultaneamente, a partir de seus desenhos. Trabalhos como Rusticidade (2002), Engavetado (2004), Ratora (2005) e Araucárias (2006) são exemplos dos primórdios de sua pesquisa nesse sentido.

Mas é justamente com a sequência empreendida em A natureza da natureza que a artista aprofunda sua imaginação. Se, em Drusa, havia a ideia de usar as dobras como revestimento arquitetônico, em Rabo de lagarto (2014), ela começa a se lançar para fora dos ângulos retos. O espaço passa a ser mais fluido e condicionado por ela, encontrando o ponto de maturação em Cativa [A natureza da natureza], de 2018. Na exposição da Galeria Janete Costa, projetada por Oscar Niemeyer, no Recife, ela precisou ocupar 1.500 metro quadrado de área, o que a fez confeccionar manualmente, junto a artesãos de São Lourenço da Mata (PE) e outros assistentes, cerca de 120 mil módulos da mesma dobra feitos de plástico translúcido em verde, azul e fumê, que se enramavam e caíam ao longo da galeria como uma única instalação. Também foram confeccionadas, com a mesma dobra, mandalas em tecido e tetrapak, cujas composições cromáticas conferiam aos objetos uma qualidade pictórica e dinâmica. Ali, um novo ambiente foi concebido, um ambiente em constante transformação.

Yohana Junker, autora do texto expositivo, teceu a seguinte apreciação: “Na simulação híbrida que consubstancia a natureza, o cotidiano, a tecnologia, o industrializado, a maleabilidade e a rigidez, as obras confundem a expectativa do observador, enevoando os limites entre forma e função, familiar e fantástico, o lúdico e o crítico. As estruturas de folhagens artificiais que demarcam a galeria, por exemplo, podem ser descobertas como trepadeiras, plantas rasteiras, tentáculos animais, uma cascata ou cachoeira camufladas que abalam o espaço como ondas, maremotos. Sua investigação artística traz experimentos que delineiam e articulam uma cartografia da proximidade. É no entrelaçar das formas, das repetições, dos materiais, das cores, das texturas e dos corpos (sejam eles animais fantásticos ou humanos) que um convite nos é estendido para que tateemos e reimaginemos as possibilidades, mutações e limites da interação humana com a natureza”.




Mais de 120 mil módulos com dobras de plástico compuseram a instalação de Cativa [A natureza da natureza]. Galeria Janete Costa, Recife, 2018. Fotos: Flávio Lamenha/Divulgação


Pequenas hydras, mandalas feitas em algodão natural junto a artesãos de São Lourenço da Mata (PE). Galeria Janete Costa, Recife, 2018. Foto: Flávio Lamenha/Divulgação

Saindo da galeria, encontramos ainda outro aspecto crucial dessa interação: a relação de Flora com a água e, sobretudo, o azul, sua cor predileta desde quando era aluna da Waldorf, escola com base na antroposofia e nos trabalhos manuais. Sua mãe conta que, antes dos três anos, a filha já gastava o giz azul até se esgotar e, na infância, queria tudo que fosse da cor. Não é de se estranhar que o azul, “das cores mais misteriosas e difíceis de se obter na história da humanidade”, como diz a artista, esteja tão presente em sua obra, não apenas nas cascatas de A natureza da natureza e Drusa, mas na série Piscina, a partir de 2011, no projeto Vertigem do mar (2010-2014), e nas imagens de Pequeno compêndio das tormentas (2013-2014), por exemplo.

Nas piscinas, mais uma vez, está sua reflexão sobre como a forma traduz nossa maneira de lidar com o natural. O plástico é potente como material, pois tem sido nossa pior reposta artificial ao mundo. A caixa, nossa eterna mania de conter o que nos cerca. Da simplicidade à complexidade, a energia da criação se impõe na obra da artista e chega à perspectiva crítica, nos deixando esta reflexão: “Todo ato criador tem algo do divino, da mesma fagulha. Se sairmos dessa limitação de crer numa divindade enquanto entidade consciente e pensante conforme o funcionamento do intelecto humano (apenas como um humano mais poderoso), e imaginarmos o divino enquanto a força da vida que inicia e mantém todas as formas de vida em todas as suas transformações, fica mais palpável essa noção da criatividade. Não apenas para a arte, mas para qualquer atividade humana. Entendo que considerar que o esforço de uma planta para criar uma característica seja o mesmo de um humano criar uma imagem é, essencialmente, naturalizar a arte e, portanto, a humanidade que a produz”.


A super-piscina (2014), projeto de ficção realizado para uma galeria imaginária a partir da manipulação digital da imagem. Imagem: Flora Assumpção


Piscina (Troféu-monumento) (2016). Acrílico maciço translúcido azul e alvenaria revestida com azulejos, 0,45 x 0,90 x 2,5 m. Foto: Flávio Lamenha/Divulgação

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural com mestrado em Sociologia e editora da Continente Online.

*Com colaboração da jornalista Samanta Lira.

----------------------------------------------------------------
Extra:
Veja abaixo galeria com obras da artista de 2002 a 2018

veja também

Celso Hartkopf

Uma análise do frevo

Mayday Midnight