Não há comonegar, a música eletrônica vem ocupando espaços cada vez mais significativos dentro dos roteiros musicais ao redor do mundo. Independentemente do lugar – em grandes palcos, pequenas boates ou espalhadas pelas ruas – as performances, samplers, sintetizadores e processadores de efeito se incorporam ao estilo de vida urbano de distintos grupos políticos, econômicos e sociais. Na capital pernambucana, isso também é realidade, e a 16ª edição do festival No Ar Coquetel Molotov reforça a tendência.
Além de nomes como Black Alien, Liniker e Sevdaliza, escolhidos para integrar a line-up, vários artistas de música eletrônica também irão subir aos palcos. Em destaque, a festa, selo e coletivo paulista Gop Tun; o DJ e produtor Coppola; o coletivo recifense Revérse e o paulistano Gui Boratto, fundador do selo de música eletrônica D.O.C. Records, com distribuição assinada pela gravadora alemã Kompakt.
“Há alguns anos que a música eletrônica underground vem tomando conta das noites em cidades como São Paulo e, logo depois, Recife. Já era um movimento esperado. Desde então, começamos a convidar festas para encerrar o festival. Mas também sentimos que o futuro será com DJs nos palcos principais, e não por acaso vimos isso rolar no Rock in Rio, no Primavera Sound, entre outros. O Recife está fervendo, queríamos trazer um pouco disso para dentro do Molotov”, pontuou a idealizadora e curadora do Coquetel Molotov, Ana Garcia.
Para ela, além da facilidade para transitar em espaços públicos e alternativos, a efervescência de ritmos como techno dá-se, principalmente, em períodos de instabilidade econômica e política, na busca pela extroversão de sentimentos, numa espécie de catarse coletiva. Dentro desse território, diversos artistas têm se aproximado da música eletrônica. Entre eles, a compositora, atriz, roteirista e cantora Clarice Falcão, cuja participação no festival tem apresentação da revista Continente.
Há seis anos, a pernambucana radicada no Rio de Janeiro foi uma das atrações principais da 10ª edição do No Ar Coquetel Molotov, apresentando seu álbum de estreia folk pop Monomania. De lá para cá, muito mudou. Em seu segundo disco, Problema meu (2016), por exemplo, foi possível observar o amadurecimento das composições e o desejo de inovar a partir da mistura de linguagens que iam do carimbó ao synthpop.
De volta ao festival, este ano a cantora apresenta seu terceiro álbum Tem conserto (2019). O novo trabalho, lançado em junho, surpreendeu o público graças à renovação digital, estética e sonora da artista. Em entrevista à Continente, Clarice contou sobre os processos de transição para a produção eletrônica e os primeiros contatos com o universo. “Há uns quatro anos, eu me apaixonei muito pela música eletrônica. Fiquei fascinada pelas possibilidades, pela sonoridade, pelo jeito de produzir e pela cena também.”
Certamente, os inúmeros instrumentos disponíveis no mundo digital não só permitem a desmonopolização dos processos de produção e composição musicais, mas conferem ao artista mais liberdade e autonomia. “Quando você faz algo dentro da sua própria casa, com o seu computador, as possibilidades são infinitas. Você pode começar algo sem saber onde vai dar, nem se vai dar certo. A relação com o tempo se torna algo muito bonito”, opina Clarice.
Dentro dessa premissa, Tem conserto foi produzido em conjunto com Lucas de Paiva, produtor de artistas como Alice Caymmi, Mahmundi e Silva, e motivado pela inquietude de Clarice. As nove faixas mostram uma artista que está aprendendo a dançar e se movimentar. “Tentei ser muito honesta e falar abertamente sobre o que se passava dentro da minha cabeça. Acho que, quanto mais honesto e específico, mais você atinge pessoas, porque, no fundo, todo mundo é parecido.”
Do single Minha cabeça, faixa de abertura, até a última faixa Tem conserto, que nomeia o álbum, Clarice Falcão traça uma linha narrativa que caminha por questões existenciais, angústias e ansiedades, “Minha cabeça é tão/ A minha cara/ Que eu fico de cara/ Quando eu lembro que existo”. Até chegar em uma visão mais otimista: “Tô quebrada mas tem conserto/ Não parece mas tem conserto./ Tô capenga mas tem conserto/ Tá difícil mas tem conserto”. Tudo isso, em contraste, quase irônico – característica que a artista domina – com as dimensões da música eletrônica.
Em Horizontalmente, por exemplo, a falta de vontade, uma das faces da depressão, transtorno que acompanhou a cantora durante a adolescência, apresenta-se através do ritmo dançante da house music. “Em Monomania, gostava de falar coisas absurdas com um violãozinho fofo. Nesse álbum, gostei da ideia de fazer um house sobre ficar em casa”, conta.
Na expectativa para o Molotov, que acontece dia 16 de novembro, no Caxangá Golf & Country Club,e para retornar à cidade natal, a artista cita nomes de sua lista pessoal, como Rosa Neon, Mc Tha e a headline internacional, a cantora iraniano-holandesa Sevdaliza, conhecida por suas consistentes experimentações em audiovisual. Uma aposta que dialoga com a diversidade e inovação musical do festival, já que suas criações flutuam por camadas de música eletrônica, punk, triphop e grime.
THAÍS SCHIO é jornalista em formação e estagiária da Continente.