Perfil

Livros à mão cheia

Crítico literário e professor aposentado, o paraibano Hildeberto Barbosa expressa, na sua imensa biblioteca, a paixão pela leitura

TEXTO MARCELO ABREU
FOTOS RIZEMBERG FELIPE

05 de Junho de 2019

Foto Rizemberg Felipe

[conteúdo na íntegra | ed. 222 | junho de 2019]

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No grande terraço que circunda sua casa no Bairro dos Bancários, em João Pessoa, ao som dos cantos de seus canários belgas e pintagóis, Hildeberto Barbosa Filho comenta sobre sua paixão mais visível, a biblioteca instalada ali perto em um grande salão nos fundos da casa. “Hoje, o homem que gosta de livros é uma pessoa não muito convencional, não está dentro das expectativas de uma certa ordem social”, diz, com uma pitada de ironia. É em torno do livro que gira a vida do colecionador paraibano.

Falar da aposentadoria recente como professor titular da Universidade Federal da Paraíba, onde ensinou durante 26 anos no Departamento de Comunicação, poderia dar a ideia errônea de inatividade. Na verdade, aos 64 anos, Hildeberto está no auge de sua produtividade como poeta, ensaísta e crítico literário. Mas a aposentadoria é um elemento fundamental para entender uma característica marcante na vida atual: o tempo livre dedicado à paixão pelos livros. Tempo que é essencial à fruição do seu maior patrimônio, a biblioteca que acumulou ao longo dos anos e que atualmente chega perto dos 18 mil volumes.

Nascido em Aroeiras, na região do Cariri paraibano, a 143 km de João Pessoa, Hildeberto teve uma infância no meio rural. Aos nove anos, mudou-se para Campina Grande, onde fez o ginásio e o clássico. Mora em João Pessoa desde os 18 anos. Inicialmente estudou Direito, mas depois se encaminhou para as Letras e aí encontrou seu espaço profissional.

Atua como colunista nos jornais locais desde a década de 1970 e, em 1985, começou a publicar livros. Tem publicados 31 volumes de crítica literária (alguns deles reunindo sua atuação na imprensa), 17 livros de poemas, três jornais literários, dois volumes de crônicas e um de memórias. Além disso, tem participado, como organizador e colaborador, em publicações coletivas e em antologias e coletâneas editadas nas últimas quatro décadas.

A formação da biblioteca foi ocorrendo sem planejamento. Descobriu o gosto pela leitura ainda menino. “A partir de certo ponto, decidi possuir uma biblioteca, o que parece absurdo porque, hoje, com exceção das grandes bibliotecas públicas, as privadas estão desaparecendo. Com as mudanças tecnológicas, tudo tende a se virtualizar.”

Hildeberto conta que conseguiu manter todos os livros de sua juventude como, por exemplo, as Edições de Ouro, série da editora do mesmo nome através da qual muitos tiveram acesso a clássicos da literatura universal. “Imagina a alegria de receber Assim falava Zaratrusta, de Nietzsche, com 13 anos, vindo pelo serviço postal”, diz, ao lembrar-se do livro que só viria a entender completamente anos depois.

Lamenta apenas não ter mantido as revistas em quadrinhos, porque muitas delas foram trocadas em porta de cinemas, com outros meninos, como era hábito, na época. “Quem me fez leitor foram os quadrinhos, sou muito grato a eles e aos livrinhos de faroeste, de espionagem, tudo eu devorava”.

Sua biblioteca se concentra em ficção brasileira e estrangeira, poesia, ensaios, filosofia, comunicação, jornalismo, ética, história, diários, memórias, confissões, cartas, biografias e temas como Nordeste, Canudos, Cangaço e Sertão. Seus dois trabalhos acadêmicos de maior fôlego deram uma certa direção ao seu acervo. Nos anos 1980, o crítico fez mestrado em Letras sobre o grupo conhecido como Sanhauá, formado por poetas paraibanos nos anos 1960, que flertavam com o Concretismo. Na década seguinte, no doutorado, estendeu seu interesse para a história da poesia no estado, sobretudo do final do século XIX em diante. Esses dois estudos resultaram nas publicações Sanhauá: uma ponte para a modernidade (1989) e da tese Arrecifes e lajedos: breve itinerário da poesia na Paraíba (2001).

As pesquisas acadêmicas enriqueceram seu acervo com livros antigos, sobretudo de autores locais. Tem edições raras, algumas compradas em sebos, nem sempre em perfeito estado: amareladas, com dedicatórias e grifos. “Essas marcas do tempo me interessam muito”, diz o crítico acariciando a folha de rosto da primeira edição autografada do romance O Holocausto escrito pelo paraibano Pedro Américo de Figueiredo (mais conhecido como o pintor do quadro O grito da independência), publicado em 1882, na Itália.

A recorrente pergunta sobre até que ponto leu a grande quantidade de livros que possui lhe agrada pela possibilidade de pensar sobre o que mais gosta de fazer. “Depende do que você considere ler. Há vários tipos de leitor e de leitura, mas eu considero que o simples ato de pegar num livro já é um ato de ler. Fazer uma anotação, botar uma capa, tudo para mim é leitura. Tem livro que eu não li. Uma enciclopédia ou um dicionário a gente consulta. Só que tem outros que eu já li 30, 40 vezes.”

BIBLIOFILIA
Apesar do acervo imenso, Hildeberto evita usar palavra bibliófilo para se definir. Considera uma palavra forte que pressupõe uma capacidade financeira que não tem. “Eu seria um bibliófilo de paixão, mas não posso afirmar isso porque bibliofilia é uma coisa muito cara”. Lembra o exemplo do empresário paulista José Mindlin (1914-2010), que contava ter vendido um apartamento na zona sul de São Paulo para comprar, a um livreiro francês, a primeira edição de O Guarany (1857), de José de Alencar.

“O bibliófilo tem de ter uma base econômica. Mas às vezes a gente faz umas loucuras que não vão comprometer”, diz o crítico paraibano. Do ponto de vista editorial, ressalta alguns itens de sua predileção: uma edição da Divina comédia, de Dante Alighieri – “que é de uma beleza, com reproduções das ilustrações originais de Sandro Botticelli” –, e uma edição portuguesa de Os Lusíadas, de Luís de Camões, considerada por ele “um fetiche”. Do ponto de vista da antiguidade e da raridade, cita como exemplo a primeira edição, de 1901, de um autor cearense chamado José Rodrigues de Carvalho (1867-1936), um livrinho chamado Poema de maio, publicado pela Biblioteca do Centro Literário, do Ceará. O desejo por raridades leva a um tema recorrente, a paixão pelo poeta Augusto dos Anjos. Hildeberto conhece quem possui a primeira edição do livro Eu (1912), antes de ser intitulado Eu e outras poesias, como ficou mais conhecido depois. “Ele vende por 25 mil reais, e vai vender logo, porque a edição é raríssima. Se fossem 5 mil, eu ainda fazia essa loucura. Porque, você sabe, o Eu só começou a ser conhecido a partir da terceira edição, que foi a de Castilho. A primeira foi uma ediçãozinha vagabunda que ele fez no Rio.” O colecionador tem várias edições da obra, inclusive a quinta e sexta, que mantém numa estante especial intitulada Pau d’Arco.

Colecionar jornais está entre suas paixões, também. Durante anos, manteve a coleção completa dos semanários Movimento e Opinião, expoentes da imprensa alternativa brasileira dos anos 1970. Depois doou a coleção ao Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba. Mas mantém a coleção do tradicional Correio das Artes, criado em 1949 pelo pernambucano Edson Régis e que circula mensalmente até hoje como encarte do diário A União. Os 40 primeiros números são uma exclusividade da sua biblioteca, nem a própria União tem os exemplares. O suplemento teve sua publicação interrompida em 1964. “De 1976, quando voltou a circular, até hoje, tenho todos os exemplares.”

E é no Correio das Artes que ele publica mensalmente a coluna Convivência crítica. “É meu trabalho mais elaborado, resenhas, críticas, às vezes, até longos ensaios”. A coluna, que existe desde 1986, já foi semanal no jornal A União. Atualmente, sai também quinzenalmente no jornal Contraponto e leva o nome de um de seus primeiros livros de ensaios sobre a literatura paraibana.

EXERCÍCIO DA CRÍTICA
Como professor, pesquisador e colunista, ele conta sempre ter dado ênfase à literatura paraibana e nordestina. Encara a crítica como um diálogo com o autor e, principalmente, com o leitor. “Às vezes, fora dela, o autor não tem nenhuma resposta sobre seu trabalho”, diz o colunista. “Não me considero um crítico fechado que vai demolir, dar a palavra final. Mas também não é o caso de passar a mão na cabeça”. Para ele, o ideal é se comportar como um leitor que tem mais base. “A gente também não pode ir para o texto de forma muito aberta, muito ingênua. Temos de trazer elementos para que o texto possa falar até mais para os leitores.”

Lembrando a afirmação de Fidelino de Figueiredo, para quem o crítico é “um solitário sobre penhascos batidos de rajadas sibilantes”, Hildeberto releva as polêmicas que enfrentou. “Uns reagem muito mal, mas outros não. Alguns chegam ao nível da desafeição, do rompimento. O que fazer? São coisas da vida, inevitáveis.” Na história da crítica literária, Hildeberto Barbosa admira George Steiner, cita com prazer e frequência T. S. Elliot. No Brasil, entre os mais antigos, elogia Alceu Amoroso Lima e Agripino Grieco. Gosta muito de escritores que atuam como críticos, como Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes e Milan Kundera. Entre os brasileiros, além dos antigos como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Haroldo de Campos e Josué Montello, admira o trabalho de crítica de autores mais novos como Cristóvão Tezza, Miguel Sanches Neto, Milton Hatoum e José Castelo. Para ele, o texto crítico está no mesmo patamar da poesia. Mesmo com seus processos objetivos, sua racionalidade, “a crítica tem de ser iluminada, poética”. Por isso não admira o texto “muito acadêmico, fechado, muito linha de produção, como se faz na universidade”. Uma crítica que, em lugar de fazer o poema falar, dá voz ao teórico o tempo todo. “Citações em cima de citações, uma exibição de erudição que no fundo esconde um vazio de conteúdo”, opina.

Desde que se aposentou, a rotina de Hildeberto tem sido frequentar e conviver com sua biblioteca. “Ninguém faz nada sem uma disciplina e repetição. Isso não tem nada a ver com monotonia e chatice”, avisa. Mantém com os livros uma “convivência crítica”. Arruma, limpa, muda livros de lugar, passa o dia todo na biblioteca e escreve também lá. Conta que, às vezes, leva três dias para arrumar uma fileira de livros que poderia ser arrumada em meia hora. Durante a arrumação, chegam-lhe ideias e insights, portas para outras leituras, pesquisas e à necessidade de escrever. “A biblioteca é um elemento impulsionador”, resume.

“Cultivo muito ficar olhando os livros. É um prazer erótico no mais largo sentido da palavra. A leitura tem essa eroticidade. Lembro a frase de Jorge Luis Borges que diz ‘A leitura é uma forma de ser feliz’. Penso muito por aí. Vejo nesse sentido do toque do livro, do cheiro, do arrumar. Às vezes, tem um livro velhinho, levo para colocar uma capinha dura, tudo faz parte desse universo, dessa convivência.”

Hildeberto se considera um leitor “muito dispersivo”, que gosta de tudo. Tudo o atrai e lê vários livros ao mesmo tempo. Chama isso de “leitura circular”. Quando fez mestrado e doutorado, e também na carreira de professor, praticava leituras sistemáticas para dar aula. Mas o leitor mesmo não é assim. “Uma coisa é estudar, outra é ler. Estudar é mais árduo, porque geralmente se estuda para obter um resultado para os outros, é um trabalho. E ler não é trabalho, é uma experiência de amor.”

Os longos anos dedicados à crítica literária na imprensa paraibana, dando sempre destaque à produção local e aos escritores nordestinos, permitiram-lhe estabelecer um contato intenso com intelectuais de estados vizinhos. Boa parte da produção em livros da região passou pelas mãos de Hildeberto, foi comentada em suas colunas e está guardada na sua biblioteca. Os contatos levaram a convites para palestras em toda a região. Através dele, escritores vizinhos, separados pela geografia cultural brasileira, romperam de alguma forma a necessidade de passar pelo eixo Rio-São Paulo.

Esse intercâmbio levou à publicação de uma série de textos críticos sobre poetas de alguns estados da região, como Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. O volume de ensaios sobre poetas de Pernambuco ficou pronto e trata basicamente dos nomes da Geração 65. Chama-se Pelo rio das imagens e ainda está inédito. Conta de sua ligação com poetas pernambucanos, como Alberto Cunha Melo (1942-2007), Janice Japiassu, Ângelo Monteiro, Dione Barreto e Jomard Muniz de Britto.

CATALOGAÇÃO SUBJETIVA
Apesar da ênfase no ensaísmo, na crítica literária e na poesia nordestina, o que ele acha mais importante na sua biblioteca é a variedade. “Tem coisas que quase ninguém conhece, mas a biblioteca foi feita para tornar vivas essas coisas. É como um museu que não é lugar de coisa morta, mas é para preservar e dizer que está viva. O autor está vivo, está aqui.”

Hildeberto defende uma “catalogação subjetiva, muito mais lúdica do que operacional”. Nesse exercício de organização idiossincrática, atribui nomes às estantes onde guarda a obra de determinados escritores de sua preferência e livros correlatos ao universo daquele autor. Alguns exemplos são as estantes Pedra Bonita (com a obra de José Lins do Rego), a Onça Caetana (com Ariano Suassuna), a Vaza-Barris (com Euclides da Cunha), a Missa do galo (com Machado de Assis), a Casa-grande & senzala (com Gilberto Freyre), a Claro enigma (com Carlos Drummond de Andrade) e a Tabacaria (com Fernando Pessoa).

Nessas estantes, Hildeberto diverte-se promovendo “encontros” de autores que, em vida, estiveram distantes por razões geográficas, ideológicas ou estéticas. Alguns, embora fossem contemporâneos e conterrâneos, nunca se encontraram pessoalmente, como é o caso dos russos Liev Tolstói e Fiodor Dostoiévski, que dividem as prateleiras da estante Crime e castigo. “Tenho o prazer de botar na minha estante os dois juntos. A gente tem essas fantasias, esses delírios em torno do amor à literatura.” Para completar, por perto está também a obra de William Shakespeare, autor detestado por Tolstói. A biblioteca pode ser um lugar de tensão e conflito também, conforme lembra o bibliotecário Luís Milanesi. “Toda ordem tem uma desordem por dentro. A biblioteca é um espaço extremamente rico, complexo, mas algo perigoso, em vários sentidos”, diz Hildeberto.

“Todos os livros de Alceu Amoroso Lima eu coloquei, propositalmente ao lado dos de Gustavo Corção, uma cara da direita com um texto maravilhoso, que ficou esquecido porque foi patrulhado”. Assim, os adversários nas polêmicas durante algumas décadas do século XX continuam ali trocando farpas.

Hildeberto diz que não tem “o menor pudor” com seus volumes. “Eu marco as páginas, escrevo com tinta, com caneta mesmo, o interesse é só para mim, leio anotando.” Na folha de rosto, coloca seu nome e sobrenome, um acima do outro, como se fosse um ex libris. Embaixo, a data de compra e a cidade. O que falta de lustro visual exterior aos livros – devido à grande presença de títulos comprados em sebos em condições variadas – é compensado pela qualidade intrínseca aos volumes, seu valor histórico e orgânico.

MARCELO ABREU, jornalista, autor do livro-reportagem De Londres a Kathmandu.

RIZEMBERG FELIPE, fotógrafo.

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