Foi com entusiasmo que recebi a notícia de ter sido publicada por aqui nova tradução de uma obra fundamental – talvez a mais representativa e influente – do ensaísmo espanhol do século XX. As Meditações do Quixote (tradução de Ronald Robson, Vide Editorial, 2019), primeira obra em formato de livro publicada por José Ortega y Gasset (1883-1955), no crítico ano de 1914, tem o valor duplo de fornecer uma nova perspectiva metodológica para o pensamento filosófico em língua castelhana e por emaranhar produtivamente as fronteiras entre literatura, crítica literária e filosofia, abrindo possibilidades insuspeitas e promissoras para todos esses campos do saber. É nesse sentido que aproveito para fazer um reparo – talvez um pouco de preciosismo de minha parte – ao texto de divulgação da recente tradução: a editora apresenta o ensaio orteguiano como “uma das mais importantes obras da literatura espanhola”. Com isso, reafirma-se, ainda que involuntariamente, um velho preconceito ao não se considerar o caráter eminentemente filosófico do ensaio.
O próprio Ortega y Gasset mais de uma vez se pronunciou sobre o equívoco de estabelecer disjunções absolutas a respeito da natureza do seu estilo como escritor filosófico: “muitos pseudointelectuais do meu país desqualificavam meu pensamento, porque ‘eu não escrevia mais do que metáforas’”. Esses críticos negavam a validez filosófica de qualquer texto em que o uso de linguagem analógica e figurativa tivesse centralidade argumentativa. Mas era justamente no cruzamento entre a perspectiva racionalista tradicional e as ferramentas do discurso retórico-literário que se produziria uma nova perspectiva e uma nova forma: o raciovitalismo orteguiano.
O filósofo se dava conta de que a razão pura – a pura abstração conceitual – não podia dar conta da dimensão vital da realidade, da materialidade e do caráter sensível da apreensão do mundo. A filosofia, portanto, não poderia destituir completamente de suas considerações a intuição, a impressão, as formas sensíveis. Para tanto, a busca pela construção de um estilo de escrita filosófica muito pessoal foi fundamental para o pensador: “não se trata de algo que se dá como filosofia e resulta ser literatura, mas pelo contrário, de algo que se dá como literatura e resulta que é filosofia”, escreveu em um de seus últimos livros (A ideia de princípio em Leibniz e a evolução da teoria dedutiva).
E é justamente no ensaio sobre o Don Quijote – um texto inaugural em mais de um sentido – que melhor transparece a “vontade de estilo” e a inclinação literária de um pensador que já atuava fundamentalmente como intelectual público, como articulista de jornais e revistas, buscando sempre a clareza, a eficiência comunicativa e uma visão integrada de conhecimento filosófico, em que os problemas artísticos e culturais se relacionavam de maneira indissociável com questões morais e políticas. Em Ortega, a vocação filosófica da literatura se mostrava no afã consciente de explorar formas de inteligibilidade do mundo, de sentido, diante de uma realidade em si mesma caótica. O impulso cognoscitivo da literatura, ensinam as Meditações, não deve ser menosprezado pela filosofia; e compreende-se melhor o projeto intelectual do pensador espanhol quando se tem em vista que, já em seu primeiro livro, a arte, a literatura e toda apreensão estética não possuem somente uma função de embelezamento, mas também, e principalmente, de conhecimento da realidade.
As Meditações do Quixote inauguraram um empreendimento intelectual que jamais foi concluído pelo pensador, pelo menos não da forma como ele prometera inicialmente. O texto seria a primeira parte de uma série de 10 meditaciones, ou, para usar um termo caro a Ortega, salvaciones. Ainda que o projeto não tenha sido totalmente realizado, esse texto, sozinho, foi conquistando (muito lentamente, diga-se) uma importância fundamental no pensamento literário espanhol e no de outros países. No campo especializado da filosofia acadêmica, no entanto, pelos motivos aos quais já aludi anteriormente, a influência foi muito menos sentida. Mesmo na Espanha, a obra até hoje gera debates acalorados: muitos a colocam numa espécie de limbo epistemológico, numa terra de ninguém conceitual: indiscutivelmente, é reconhecida como uma bela peça retórica, de evidentes qualidades literárias, mas que falharia como pensamento rigoroso pela falta de estrutura, de exatidão, de sistematização e de método.
Tal perspectiva é fruto de uma compreensão limitada – ainda que por muito tempo hegemônica – da atividade e da escrita filosóficas, que se caracteriza por uma subordinação intransigente ao paradigma estritamente racionalista, de filiação platônico-cartesiana, que preconiza o uso de uma linguagem puramente logicista e formalista, e que se orienta pela busca de verdades apodíticas – universais e necessárias –, da certeza absoluta e do conhecimento objetivo. A partir desse ponto de vista, a exatidão conceitual e a precisão terminológica se configuram como meio e meta final da reflexão filosófica. Daí o repúdio e o rebaixamento, como explica Hans Blumenberg, daquelas formas de linguagem que, por seu caráter translatício (metafórico), impreciso ou ambíguo, não alcançam a transparência intelectual (a evidência) de um conteúdo mental redutível a uma fórmula. O estilo livre do gênero ensaístico – é fácil entender o porquê – não se ajusta a ela.
O caminho proposto por Ortega y Gasset, a partir de um resgate da tradição intelectual latina, passa a ser o de valorizar também a sensação viva das coisas, e o de não negligenciar – por seu caráter contingente e fugaz – o conteúdo das impressões sensoriais; os latinos, segundo ele, eram sensualistas antes de tudo: “chamavam isso de Realismo”. O pensador terá daí por diante como uma meta intelectual pessoal a síntese entre essas duas formas distintas de compreender as coisas, a impressionista e a conceitualista: “A impressão é filiada, submetida à civilidade, pensada – e deste modo passa a cooperar no edifício de nossa personalidade”.
As bases do famoso raciovitalismo orteguiano aparecem pela primeira vez nesta vontade de síntese: “Jamais nos dará o conceito aquilo que nos dá a impressão, a saber: a carne das coisas. O conceito, por sua vez, dá-nos o sentido físico e moral das coisas”. O pensamento não é anterior às coisas, à realidade; contudo, adverte, “ao destronar a razão, cuidemos de pô-la em seu lugar. Nem tudo é pensamento, mas sem ele não possuímos nada com plenitude”.
Para Ortega, diferentemente da tradição racionalista, o pensamento mediterrâneo, herdeiro do mundo latino, teria a vocação e a capacidade de “apalpar com a pupila a pele das coisas” … Assim, numa citação como essa (repito e destaco: “apalpar com a pupila a pele das coisas”), o apelo à materialidade das palavras e mesmo das letras, a força retórica e discursiva reforçada pela aliteração (a repetição do som consonantal da letra oclusiva p), ao evocar e provocar uma sensação tátil, passa a funcionar como uma espécie de metáfora sensível daquilo que se está argumentando. O trecho, que poderia funcionar perfeitamente como um verso poético, sintetiza o ideal estilístico do filósofo espanhol, no qual forma e conteúdo são instâncias interdependentes e inseparáveis. No ensaio orteguiano, portanto, a forma não é, jamais, mero adorno.
Dessa concepção muito particular surgem novas possibilidades de inteligibilidade do mundo, em que literatura e filosofia caminham juntas, indissociáveis. Termos como reverberação, conexão, relação, compreensão, entre outros, repetidos e destacados muitas vezes no ensaio, deixam patente que, a partir de então, a preocupação maior da reflexão orteguiana será a busca pelo sentido vital das coisas, quer dizer, suas relações com as preocupações humanas concretas, contingenciais e historicamente situadas, afastando-se progressivamente da busca pela apreensão de uma utópica universalidade abstrata. A filosofia passa a ser entendida como “ciência geral do amor”, no sentido de que deve buscar estabelecer conexões: “Dado um fato – um homem, um livro, um quadro, uma paisagem, um erro, uma dor –, levá-lo pelo caminho mais curto ao seu máximo significado”.
A aptidão e o ânimo de aceitar “amorosamente” as coisas, um ponto central das Meditações, é, portanto, também uma atitude filosófica, na medida em que possibilita uma abertura à compreensão da realidade sem submissão a preconceitos, dogmatismos políticos ou imperativos morais. Ortega reconhece que é muito difícil deixar o juízo constantemente aberto a reformas, à mudança – tolerante a diferentes perspectivas –, pois “abraçamos um imperativo moral como forma de simplificar a vida, aniquilando porções imensas do universo”. Assim, a atividade intelectual autêntica demandaria do pensador uma real predisposição de lidar com o contraditório. O pensamento rígido, sectário, que se prende a apriorismos ou dogmatismos ideológicos, segundo Ortega, baseia-se em uma espécie de “ficção de heroísmo”, em um “afã justiceiro” que termina por se sobrepor à vontade de compreensão da variedade imensa da vida, das perspectivas e dos valores humanos. O real, em toda sua complexidade, que invariavelmente supera nossa capacidade de apreensão, demanda uma atitude de humildade e, ao mesmo tempo, de abertura.
Outra dimensão filosófica – e literária – do ensaísmo orteguiano se faz patente nas Meditaciones: “O ato especificamente cultural é criador, aquele em que extraímos o logos de algo que ainda era insignificante (i-lógico)”. Quer dizer, o fundamento primeiro dos significados humanos, sejam morais ou estéticos – e a possibilidade mesma de inteligibilidade do mundo –, não está num conhecimento objetivo das coisas isoladamente, ou em um plano ideal superior que devemos alcançar com a ajuda da razão pura, mas em nossa capacidade engenhosa de utilizar a linguagem para estabelecer relações – analogias, comparações, transferências (metáforas) – entre as percepções sensíveis imediatas, as nossas necessidades vitais e os valores da tradição, aos quais de alguma forma pertencemos, porque os herdamos historicamente (fazemos parte, inapelavelmente, de uma tradição cultural já formada que nos antecede).
Os significados vitais não estão nas coisas, como independentes da perspectiva humana que os realiza e os torna inteligíveis, tampouco são criações arbitrárias da linguagem ou da ideologia: surgem de uma relação muito dinâmica e complexa em que a capacidade metafórica da linguagem desempenha um papel fundamental e criador. Necessitamos, pois, “buscar o sentido do que nos rodeia”, porque a “reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”.
Tal concepção confere um posto privilegiado ao saber literário em geral, pois ele passa a ser considerado um meio radical de investigação e de criação de novas realidades e valores para a vida humana. Essa compreensão – de caráter profundamente humanista – pressupõe o entendimento de que a literatura pode ter uma função criativa, cognitiva e ética, pois permite a ampliação da imaginação e o enriquecimento da experiência moral.
EDUARDO CESAR MAIA, crítico literário, mestre em Filosofia, doutor em Teoria da Literatura e professor da UFPE.