Imagine uma cidade que reunisse a Praça de São Pedro, no Vaticano, a Torre Eiffel, de Paris, o Congresso Brasileiro, de Brasília. Numa grande maquete, esses edifícios e outras construções anônimas são moldados em velas que são acendidas. A cidade queima e se esvai em alguns dias – logo esse cenário construído em cera será reposto e um novo ciclo se inicia. Esse processo e as paisagens de fogo que vão surgindo são transmitidos ao vivo em duas grandes telas de televisão colocadas junto à maquete.
Essa videoinstalação, intitulada Ahora juguemos a desaparecer (II) – Agora brinquemos de desaparecer(II), do cubano Carlos Garaicoa, consegue condensar os principais elementos que norteiam o seu trabalho: o urbanismo, as ruínas, a arquitetura, a cidade, a memória, o tempo. Inicialmente, a proposta de Garaicoa era reconstruir a ilha de Manhattan e a de Cuba, lado a lado, deixando-as queimarem juntas, numa alusão à tensão política entre os dois países. Porém, após o 11 de Setembro, pareceu-lhe que essa não seria uma proposta pertinente. Com a instalação da guerra contra o terror, concentrou-se em imaginar uma cidade do mundo, uma cidade global, em perpétua mudança, destruição e guerra. Esses processos seriam televisionados ao vivo. Afinal, foi das telas – hoje não apenas das TVs – que vimos a destruição das Torres Gêmeas e, recentemente, assistimos, incrédulos, a Catedral de Notre Dame, em Paris, e o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, serem destruídos pelo fogo. O que essa destruição representa simbolicamente? O que estamos apagando? O que representam essas ruínas? O que iremos reerguer? Seguiremos assistindo inertes a tudo isso?
A série Paisajes de trabajo levanta uma reflexão sobre a utopia da modernidade brasileira. Foto: Edouard Fraipont/Divulgação/Galeria Luisa Strina
É no campo dessas reflexões políticas e sociais que Garaicoa vem construindo sua poética ao longo de uma carreira de mais de 30 anos. Na verdade, o artista não se coloca como um estudioso da arquitetura. “Eu a utilizo mais do que propriamente a estudo. Para mim, a cidade se coloca como um local de sensações e relações. Eu penso que a riqueza do urbanismo e da arquitetura lhe permite questionar muita coisa. Interessa-me falar de uma noção de espaço e de história, sempre estou voltando e fazendo aproximações de diferentes formas a essas questões. De alguma maneira, estamos voltando a um pensamento sobre a construção de uma sociedade, de uma sociedade civil, e como são transformadas pelo calor do momento”, diz.
Seu trabalho demonstra como o urbanismo e a arquitetura são capazes de narrar a contemporaneidade. Sim, porque quando resgata as memórias dos espaços urbanos e faz uma espécie de documentação arqueológica, Garaicoa não pretende falar do passado, mas do agora, do encontro do ser humano e de sua ação nesse espaço.“Eu tento não trabalhar com muitos espaços históricos, ao selecionar espaços anônimos, meu desejo de propor uma análise mais direta da realidade é reforçado. Não vejo essa questão das ruínas com inconformidade, numa posição de perda, de lamento.”
As ruínas estão totalmente evidentes na série de fotografias da paisagem urbana de Cuba, iniciada em 2018, e apresentada recentemente em São Paulo, na Galeria Luisa Strina. Garaicoa imprimiu suas imagens em grandes quebra-cabeças azulados. Nas partes em que os edifícios e construções estão deterioradas, o artista desmonta as peças, que se acumulam, deixando visíveis partes da imagem original em P&B. “Ao mesmo tempo em que temos a imagem agradável do jogo, há também um olhar mais científico sobre a ruína. Muitas questões estão por trás, não são postas frontalmente”, explica ele, que afirmava, ainda em 2012, que o regime político cubano estava em ruínas e que precisava encontrar um modo de se reinventar na atualidade.
Na série Puzzle, Garaicoa trabalha a questão das ruínas com quebra cabeças. Imagem: Divulgação/Galeria Luisa Strina
Havana, cidade natal do artista – que hoje vive em Madri, mas que mantém na capital cubana um ateliê que visita constantemente – foi palco das suas primeiras ações urbanas e espaço de estudo e de experimentação para ele desde muito cedo. O interesse pelo urbanismo e pela arquitetura veio quando Garaicoa passou a desenvolver uma análise mais formal da arte, a trabalhar com a fotografia e a refletir como usar o documento na arte. Nessa aproximação, transformou Havana no seu “laboratório de pensamento”. Sua produção da década de 1990 foi fundamentada no processo de reciclar fragmentos da cidade e conduzi-los aos espaços das galerias. “Até hoje segue sendo assim, uma reconstrução a partir de um fragmento que cria uma nova narrativa.”
Na obra Fim do silêncio, o artista monta uma série de tapetes que partem dos nomes das lojas abandonadas da Havana pré-revolucionária e das fotografias de suas calçadas. Esses elementos são significadamente alterados pelo artista. O nome “La Lucha” torna-se um tapete onde está grafado “La lucha es de todos”, por exemplo. Em outros, o artista se apropria da tipografia original ou deixa se apresentar um detalhe do instante no qual fotografou a calçada.
Essa obra foi idealizada por Garaicoa quando fazia uma residência artística no Rio de Janeiro, em 2006, onde viveu por oito meses. Depois da temporada carioca, ele decidiu instalar-se definitivamente em Madri, mas segue percorrendo, visitando e revisitando, várias cidades em todo mundo. Afinal, como ele mesmo diz, para quem atua com o substrato do urbano, é indispensável manter-se em trânsito, percebendo a cada encontro com uma cidade as suas transformações.
Em Fim do silêncio, o artista resgata os nomes, tipologias e calçadas de lojas abandonadas na Havana pré-revolucionária. Imagem: Divulgação/Galeria Luisa Strina
Nessa perspectiva de lançar um olhar sobre a contemporaneidade a partir da análise e incorporação de elementos de seu interesse, Garaicoa produziu a série Paisajes de trabajo, exibida na exposição homônima, na galeria Luisa Strina. A série, que dialoga com o momento vivido pelo Brasil, é formada por quatro grandes mesas de trabalho e discute a violência real e simbólica sobre a arquitetura e os espaços urbanos que pertencem à memória coletiva.
São pinturas sobre a madeira das mesas que fazem referência a alguns edifícios simbólicos da modernidade brasileira e a outro que serviu como espaço de grande violência. Nessas mesas pintadas, o artista adiciona objetos de trabalho – pregos, furadeiras, serrotes, instrumentos cirúrgicos, foice – que impactam sobre essas arquiteturas, construindo novas narrativas para aqueles espaços. Três delas trazem a planta baixa de edifícios projetados por Oscar Niemeyer – Casa de Baile (Complexo da Pampulha, Belo Horizonte), Palácio da Justiça e Congresso Nacional, em Brasília. A quarta mesa traz a planta baixa da chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), que, na década de 1970, durante a ditadura militar, foi usada como um centro clandestino de tortura.
“Selecionei esses edifícios por sua simbologia, pelo pensamento de modernidade no Brasil, que seria o país do futuro, de uma nova sociedade, uma espécie de utopia muito ligada à arquitetura. O sonho de uma sociedade específica que tocou vários países da América Latina no período. Liberdade, democracia, morte são temas que proponho discutir através dessa análise da fragilidade do espaço urbano. A democracia brasileira está sofrendo mudanças violentas que precisam ser analisadas. É preciso olhar para essa construção de uma nova realidade e eu espero conseguir falar sobre essa contemporaneidade.”
Na obra Resistência (2019), o artista criou uma pequena escultura na qual quatro pregos de diferentes materiais (ferro, aço, bronze e ouro) interagem, um sobre o outro, cada um resistindo ao poder e a força dos outros, uma metáfora para representar as tensões sociais, em especial às vividas no Brasil hoje – a obra foi feita especificativamente para ser apresentada na exposição que realizou em São Paulo, em abril deste ano. “Essa exposição mantêm essa dinâmica entre instrumentos e objetos de trabalho, de medida, e objetos de uso escolar. O manejo desses objetos cria esse jogo de paisagem de trabalho, de uma paisagem em constante reconstrução.”
E essas paisagens trabalhadas pelo artista são vistas do ponto de vista de alguém que habita a cidade. Ainda que a figura humana praticamente não apareça explicitamente em suas obras, ela está sempre ali. Afinal, as cidades são ambientes criados, destruídos e reconstruídos diariamente pela humanidade. “Minha obra está cheia de seres humanos, é uma análise sobre a existência do homem dentro da cidade. Não é uma obra fria”, reforça.
Em Partitura, o humano se materializa no espaço da cidade pelo som. Durante mais de 10 anos, Garaicoa registrou a atuação de músicos que se apresentavam nas ruas de Madri e Bilbao. Com essa documentação em mãos, o artista convidou um compositor para que integrasse, em uma única partitura, esses vários sons coletados nos espaços urbanos dessas cidades espanholas. Os instrumentos de corda, sopro, percussão e as vozes dos cantores formam uma grande orquestração representativa da paisagem sonoro das urbes, acompanhados pelas imagens dos músicos, e também por desenhos feitos pelo artista sobre o pentagrama – conjunto de linhas horizontais, paralelas e equidistantes usadas para a escritura das notas musicais. Os traços de Garaicoa são animados e ganham vida nas telas, novamente remetendo a elementos da arquitetura, da construção, da métrica.
O artista traçou a paisagem sonora das cidades espanholas de Bilbao e Madri na obra Partitura. Fotos: Divulgação/Galeria Luisa Strina
O artista está muito vinculado aos ideais da arte conceitual, apostando que uma palavra e um conceito podem definir uma realidade, ainda que isso possa parecer muito racionalizante. Assim como a presença humana é notada em seus trabalhos de forma indireta, Garaicoa sugere que os seus expectadores também passem a habitá-los, a partir do momento em que prioriza a discussão de ideias, “num esquema conceitual puro”. A arquitetura como conceito, a construção como conceito, a ruína como conceito.
“A arte não precisa falar diretamente de todas as coisas. Gosto de que ela faça rodeios e acho que isso salva a linguagem da arte, a diferencia de outras formas de narrar a realidade, como a política, a sociologia e a história. Trago muito esse olhar analítico, distante, arqueológico sobre a realidade contemporânea. Parece que estou falando do passado, mas estou falando do agora e me parece que nesse mecanismo há, realmente, um encontro com o ser humano, com aquilo que nos toca, ai não há distâncias”.
MARIANA OLIVEIRA, jornalista e editora assistente da revista Continente.