Squamata [Azul], da série Pequenas naturezas. Acrílico, papel e tecido.
Fotos: Flávio Lamenha/Divulgação
PROCESSO CRIATIVO
Flora costuma dizer que “podemos fazer arte com qualquer coisa, mas não é qualquer coisa que é arte”. Graduada em Artes Visuais pela USP, onde também tirou seu diploma de mestrado e doutorado na mesma área, a pesquisadora faz questão de frisar: “Sou uma artista visual que tem uma formação clássica: eu aprendi a desenhar, depois aprendi a pintar, depois aprendi a fazer gravura. Só depois, a partir do bidimensional, expandindo o desenho para o espaço tridimensional, é que cheguei à escultura. A minha escultura se dá por um pensamento que foi o da expansão do bidimensional, uma ideia que hoje a gente chama de desenho expandido”.
Foi no mergulho teórico-prático da pós-graduação que aprofundou seu amadurecimento artístico nessa direção, tanto conceitual quanto esteticamente. “A primeira obra da série A natureza da natureza, de 2015, foi quando comecei a trabalhar o ar, o espaço profundo e suspenso. Eram os módulos sem apoio em superfície. É uma série que é a minha tese de doutorado, que se desenvolve a partir da minha dissertação de mestrado, mas que também sai do meu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), então meu trabalho é todo um contínuo, ele mostra a intelectualidade, o raciocínio que existe nas artes visuais”. Ao submeter suas criações ao espaço tridimensional, a artista promove uma relação com as arquiteturas dos lugares onde vem desenvolvendo projetos expositivos.
Nessa construção, é ponto estruturante a descoberta de uma dobra de costura tradicional através da qual criou módulos manualmente, com diversos materiais, dando origem a uma série de trabalhos monumentais. A instalação Drusa, feita em 2013 como intervenção na arquitetura da Galeria Emma Thomas (SP), marca o início desse processo com as dobras. A instalação de plástico translúcido criou um ambiente imersivo, todo azul, que remete diretamente a essa relação produzida pelo ser humano frente ao mundo circundante. As formas lembram redemoinhos e, pela luz, nos atiram em uma atmosfera gélida atraente, como se estivéssemos a testemunhar fenômenos promovidos pela água em interação com o ar. O título faz referência às transformações geológicas que ocorrem no interior das rochas, a partir do resfriamento da lava vulcânica que dá origem a uma infinidade de cristais. Tal referência visual se mostra ainda mais evidente em seu conjunto de “cavernas” (da série Pequenas naturezas), com objetos em vasos de vidro que contêm encrustada uma espiral de sobreposições coloridas feitas com as mesmas dobras – nesse caso, de papel – formando degradés hipnotizantes.
Drusa (2013-2014), instalação feita a partir de desenho com acetato translúcido. Galeria Emma Thomas (SP). Foto: Flávio Lamenha/Divulgação
Sobretudo com essas dobras, a repetição é um elemento estético que Flora persegue com afinco. Do exercício, nascem escamas, folhas, trepadeiras, heras, mandalas, bichos e mesmo cristais, a depender dos materiais e formas escolhidos. E essa pesquisa, é preciso lembrar, vem de antes, quando o desenho só ocupava a superfície plana, por meio de pinturas, gravuras, fotogravuras e fotografias. Com essas linguagens, ela já articulava um diálogo com a tridimensionalidade, sendo uma constante, desde o princípio, pensar as duas dimensões espaciais simultaneamente, a partir de seus desenhos. Trabalhos como Rusticidade (2002), Engavetado (2004), Ratora (2005) e Araucárias (2006) são exemplos dos primórdios de sua pesquisa nesse sentido.
Mas é justamente com a sequência empreendida em A natureza da natureza que a artista aprofunda sua imaginação. Se, em Drusa, havia a ideia de usar as dobras como revestimento arquitetônico, em Rabo de lagarto (2014), ela começa a se lançar para fora dos ângulos retos. O espaço passa a ser mais fluido e condicionado por ela, encontrando o ponto de maturação em Cativa [A natureza da natureza], de 2018. Na exposição da Galeria Janete Costa, projetada por Oscar Niemeyer, no Recife, ela precisou ocupar 1.500 metro quadrado de área, o que a fez confeccionar manualmente, junto a artesãos de São Lourenço da Mata (PE) e outros assistentes, cerca de 120 mil módulos da mesma dobra feitos de plástico translúcido em verde, azul e fumê, que se enramavam e caíam ao longo da galeria como uma única instalação. Também foram confeccionadas, com a mesma dobra, mandalas em tecido e tetrapak, cujas composições cromáticas conferiam aos objetos uma qualidade pictórica e dinâmica. Ali, um novo ambiente foi concebido, um ambiente em constante transformação.
Yohana Junker, autora do texto expositivo, teceu a seguinte apreciação: “Na simulação híbrida que consubstancia a natureza, o cotidiano, a tecnologia, o industrializado, a maleabilidade e a rigidez, as obras confundem a expectativa do observador, enevoando os limites entre forma e função, familiar e fantástico, o lúdico e o crítico. As estruturas de folhagens artificiais que demarcam a galeria, por exemplo, podem ser descobertas como trepadeiras, plantas rasteiras, tentáculos animais, uma cascata ou cachoeira camufladas que abalam o espaço como ondas, maremotos. Sua investigação artística traz experimentos que delineiam e articulam uma cartografia da proximidade. É no entrelaçar das formas, das repetições, dos materiais, das cores, das texturas e dos corpos (sejam eles animais fantásticos ou humanos) que um convite nos é estendido para que tateemos e reimaginemos as possibilidades, mutações e limites da interação humana com a natureza”.
Mais de 120 mil módulos com dobras de plástico compuseram a instalação de Cativa [A natureza da natureza]. Galeria Janete Costa, Recife, 2018. Fotos: Flávio Lamenha/Divulgação
Pequenas hydras, mandalas feitas em algodão natural junto a artesãos de São Lourenço da Mata (PE). Galeria Janete Costa, Recife, 2018. Foto: Flávio Lamenha/Divulgação
Saindo da galeria, encontramos ainda outro aspecto crucial dessa interação: a relação de Flora com a água e, sobretudo, o azul, sua cor predileta desde quando era aluna da Waldorf, escola com base na antroposofia e nos trabalhos manuais. Sua mãe conta que, antes dos três anos, a filha já gastava o giz azul até se esgotar e, na infância, queria tudo que fosse da cor. Não é de se estranhar que o azul, “das cores mais misteriosas e difíceis de se obter na história da humanidade”, como diz a artista, esteja tão presente em sua obra, não apenas nas cascatas de A natureza da natureza e Drusa, mas na série Piscina, a partir de 2011, no projeto Vertigem do mar (2010-2014), e nas imagens de Pequeno compêndio das tormentas (2013-2014), por exemplo.
Nas piscinas, mais uma vez, está sua reflexão sobre como a forma traduz nossa maneira de lidar com o natural. O plástico é potente como material, pois tem sido nossa pior reposta artificial ao mundo. A caixa, nossa eterna mania de conter o que nos cerca. Da simplicidade à complexidade, a energia da criação se impõe na obra da artista e chega à perspectiva crítica, nos deixando esta reflexão: “Todo ato criador tem algo do divino, da mesma fagulha. Se sairmos dessa limitação de crer numa divindade enquanto entidade consciente e pensante conforme o funcionamento do intelecto humano (apenas como um humano mais poderoso), e imaginarmos o divino enquanto a força da vida que inicia e mantém todas as formas de vida em todas as suas transformações, fica mais palpável essa noção da criatividade. Não apenas para a arte, mas para qualquer atividade humana. Entendo que considerar que o esforço de uma planta para criar uma característica seja o mesmo de um humano criar uma imagem é, essencialmente, naturalizar a arte e, portanto, a humanidade que a produz”.
A super-piscina (2014), projeto de ficção realizado para uma galeria imaginária a partir da manipulação digital da imagem. Imagem: Flora Assumpção
Piscina (Troféu-monumento) (2016). Acrílico maciço translúcido azul e alvenaria revestida com azulejos, 0,45 x 0,90 x 2,5 m. Foto: Flávio Lamenha/Divulgação
OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural com mestrado em Sociologia e editora da Continente Online.
*Com colaboração da jornalista Samanta Lira.
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Extra:
Veja abaixo galeria com obras da artista de 2002 a 2018
'Rusticidade' (2002). Desenho com lixas pretas sobre parede, 14 x 3 m. Centro Universitário Maria Antônia (USP, São Paulo/SP). Por Flora Assumpção
'Serpentário II', do projeto 'Serpentes de prata' ( 2010-2011). Instalação com cartazes lambe-lambe, 42 m². Galeria Vermelho - Espaço Tihuana, São Paulo (SP). Por Flora Assumpção
'Serpentes reencarnadas II' (2011). Impressão digital para outdoor, 5,85 x 3,1 m, Fortaleza (CE). Por Flora Assumpção
'Serpentes de ouro I', da série 'Serpentes fantasmas' (2012). Caixa de madeira e acetato e impressão em poliéster espelho, 14 x 30 x 30 cm. Por Flora Assumpção
'Serpentes de ouro II', da série 'Serpentes fantasmas' (2012). Caixa de madeira e acetato e impressão em poliéster espelho, 14 x 30 x 30 cm. Por Flora Assumpção
'Spectro III' ('Serpentes igneas') (2013). Fotogravura em folha de ouro e latão, 15 x 20 cm (aprox.). Por Flora Assumpção
'Tatu (Prata)', da série 'Animais simbióticos' (2013-2014). Gravação a laser sobre espelho, 16 x 16 cm (aprox.). Por Flora Assumpção
'Simbiose (versão II)' (2014), da série 'Animais simbióticos'. Cubo cristal desmontável em seis faces de acrílico recortado e gravado a laser, 7 x 7 x 7 cm. Por Flora Assumpção
'Pequeno compêndio dos mares III' (2014). Fotogravura sobre papel hahnemühle, 15 x 20 cm (aprox.). Por Flora Assumpção
Formas primordiais de uma arquitetura microscópica estão em obras como 'Estrela de gelo' (para Alexey Kljatov) (2014). Fotogravura sobre papel hahnemühle, com 9 x 10 cm (aprox.). Por Flora Assumpção
'Rabo de lagarto' (2014). Instalação com 42 m², feita em plástico verde translúcido dobrado em módulos iguais. Aquário Oiticica, Mamam (Recife/PE). Por Flora Assumpção
'Rabo de lagarto' (2014). Instalação com 42 m², feita em plástico verde translúcido dobrado em módulos iguais. Aquário Oiticica, Mamam (Recife/PE). Por Flora Assumpção
Ostras da série 'Pequenas naturezas' (2014-2017). Objetos com plástico, vidro e papel. Por Flora Assumpção
Ostras da série 'Pequenas naturezas' (2014-2017). Objetos com plástico, vidro e papel. Por Flora Assumpção