FOTOS RAFAEL MEDEIROS
03 de Julho de 2019
Foto Rafael Medeiros
[conteúdo na íntegra | ed. 223 | julho de 2019]
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"Você vai saber logo qual é a casa de Dona Glorinha", alertou o grupo de mulheres sentadas à beira da calçada, no topo da ladeira com vista para o mar de Olinda. Brisa refrescante, a que sopra no alto da ladeira do Bairro Amaro Branco, onde, desde a infância, vive a mestra mais velha do local, que nasceu na vila de pescadores e ganhou fama com as tradicionais sambadas de coco que acontecem secularmente. Não é preciso muito esforço para avistar a única casa da rua em que, com cores vibrantes, foi pincelada a imagem de Dona Glorinha do Coco. Aos 84 anos, a neta de Joana e filha de Maria Belém, duas figuras icônicas na história do lugar, nunca se mudou da comunidade onde deu os primeiros passos em direção à carreira que levou seu canto para além dos quintais, becos e ruas do bairro, um quilombo urbano vizinho ao Sítio Histórico de Olinda.
A rouquidão da garganta e o biotipo franzino, junto a uma baixa estatura, não podem servir de parâmetros para enxergar o tamanho e a relevância de Dona Glorinha. É mansa a sua fala, baixinha, mas as cordas vocais emitem a força da história de sua ancestralidade. Chegou ao mundo Maria da Glória Braz de Almeida, em 1934, numa época em que o Amaro Branco ainda não desfrutava de qualquer prestígio. Uma comunidade formada a partir da aglomeração de pescadores e ex-escravizados, que lá plantaram as sementes que germinaram e frutificaram a efervescência cultural que se tornou característica do lugar. A família de Glorinha foi fundamental nesse processo, por isso a sua história é indissociável do território, referência de um ritmo secular de origem afro-indígena, retratado no documentário O coco, o pneu e a roda (2007), de Mariana Fortes, a partir do qual a voz de Glorinha ultrapassou os limites da comunidade.
“Eu comecei a ir para roda de coco aos sete anos. Minha mãe ia cantar e me colocava em cima de um banco de madeira de onde eu assistia tudo”, relembra Glorinha, caçula de 18 filhos, que não fraqueja na memória da infância. Recorda tudo que ouviu da mãe sobre a árvore genealógica da família, que começou com a escravizada Joana. Ela fugiu de um engenho em Catende-PE, no século XIX, e foi parar no Amaro Branco, onde conheceu e foi escondida por Antônio Belém, avô de Glorinha, pescador e criador de carneiros que já brincava o coco na areia da praia olindense. Uma época em que a paisagem do bairro era marcada por choupanas e taperas cobertas por palha de coco, fruto abundante na região.
É nesse clima litorâneo, com as noites iluminadas pela luz do farol, que até hoje acontecem as rodas do Amaro Branco. Um dos mais populares é o Coco do Pneu, que homenageia São Pedro, padroeiro dos pescadores e um dos santos mais comemorados no período junino. Um legado de Ivo da Janoca, que, em uma de suas pescarias, trouxe da Praia do Janga um pneu de avião, transformado em banco para acomodar os que se reuniam para cantar coco e beber.
Como outros brincantes do bairro, Glorinha também tem uma sambada sob o seu comando. Ex-aluna da centenária Escola Sagrado Coração de Jesus, todo mês de junho, ela organiza uma festa que homenageia o santo católico São João, de quem é devota. É a imagem dele, na versão mirim, que dá as boas-vindas no terraço e protege a casa com pouca mobília e muita luz, onde a coquista mora e que divide com o neto Yan, de 14 anos, companhia diária. Ao lado, conjugada à sua residência, está a filha caçula, Berenice, de 52, que dá suporte diariamente à mãe.
Devota de São João, Glorinha deu seguimento ao legado da mãe, Maria Belém, figura fundamental na cena artística do bairro
A casa fica na Rua dos Pescadores, perto do terreiro onde Maria Belém criou Dona Glorinha e os outros 17 filhos “lavando roupa para fora”. Também era parteira e já “botou muito menino no mundo”, incluindo dois filhos de Glorinha. Belém, que morreu aos 105 anos, era uma mulher católica, apostólica e romana, muito à frente de seu tempo e com grande inquietação artística, que teve atuação fundamental na cena cultural do bairro. “Minha mãe era coquista e carnavalesca, e militou muito pela cultura dentro da comunidade. Ela foi uma das primeiras mulheres a desfilar na Escola de Samba Oriente”, conta Glorinha. Maria Belém foi uma das fundadoras do Clube da Escola de Samba Oriente, em 1945, do Clube dos Lenhadores de Olinda, e do tradicional Acorda Povo, hoje, sob a responsabilidade da Mestra Ana Lúcia. Ao lado de outras pioneiras, como Dona Neuza e Dona Jovelina, Maria Belém figura como uma personagem icônica na memória histórica do bairro, do coco na cidade de Olinda e em Pernambuco.
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Tenho mais de 80 anos
Na minha vida eu tenho história
No leito que eu nasci
Foi batizado de glórias
A primeira vez que Glorinha cantou foi junto da mãe, no quintal do vizinho, Seu Tomé, que realizava sambadas mensais à luz de candeeiro. A casa de número 264, onde hoje vive a filha do falecido coquista, Áurea Maria, já foi muito movimentada. “Vinha gente de tudo quanto é canto ver essa sambada. Maria Belém não perdia uma. Era muito contente. Tá vendo dona Glorinha é mesmo que tá vendo ela”, recorda. Embora o contato com as sambadas de coco tenha se iniciado tão cedo, Glorinha nunca teve grandes pretensões artísticas. Para ela, fazer coco passa pelo afeto e pela memória de tempos em que a melhor brincadeira era ouvir e aprender com a cantoria dos mais velhos. Uma oralidade que atravessou gerações e até hoje serve de ponto de partida para localizar a construção de uma identidade negra, que, além de gerar sustentabilidade para o bairro, deu as bases para o empoderamento de nomes que, hoje, lutam para fortalecer o território do Amaro Branco.
“O coco é um dos fios condutores da historicidade desse lugar. É através dele que conseguimos voltar ao passado e traçar a formação cultural e social dessa comunidade. Quase tudo gira em torno do coco e das sambadas por aqui. É nossa referência, nossa memória e um grande orgulho”, comenta Elaine Una, griô de coco de roda e moradora do Amaro Branco, além de admiradora do trabalho de Glorinha. “Ela é uma mulher forte, que tem levado o coco com muita alegria através de suas memórias, o que nos possibilita traçar os caminhos que o coco trilhou até aqui.”
Como a mãe, Glorinha casou muito cedo e logo assumiu as mesmas responsabilidades familiares que recaem sobre uma mulher. Aos 14 anos, já era esposa do primeiro marido, com quem teve três filhos. “Naquele tempo, as mulheres casavam cedo demais”, avalia, lembrando uma antiga tradição do cravo na janela das moças virgens, que virou verso de uma canção. “Cravo branco na janela é sinal de casamento. Menina, guarda seu cravo, que para casar não falta tempo.”
Seguindo os passos de Maria Belém, Glorinha nunca deixou de cantar “por causa de homem”. Quando o marido pensava em falar qualquer coisa, já tinha resposta na ponta da língua: “Tá reclamando de quê? Quando casou comigo num já sabia que eu gostava do coco de roda?”. Casou três vezes e nunca arredou o pé de uma sambada pra “fazer gosto a marido”. Viúva há 27 anos, gerou 12 filhos paridos em casa, dos quais seis estão vivos e cuidaram de ampliar os galhos da árvore genealógica da família. Ao todo, entre netos, bisnetos e tataranetos, são 36 novos herdeiros da história da Família Belém, que virou referência dentro e fora de Olinda.
Até 2004, com a participação na coletânea Coco do Amaro Branco, produzida por Isa Melo, a atuação da coquista se limitava aos eventos comunitários no Amaro Branco, que ganhou esse nome, segundo lhe contou a mãe, porque existia uma venda antiga, cujo dono era muito branco, provavelmente albino, e que se chamava Amaro. De tão conhecido e frequentado, o comércio acabou batizando o bairro, que de branco não tem nada.
Essas e outras histórias Glorinha contou em ocasião da filmagem do documentário de Mariana Fortes, que também contou com participações das mestras e mestres como Ana Lúcia, Ritinha da Garrafa, Ferrugem e Zezo. O filme, premiado pelo CinePE em 2018, revelou os personagens ainda anônimos para o grande público, mas muito populares e atuantes no Amaro. Isa Melo, artista e produtora cultural, decidiu apostar na mestra e iniciar o trabalho de projeção de Glorinha para além do reduto olindense. “Me encantei pela simplicidade e a história de Glorinha, que é descendente direta de uma escrava e representa a terceira geração de uma família na qual as mulheres tiveram um papel importantíssimo para a cultura do estado. Quis mostrar Glorinha para Pernambuco e para o Brasil, para todo mundo saber quem é essa mulher cheia de dendê e carisma”, comenta.
O trabalho de Glorinha já foi referenciado em exposições como Coco do Amaro Branco – Retratos, de 2011, realizada pelo Museu da Abolição, e Olinda Patrimônio Cotidiano, organizada pelo Iphan, no mesmo ano. Entretanto, o chapéu de aba larga, item obrigatório no figurino de Glorinha, estampou pela primeira vez a capa de um disco só em 2013. Com nome homônimo, o CD contou com financiamento do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura e reúne 13 canções (disponível no YouTube), um repertório herdado de sua mãe. Graças a esse disco, a mestra ganhou projeção nacional, sendo indicada, no mesmo ano, ao Prêmio da Música Brasileira, nas categorias de melhor álbum regional e melhor cantora regional.
Além da indicação, o CD também levou Glorinha a ultrapassar as fronteiras do país, quando representou o Brasil em Portugal, ao lado de nomes como Dona Onete, nome de expressão do carimbó paraense. Mas é a viagem a Cuba que ela guarda com muito carinho na memória. Em 2017, seu coco ancestral esteve entre as atrações da 37ª edição do Festival do Caribe, um intercâmbio financiado pelo Ibermúsicas – Programa de Fomento das Música Ibero-Americanas, em parceria com a Fundação Nacional de Artes. “É muito bom poder cantar pro povo de qualquer lugar do mundo”, assinala Glorinha.
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Eu anoiteço em terra
Eu amanheço no mar
Minha mãe quando me dava
Eu passava a noite a chorar
As conquistas de Glorinha fora do estado, no entanto, não refletem na valorização dentro dele. A relevância do seu trabalho artístico e de outros mestres do Amaro Branco não é acompanhada pelo reconhecimento que merecem. A falta de incentivo e apoio para os artistas que mantêm vivos brinquedos populares importantes para a memória iconográfica do nosso povo tem sido a prática de muitas gestões ao longo dos anos, o que diz muito sobre a institucionalização do racismo em Pernambuco e no Brasil.
“Eu nunca recebi sequer uma homenagem na minha cidade”, reclama Glorinha, que ficou muito satisfeita em 2016, quando recebeu tributo no Ciclo Junino do Recife. Homenagens, no entanto, não pagam conta, nem gravação de discos e filmes, nem viagens. A demora no pagamento dos cachês é um dos principais entraves para a carreira artística de Glorinha, que já concorreu três vezes a uma vaga no edital Patrimônio Vivo, da Fundarpe, mas não conseguiu o título.
Elaine Una, que também atua na produção cultural por meio do coletivo local Quilombo Casa Cultural, vê como “descaso e ludibrio” a forma como a administração municipal trata o bairro. “Há muito, as gestões, com apoio de alguns coquistas, inclusive, atuam calculadamente para desmobilização desse território”, comenta. Para ela, a retirada do polo carnavalesco, que era montado dentro da comunidade e que agora, fica na beira da Praia do Carmo, foi um retrocesso, já que o “‘polo recebia a maior parte da programação de cocos, ciranda, e movimentava a comunidade, que tem toda essa historicidade e importância”.
Atualmente, tudo o que acontece dentro do bairro é resultado da união de forças dos artistas. “Quem ainda consegue produzir algo é com organização familiar e mobilização comunitária. Só isso mesmo. Nós, que somos mais jovens, temos conseguido acessar editais e, na medida do possível, incluir todo mundo que a gente respeita, mas isso é muito pouco e nem é justo”, comenta Elaine.
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Se, por um lado, a falta de incentivo mina a manutenção de expressões artísticas essencialmente afro-indígenas, por outro, os mestres, os griôs (aprendizes) e o povo garantem sua subsistência. O ofício de Glorinha não é monetariamente mensurável. Não é o dinheiro que medeia sua atuação como coquista. Seu canto transmite memória, ancestralidade, identidade. Espelha a responsabilidade de manter viva essa manifestação de oralidade e musicalidade que envolve tanta gente nas sambadas do Amaro. Em junho, mês de São João, Noite linda, o novo disco de Glorinha, desenvolvido com o Prêmio Culturas Populares, do Ministério da Cultura, foi para a rua, lançado no Amaro Branco, para dizer coisas bonitas e alegres como tem dito o seu cantar.
É de acordo com sua devoção que a dama do chapéu de aba larga lança seu segundo álbum à porta de casa, em ocasião da sambada para São João, homenageado em uma das faixas. Com músicas inéditas, direção musical assinada por Viola Luz e produção de Isa Melo, o disco apresenta um repertório que passeia por registros imagéticos que caracterizam o Amaro Branco e as vivências de Glorinha: o mar, a jangada, o canoeiro, a festa junina. O lançamento, inclusive, incluiu a presença de Cila do Coco, outro importante nome para o local.
A música Noite linda, carro-chefe do trabalho, é acompanhada pela rabeca de Fritz Ribeiro, criando uma arquitetura estética que mostra as possibilidades do coco – caracterizado apenas pela percussão – dialogar com instrumentos de corda. Glorinha está animada com o trabalho, gosta dos palcos, mas não esconde que é pelo coco tradicional que seu coração bate mais forte. “Eu gosto mesmo é do coco sem microfone, como era antigamente, à base do gogó e as palmas acompanhando”, assume.
Bem-humorada, o que, aliás, parece ser uma qualidade dos coquistas, qualquer assunto com ela vira mote para uma piada. “Para ser coquista, tem que ter simpatia e ser popular.” Com oito décadas de vida, ela faz questão de manter sua autonomia. “Eu vou pra tudo que é canto só. O ladrão para me roubar, vai ter que me levar junto”, brinca ela, que tem as sambadas como as “muletas” que a mantêm ativa.
Glorinha é um exemplo de como a velhice também produz arte e conhecimento. “Quando me dizem para eu deixar ‘essa vida de coco’, eu respondo: ‘Tá lhe incomodando?’.” Na maior parte do tempo, ela está em casa, na calçada em frente à sua residência, trocando acenos e batendo um papo com os vizinhos de rua ou aos pés do seu santuário.
Além dos santos católicos, Glorinha também rende culto a Xangô, de quem é filha, e fez do vermelho e branco, que representam o orixá da Justiça, as cores do figurino do grupo de coco. Outro patrimônio que também é dono da sua atenção é o Farol de Olinda, que começou a ser construído quando a coquista tinha seis anos de idade. Da porta da cozinha, ela avista a luz que guiou navegadores pelo mar de Olinda. O mesmo que inspira suas canções.
Glorinha, a Dona do Coco, que não quer ser dona de nada, além da própria história; é feliz por levar adiante a história das matriarcas da família. A escravizada Joana, que chegou no Amaro Branco de pés descalços, e mestra Maria Belém, vivem e sustentam o seu cantar.
LENNE FERREIRA, jornalista, feminista negra e produtora cultural.
RAFAEL MEDEIROS, fotógrafo.