Quatro anos se passaram desde o lançamento de Leve o que quiser, álbum de estreia do Pietá, e Juliana Linhares, Frederico Demarca e Rafael Lorga mal sabem aonde foram parar. O trio fez fama no circuito alternativo com suas canções palavrosas, de sonoridade orgânica e raízes na cultura popular. Mas, enquanto preparava o disco novo, aguardado para o fim deste mês, a banda formada no meio teatral do Rio de Janeiro percebeu que agora tinha um instantâneo musical bem diferente nas mãos.
“É um disco contaminado pelo que estamos vivendo. Nesse meio tempo, teve (o assassinato de) Marielle, teve um monte de coisa pesada”, define Juliana, para quem é impossível separar arte e política. “Muitas vezes, nesse período, a gente deixou de fazer música porque ia numa manifestação, porque tava mal, porque não conseguia sair de casa”, completa a cantora, nascida em Natal (RN) e única não carioca na banda.
Formada em 2012, a Pietá começou como um projeto sem grandes pretensões de três colegas de curso de Teatro da UniRio. Entre um ensaio e outro, Juliana, Fred (violão) e Rafael (bateria e percussão) passaram a se reunir num casarão no Bairro de Santa Teresa para “fazer um som”. O primeiro disco saiu de 2015, com canções próprias que remetiam ao regionalismo nordestino, folclore, samba e literatura. A estreia já contava com participações de peso, como Chico César, Carlos Malta e Cláudio Nucci. Nas apresentações pelo país, a empreitada ganhou força, graças ao domínio de palco do trio, capaz de magnetizar os passantes em shows na rua com a mesma intensidade com que preenche o Circo Voador.
Antes de chegar às plataformas de streaming, o novo álbum, Santo sossego, dá pistas de sua identidade. Nos singles já divulgados, emergem temas como o feminismo e a moral conservadora. Em Jabaculê, por exemplo, a banda enfileira sinônimos de propina, como “lambujem” e “xixica”, e aponta “falsos crentes”. A faixa traz ainda um trecho recitado de Evangelho segundo Jesus, monólogo estrelado pela atriz trans Renata Carvalho, censurada por sua peça no Festival de Inverno de Garanhuns do ano passado, por pressão de grupos religiosos. “A gente vive no Rio, onde existe um projeto de poder que tem a ver com religião. E o nome da banda se atrelou a isso, embora não tenha sido a intenção”, diz Fred.
Outra canção que tem aparecido nos setlists recentes, Suçuarana, parceria do violonista com Iara Ferreira, é uma ode à força da mulher, pontuada por versos como “Nenhuma filha terá mais nada a temer/ por essa selva /nós vamos ser mais de mil” e grunhidos felinos da vocalista. Entre as 10 faixas do disco, a banda incluiu ainda Iara ira, saída do espetáculo feminista homônimo que reuniu Juliana, Duda Brack e Júlia Vargas. Mas não pense que a contundência sufocou as letras intrincadas que caracterizam o trio. “A gente não fala de um assunto reto. É um disco político, mas vai ser atravessado por abraços e alentos. Queremos falar desse sonho de sossego nessa loucura da cidade”, resume a cantora.
Santo sossego tem produção de JR Tostoi, do Vulgue Tostoi, e participação de Caio Prado nos vocais de uma das faixas. Como o primeiro disco, este foi custeado com financiamento coletivo dos fãs. Quem esteve nos shows mais recentes da banda notou que a sonoridade acústica de violões, flautas, pífanos e cajons do início abriu espaço para um som mais cheio, eletrificado pela presença dos convidados Ivo Senra (sintetizadores) e Elísio Freitas (guitarra), que também deixaram sua marca no registro em estúdio.
Essa nova fase é reflexo dos anos de apresentações ao ar livre, inclusive “de guerrilha”, como em praça pública, um dos palcos preferidos do trio. “Quando a gente chega em lugares onde não somos conhecidos e tem cerveja, image mapping, barulho, é mais difícil fazer o público cantar junto nossas músicas mais longas. Pensamos em como agregar um som para deixar as pessoas ligadas e, ao mesmo tempo, não perder nossa poesia”, diz Juliana, acostumada a interpretar poemas musicais complexos, como A vingança de Cunhã, parceria com Thiago de Mello salpicada de palavras como “arrebol”, “alvissareira” e “engerado”. “Agora temos uma música com ‘obtuso’. Quem mais bota ‘obtuso’ numa letra?”, brinca.
Por trás do trabalho da Pietá, desde o início, está a vontade de recuperar a tradição da canção brasileira. “Como conviver com esse buraco que veio depois de grandes mestres como Caetano, Milton? Hoje temos muitas músicas levantando bandeiras claras, explícitas, mas chega uma hora em que isso toma conta do cenário completamente”, pondera Fred. “Sempre tivemos isso em comum, a relação com a palavra. Dá para fazer algo elaborado sem parecer de um tempo que passou. Queremos algo vivo”, completa Rafa.
Depois do lançamento do álbum, a banda se lança em turnê. Pela primeira vez, os três vão contar com direção para os shows, assinada por Renato Linhares. A divulgação do disco também inclui pelo menos um clipe, da música Mar de sonhos. Será o teste do alcance dessa nova Pietá, com doses reforçadas de militância e punch. “A gente tem o desejo de crescer. Agora é jogar isso pro mundo e entender se vamos vibrar para 500 ou para um milhão”, questiona Juliana.
GUSTAVO LEITÃO é repórter de cultura, com passagens por veículos como O Globo, Jornal do Brasil e O Dia. Também editou o site Filme B, especializado em mercado de cinema.