1. Há dois Borges na obra de Jorge Luis Borges, e o Outro é o verdadeiro.
Quando lemos Borges, é como se lêssemos borgianamente alguma coisa, alguma outra coisa, um mundo, um vazio, a anatomia de um vulcão, algo que explode mais à frente, que se revela quando atravessa e é atravessado pela escrita (ou seria leitura?) de Borges, e que nos chega por ele, através dele, menos como lente do que como espelho, um espelho melindroso, como o de Lewis Caroll.
Isso é válido para qualquer gênero de sua extensa e variada obra, já que, com frequência, é o leitor Borges que sobressai à sua escrita. Por exemplo: Jorge Luis Borges foi um poeta. Alguns diriam que um excelente poeta, um bom poeta, um poeta mediano ou medíocre. Dificilmente diriam medíocre, creio, mas é preciso lembrar que um leitor de poesia é capaz de tudo, até disso. De todo modo, parece que, em geral, considera-se que a verdadeira genialidade de Borges reside em outras veredas de sua obra: a prosa tão marcante e os textos de cunho ensaístico.
Entretanto, o Outro a que me refiro, se a brincadeira for válida, é o Borges que, acima de tudo, foi um leitor – “o maior leitor do século”, como definiu Roberto Bolaño em certa ocasião – e sobretudo um leitor de poesia, um grande leitor de poesia que, como tal, nunca se furtou a declarar esse amor ao gênero. Não é à toa que sua escrita é constantemente atravessada por referências à poesia, mas, principalmente, a poetas. Maiores, menores, prosaicos, malditos, celebrados e esquecidos. Ao longo de sua obra, talvez por um vício de estilo ou simplesmente pelo característico gosto pela referência (o gosto de um leitor), Borges se reporta constantemente a certos poetas, os seus poetas, definindo-os categoricamente, de maneira concisa, breve, espirituosa, como alguém que se diverte revelando algo ao mesmo tempo rápida e profundamente.
A observação desse fato deu início a uma investigação que antes era uma brincadeira, uma tentativa de fazer emergir esse Outro (ou outros, já que dois são sempre muito pouco), a partir das referências que aqui e ali estão presentes em seus textos. Quando me dei conta, estava colecionando as definições de Borges sobre os seus poetas, escrevendo a partir delas e, sobretudo, escrevendo com ele. Durante alguns meses enveredei por sua obra, revisitando algumas coisas e conhecendo pela primeira vez outras. Recolhendo, anotando e, em alguma medida, reinventando aquilo que procurava. Creio que foram meses muito felizes. Creio também que, no que diz respeito a Borges, leitura e escrita são dois processos que se entrelaçam, tornando-se um só movimento.
Ilustração: Filipe Aca e Hana Luzia
O resultado desse processo foi a elaboração de uma espécie de glossário que reúne essas breves definições e dão testemunho do assombro de Borges diante desses poetas; um tipo de assombro que se assemelha ao amor. No fundo, trata-se de um pequeno glossário que se pretende a um só tempo ser uma homenagem a Borges, a esses poetas e à própria poesia, seja ela o que for.
2. Em linhas gerais, um glossário se define como uma lista alfabética de termos de um determinado domínio de conhecimento, contendo a definição deles. No caso deste, em específico, algumas explicações podem ser úteis. A primeira delas diz respeito às características do conjunto de poetas aqui presentes, do recorte que eles constituem. Este conjunto responde pura e simplesmente às paixões pessoais de Borges como leitor. Creio que sua formação seja a chave interpretativa para compreendê-las.
Borges foi alfabetizado em inglês, em razão de algo que ele mesmo definiu como “um acidente genealógico”, numa entrevista a Alejandra Pizarnik, em 1964: sua avó era inglesa. A paixão de Borges pela literatura em língua inglesa, e pela poesia especificamente, encontra sua origem nesse fato, já que essa o acompanha desde suas primeiras leituras de juventude, o que explica a predominância de poetas dessa língua em seus textos. Além disso, a admiração pelos temas e questões do Romantismo, sobretudo o inglês, que Borges nunca se furtou a declarar, também é um dado relevante.
Em segundo lugar, pesa a tensão entre suas raízes profundamente argentinas e um cosmopolitismo quase antinacional, tão conhecidos e já sublinhados por tantos especialistas em sua obra. Borges, “o menos argentino dos escritores argentinos”, como assinalou certa vez o poeta gaúcho, radicado no Rio de Janeiro, Leonardo Marona, revela-se, frequentemente, avesso aos nacionalismos, ao discurso nacionalista e à propensão ao engessamento que o sentimento nacionalista opera nas subjetividades, principalmente se levarmos em conta o período das duas Grandes Guerras Mundiais as quais ele testemunhou, e que ambas foram levadas a cabo a partir desses discursos.
No mais, como se verá, as definições em si são pouco explicativas e de caráter altamente poético, quando não provocativas. Exprimem assombros, lacunas, imprecisões deliberadas. São, a seu modo, as definições de um poeta. Creio que carregam também uma noção de linhagem. Não seria absurdo afirmar que, de certa forma, falam mais sobre Borges em si do que sobre o poeta em questão, o que nos leva, novamente, ao entrelaçamento das noções de leitura e escrita. Faz-se necessário também ressaltar que este glossário se propõe a ser algo em aberto, que não dá conta (e nem poderia) de encerrar uma questão qualquer que fosse. No fundo, exprime tão somente o desejo de enxergar toda essa gente pelos olhos de um cego. Pelos olhos de um Borges.
ALIGHIERI, Dante (Nove ensaios dantescos) – Artífice de delícias, deleites, ternuras. Intensidade e delicadeza.
BAUDELAIRE, Charles (Outras inquisições, O primeiro Wells) – Satânicos esplendores.
BLAKE, William – Visionário que propôs a salvação pelo exercício da arte.
BYRON, Lorde (Sete noites, As mil e uma noites) – Poeta que é como um céu sem estrelas. Um alto nome, mais alto por sua imagem que por sua obra.
CHESTERTON, G.K (Outras inquisições, Sobre Chesterton) – Protótipo da sanidade física e moral, mas cuja valorosa obra está sempre a ponto de se transformar num pesadelo.
ELIOT, T.S (On T.S. Eliot) – Poeta que reivindicou uma Eternidade de caráter estético.
KEATS, John – (Nove ensaios dantescos) – Poeta cujo nome foi escrito na água, a quem a terrível beleza espreitava.
POE, Edgar Alan (Outras inquisições, Nathaniel Hawthorne) – Aquele em quem o sonho se exacerbou em pesadelo.
POUND, Ezra (Sobre os sonhos e outros diálogos) – Um titã cuja grandeza é insuportável a si próprio.
QUEVEDO, Francisco de (Outras inquisições, Quevedo) – Homem de apetites veementes, que nunca deixou de aspirar ao ascetismo estoico. Primeiro artífice das letras hispânicas, é menos um homem que uma vasta e complexa literatura.
RIMBAUD, Arthur (Sobre a amizade e outros diálogos) – Criança gaulesa cujas iluminações são como lanças às muralhas do Império.
SHAKESPEARE, William (A memória de Shakespeare) – O Grande Rio a quem professamos culto com nostalgia.
SHELLEY, Percy – (Sobre os sonhos e outros diálogos) – Um tormento consagrado à beleza.
VALÉRY, Paul (Outras Inquisições, Valéry como símbolo) – Infinitos escrúpulos, símbolo da Europa e de seu delicado crepúsculo.
VERLAINE, Paul (Sobre a amizade e outros diálogos) – Um coração que não cessa de anoitecer.
WHITMAN, Walt (Outras inquisições, Valéry como símbolo) – Homem dotado de uma vocação de felicidade quase incoerente, porém titânica.
WILDE, Oscar (Outras inquisições, Sobre Oscar Wilde) – Cavalheiro dedicado ao pobre propósito de assombrar com gravatas e metáforas. Homem que guarda, em que pesem os hábitos do mal e de má sorte, uma invulnerável inocência.
WORDSWORTH, William (Borges Profesor, Clase 12: Vida de William Wordsworth) – Geógrafo de sonhos.
YEATS, William Butler – O maior poeta da língua inglesa de seu tempo
Italo diblasi, poeta. Nasceu no Rio de Janeiro em 1988, onde vive. Publicou o livro O limite da navalha (Garupa, 2016). Tem poemas publicados em revistas brasileiras e latino-americanas. No momento, prepara seu segundo volume de poemas.