Ficção

Todos os dias nascem muitos bebês

TEXTO FREDERICO KLUMB

05 de Junho de 2019

Ilustração Jânio Santos

[conteúdo na íntegra | ed. 222 | junho de 2019]

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I. COMEÇA O FILME
o mar é bonito. tenho certeza de que é bonito em qualquer lugar, pensava o bebê do meio alto do colo de mãe. o mar é bonito, os bebês sabem disso mais que os outros. têm coisas que os bebês sabem mais e essas coisas se perdem com a fala, essa é uma ideia que não precisa ser provada.

o mar é azul, mas também é verde, às vezes é marrom e tem gente que jura que vê amarelo. mas o mar sempre tem cor, não existe mar pb. tudo isso o bebê que pensava, porque os bebês pensam muito, como os gatos.

o mar no meio do mar é parecido com qualquer coisa que seja grande, também isso deveria ser visto mais e dito mais, ele pensava.

o mar em volta dele era sim e era grande, mas não parecia com morros, não parecia com prédios, não parecia com nada além de um mar. a mãe circulava, em volta dela uma zoeira zanzando, também circulando as coisas, decidindo as coisas. havia um clima de conferência festiva, havia um ar de decisão ritualística, talvez fosse a temperatura de um terreiro, mas então faltava a terra. sendo o mar, pensou, é o mesmo. o mar é o mesmo que a terra, o mar é o mesmo que a terra e que o céu, o mar é o mesmo que os peixes, o mar é o mesmo que o barco, o mar é o mesmo que eu, mas o mar não dá peito.

muitas pessoas seguravam bebês, imagine uma jangada grande, uma jangada grande como um quarto no meio do mar. o que segurava os pés de quem estivesse em pé na jangada eram bambus firmes, como em toda jangada, e os bambus tinham sido cortados de certa maneira que não é importante agora, e os bambus tinham sido amarrados à maneira de amarração de jangada, com cordas próprias de amarrar bambus para jangadas. e estavam quase todos de pé realmente, e quase todos eram mães, mas também estavam alguns homens e não era possível dar por certo se eram pais, embora estivessem quase todos ao lado das mães em dois a dois mais bebê igual a três. imagine um batizado, retire os outros parentes do espaço, multiplique os pais mais bebês por vinte,os coloque numa jangada no meio de um mar calmo: a cena.

II. O PRIMEIRO ATO É QUANDO COMEÇA A LINGUAGEM
o bebê da direita é muito feio, vou chamá-lo de feio. todos os bebês são muito convencidos, como todos os homens e todas as mulheres. há no mundo algumas pessoas que não são convencidas, mas elas são bebês antes da fala. bebês antes da fala são seres completos. esse ao lado era um pouco maior, beirava a desproporção e mais no crânio, o que devia forçar seu corpo a forjar um formato de cabeça pouco natural para bebês. nenhum bebê ali era chamado pelo nome, o nome dos bebês era bebê. todos se entendiam. à direita o bebê incomum, à esquerda um bebê qualquer, o que faz com que as duas descrições não sejam elogios nem críticas, e quem as formulava era o primeiro bebê, o que fala aqui.

pois ele ainda estava no colo da mãe, e a cena era a mesma, e o céu também e o mar não. o mar parece mudar menos que o céu, mas muda mais, muda muito mais. o mar é igual ao céu, mas o mar é maior que o céu, porque o céu é infinito, então não pode ser valorado nesses termos, pensou o bebê.

e a cena ia mudando aos poucos. ia crescendo dentro do som, que é o elemento que guiava a situação, uma espécie de peso espalhado, as coisas iam ficando pesadas, as coisas iam tomando forma, e de um dois já estavam as mães algo organizadas, estavam de pé ainda, mas agora estavam imóveis, agora era um pause no filme, agora todos olhavam para um menino que não era menino e não era adulto, não era branco e não era negro, não tinha pelos e tinha pelos, não era gordo não era magro, tinha e não tinha cabelos, ele estava sentado.

sentado no centro da parte maior da jangada. e talvez estivesse mais para careca que para cabelo. as pernas grossas eram grossas de dizer três vezes, eram quase pernas que não são de gente. e daí o garoto sentado, um buda? o garoto sentado calado, não tinha nada de especial no garoto, não tinha nada de santo no garoto, nada de nada, nada de diferente de um garoto gordo de bermudas.

os pais ficaram agitados nessa hora. parece que os pais se tornam pais de fato quando morrem os filhos, isso é duro, pensou o bebê. por que não podem os pais amamentar?, pensava. seria bom que dessem a pílula ao pais, seria bom que os pais segurassem no colo os bebês, mas os pais somente tentavam as bolsas, essas bolsas que muitos pais carregam com as coisas dos bebês, e tentam mesmo que sejam simples, as bolsas, mesmo que sejam bolsas muito simples ou sacolas plásticas de quem não tem dinheiro para comprar bolsas bonitas. isso é duro, pensou.

III. SE EU FOSSE DEUS TODOS OS BEBÊS NASCERIAM NA BAHIA PORQUE O MAR É MAIS BONITO,
pensou o bebê. a mãe estava muito feliz e os pais eram pais, como havia pensado, infelizmente a essa época os pais só podiam ser pais e era injusto, como quase tudo na vida.

a mãe pegou o bebê mais firme, ela moveu bebê sem fazer esforço e como se não movesse, porque os bebês são exigentes, nós os bebês, precisamos ser exigentes, precisamos ser sangue do sangue e isso é muito e isso tantas vezes não basta.

era então uma fila e uma filha, a mãe pegou a bebê, como num caixa de supermercado, algo que acontece todos os dias, mas muito mais bonito como o mar que também todo dia é muito bonito e muito mais que um supermercado em qualquer parte. a mãe perfilou e agora era ela, de frente para o garoto, que a encarava de olhos abertos. deu uns três segundos, ela olhou para ele. o garoto respondeu os olhos com olhos e boca, o garoto gritou duas vezes: miracolo! miracolo!

e só isso. como o batismo, só isso.

a mãe saiu da fila, dentro dela aconteceram muitas coisas, dentro dela o peso virou peso agora. em alguns filmes de ficção científica isso é aquela mancha de calor que os vivos permitem, essa mancha tem um peso forte, pensou a bebê.

IV. SÓ ISSO
a mãe foi até o banheiro da jangada. banheiro pequeno, igual ao de um quarto de hospital. sempre com a filha nos braços, agora fazendo um livre e o outro doce como mãe que pode amar segurando filha, abriu a torneira, também era de hospital, a água correu.

ela lavou o próprio rosto, ela pingou algumas gotas na cria no braço ela pensou em tanta coisa ela não precisava falar ela podia ficar ali também. ao lado da torneira e de um pequeno espelho em cima, uma cama, era impossível, mas era uma cama. na cama deitava um corpo velho. não era homem não era mulher, não era algo pra dar nome, era um corpo e tinha olhos nariz e boca e cabeça e cabelo, era um velho. só. quieto, dormia. a mãe seguiu o dia e a vida, o velho ainda dormia.

no centro da jangada muitos bebês nasciam.

FREDERICO KLUMB é poeta, prosador e cineasta brasileiro. Publicou, entre outros, Bichos contra vontade (7letras).

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