Crítica

O Miró de João Cabral de Melo Neto

Quase 70 anos depois, é publicado no Brasil, na sua forma original, ensaio em que o poeta brasileiro comenta a obra do artista espanhol a partir de conversas estabelecidas na amizade entre eles

TEXTO Kelvin Falcão Klein

06 de Maio de 2019

João Cabral e Miró se tornaram amigos na década de 1940, quando o poeta foi diplomata em Barcelona

João Cabral e Miró se tornaram amigos na década de 1940, quando o poeta foi diplomata em Barcelona

Foto Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 221 | maio de 2019]

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Diante do livro pronto, impresso e disponível na livraria, é difícil ter uma noção exata da quantidade de etapas necessárias para a produção desse objeto. Geralmente, a atenção do leitor está na marca de autoria – o nome que vai na capa – ou talvez na própria dimensão visual da capa, seu projeto gráfico, suas cores, suas imagens. Já foi dito que o trabalho do editor é daqueles silenciosos, um trabalho que ocorre nos bastidores, antes do livro se tornar de fato livro e circular pronto pelo mundo.

Muitas vezes, porém, as histórias que envolvem o trabalho do editor são tão merecedoras de leitura quanto aquelas dos livros feitos por eles. É o caso, por exemplo, de Memórias de um editor, escrito por Kurt Wolff (1887-1963), editor de monumentos como Franz Kafka, Heinrich Mann e Karl Kraus; ou de A marca do editor, livro lançado por Roberto Calasso, responsável pela editora italiana Adelphi, em 2013; ou ainda das reminiscências de Jorge Herralde, fundador da editora espanhola Anagrama, reunidas em livros como O observatório editorial e Flashes sobre escritores e outros textos editoriais. Esses são exemplos de trabalhos que nos ajudam a perceber a presença, ao mesmo tempo sutil e decisiva, da editoria no processo de realização dos livros a que temos acesso como leitores e pesquisadores.

Muitas vezes o trabalho editorial envolve a injeção de sangue novo no contexto cultural de uma determinada época, a clara noção de que, para movimentar uma tradição, é preciso correr riscos. Isso aconteceu quando o editor Grasset, por exemplo, decidiu publicar o primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, depois da recusa de Gaston Gallimard e da editora que leva seu nome; ou quando Sylvia Beach, livreira e editora, dona da Shakespeare and Company, seguindo os passos e os conselhos da pioneira Adrienne Monnier, decide encarar a publicação do escandaloso Ulisses, de James Joyce, em 1922.

Recentemente, o mercado editorial brasileiro recebeu uma dessas injeções com a publicação de um ensaio do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, intitulado Joan Miró, editado por Valéria Lamego e publicado pela Verso Brasil. O que torna o caso ainda mais emblemático é que se trata de um ensaio de 1950, escrito por um autor já canônico no panorama literário brasileiro, mas que ainda não havia sido publicado de acordo com as instruções de Miró e João Cabral, respeitando sua peculiar relação entre texto e imagem. Outro ponto que deve ser ressaltado é a raridade da atividade em prosa de João Cabral: ao contrário de outros grandes nomes da poesia brasileira, como Bandeira, Drummond ou Cecília Meireles, que exercitaram a prosa quase tanto quanto a poesia, Cabral foi bem mais contido e econômico – o que configura mais um motivo para celebrar o lançamento de Joan Miró.

MIRÓ E CABRAL
O escritor brasileiro e o artista catalão se tornaram amigos na década de 1940, quando João Cabral, na condição de diplomata, se desloca para Barcelona, onde vive de 1947 a 1950. Apesar da diferença de idade – Miró nasceu em 1893, João Cabral em 1920 –, os dois se dão muito bem, compartilhando interesses. Suas conversas motivam ao menos um poema de Cabral, Campo de Tarragona, de Paisagem com figuras. Miró era já um artista célebre e estabelecido, firmando seu pé em variados campos, passando pela pintura, gravura e escultura – ou mesmo o mosaico, sendo o mais famoso aquele feito na Pla de l’Os, a céu aberto, em Barcelona. Nesse período de sua vida no qual conhece Cabral, Miró vivia profundamente angustiado por conta do regime fascista de Franco na Espanha, que o colocou e sua obra na posição de inimigos do regime. Em 1937, por exemplo, no Pavilhão Espanhol da Exposição Internacional de Paris, Miró e Picasso expõem juntos obras de crítica ao regime franquista: o primeiro com El cegador, um mural de cinco metros de altura, e o segundo com Guernica, uma de suas pinturas mais conhecidas e celebradas.

É nesse contexto de angústia e esgotamento que João Cabral chega a Miró, levando consigo um pouco do frescor da curiosidade e da juventude – e poeta já publicado, tendo lançado Pedra do sono, em 1942, Os três mal-amados, em 1943 e O engenheiro, em 1945. Como membro do corpo diplomático, Cabral tinha livre acesso e ampla possibilidade de deslocamento, sem ser perturbado pelo regime fascista. Com isso, pôde transitar entre os círculos culturais de Barcelona, conhecendo escritores, pintores, políticos e intelectuais – entre eles, o poeta Joan Brossa e o pintor Antoni Tàpies.


Bilhete de Miró para João Cabral, durante a edição do livro. Foto: Reprodução

É digno de nota que, nesse período de sua vida, João Cabral estivesse afastado da poesia, mas ainda trabalhando com livros: cria um selo editorial chamado O Livro Inconsútil, produzindo volumes na prensa manual que havia instalado em sua casa em Barcelona. Além de seu próprio Psicologia da composição, Cabral faz também uma edição de Mafuá do malungo, de Manuel Bandeira, e uma edição de El poeta conmemorativo, do poeta e crítico de arte espanhol Juan Eduardo Cirlot. Um dos temas das conversas entre Cabral e Miró, em fins da década de 1940, era justamente o ofício da realização artesanal de livros e, em paralelo, a junção de materialidade e do conceito no livro como objeto.

O coroamento dessa amizade é o ensaio aqui em questão, Joan Miró, publicado por João Cabral em Barcelona em 1950, pelas Edicions de l’Oc, uma pequena editora de publicações de tiragens reduzidas. Miró acompanhou de perto a produção do livro, oferecendo duas gravuras para reprodução no interior e outra para reprodução na capa, que na edição de 1950 – única, com tiragem de 130 exemplares, dos quais 125 numerados – era revestida de tela.

O mais curioso dessa primeira edição é que, mesmo tendo sido publicada na Espanha, o ensaio de João Cabral foi impresso em sua língua original, em português. A mesma editora publica, no mesmo ano, a versão em francês da obra, com o ensaio traduzido por Henri Moreau. A edição em francês não apresenta as gravuras de Miró; em contrapartida, inclui um material que não estava na primeira edição: um ensaio fotográfico que registra todas as etapas do processo de impressão das obras de Joan Miró, que utiliza um complexo conjunto de técnicas de manipulação dos materiais.

A situação editorial do ensaio de Cabral ainda se complexifica com o passar do tempo. Em 1952, no Brasil, é publicada uma edição do ensaio na série Cadernos de Cultura, do Serviço de Documentação do Ministério de Educação e Saúde, editada por Simeão Leal. Trata-se de uma coleção curiosa, que agregou títulos como No mundo do romance policial, de Álvaro Lins, O movimento modernista, de Peregrino Júnior, e Evolução do conto brasileiro, de Edgard Cavalheiro. Tal edição de 1952, contudo, não apresenta nem as gravuras de Miró, nem o ensaio fotográfico da edição em francês; é ilustrada com duas imagens cuja autoria e origem são desconhecidas.

O ensaio de João Cabral sobre Miró foi publicado – só o texto, sem as imagens – em duas outras ocasiões desde então, primeiro na edição da Obra completa do poeta, de 1994 (pela Editora Aguilar), e em seguida no volume Prosa, de 1998, pela Editora Nova Fronteira. Chega-se à conclusão, portanto, de que a obra jamais existiu no Brasil exatamente como foi planejada em conjunto por Miró e João Cabral – um ensaio de discussão da obra visual acompanhada de exemplos dessa mesma obra. Além de incorporar as gravuras de Miró, feitas especialmente para o ensaio de João Cabral, a edição recente da Verso Brasil agrega também o ensaio fotográfico até o momento disponível apenas na tradução francesa de 1950, feito pelo fotógrafo Enric Tormo.

O livro que temos em mãos agora, portanto, é a condensação dos vários momentos editoriais pelos quais passou o ensaio de Cabral sobre Miró. O ensaio fotográfico que acompanhava a tradução francesa é fundamental para uma melhor apreciação dos métodos de trabalho de Miró – métodos que Cabral comenta com rigor e profundidade. Além disso, observar o processo de criação de Miró através das fotografias ajuda a entender também as reproduções que vemos na recente edição de Joan Miró. O catalão gostava de experimentar com diversos objetos em suas gravuras, usando elementos heterogêneos como moldes para carimbos, levando-os à tinta e depois pressionando-os na tela ou papel. Uma das fotografias mostra uma lata de sardinha, uma agulha para limpar peixe e uma casca de eucalipto, três artefatos usados para produzir as gravuras para o ensaio de Cabral.

O ESTILO DE JOÃO CABRAL
Para aqueles que conhecem a poesia de João Cabral de Melo Neto, o estilo utilizado no ensaio sobre Joan Miró funcionará como uma espécie de reconhecimento, de rememoração. Vemos o mesmo apreço pela palavra justa, escolhida a dedo, um estilo fluido e luminoso a serviço de um encadeamento de ideias precisas e cuidadosamente pesadas. “Em Miró”, escreve Cabral, “mais do que em nenhum outro artista, vejo uma enorme valorização do fazer. Pode-se dizer que, enquanto noutros o fazer é um meio para chegar a um quadro, para realizar a expressão de coisas anteriores e estranhas a esse mesmo realizar, o quadro, para Miró, é um pretexto para o fazer. Miró não pinta quadros. Miró pinta”. Há uma coesão e um apuro do pensamento em Cabral que funcionam como traços reconhecíveis seja na poesia, seja no ensaio, formando uma costura única que percorre toda sua produção.

No caso específico do ensaio de Cabral sobre Miró, a relação entre a ideia e a materialidade é íntima, fazendo o cuidado com a edição algo fundamental para a fruição da obra. Esse é um tópico que perpassa o labor artístico de ambos, correspondendo também a um dos principais liames na afinidade pessoal entre eles. Na época de seu contato com Miró, visitando regularmente seu ateliê e sua casa e vendo a quantidade de objetos que ele colecionava e que usava em sua pintura, Cabral começa a considerar uma nova direção para seu próprio trabalho. Como escreve Ricardo Souza de Carvalho, em posfácio incluído em Joan Miró, “Cabral começava a se sensibilizar com uma arte vinculada a um referencial concreto e prosaico”, no qual ainda fala da “singularidade” do ensaio de Cabral, “despretensioso e perspicaz ao mesmo tempo”, com “estreita sintonia entre escrita e objeto, entre o ensaio e a pintura de Miró”.                

É possível também abordar o ensaio de Cabral sobre Miró pela perspectiva de um dos subgêneros no qual se encaixa – as reflexões críticas sobre grandes pintores realizadas por grandes escritores. A arte modernista do início do século XX, em suas múltiplas formas, representa o auge desse contato tão produtivo entre escritores e artistas visuais. Pode-se esboçar, como contextualização e preparação de terreno, uma rápida e provisória linha do tempo: em primeiro lugar, em 1903, surge o grandioso ensaio de Rainer Maria Rilke sobre Auguste Rodin; pouco mais além, de teor diverso, mas igualmente poderoso, o ensaio de Gertrude Stein sobre Pablo Picasso, publicado em revista em 1912; saltando alguns anos, em 1933, vemos o resgate que Roberto Arlt realiza de Goya, com suas Aguafuertes porteñas; por fim, em 1936, encontramos o célebre ensaio de Paul Valéry sobre Edgar Degas, Degas, dança, desenho.

O ensaio de Cabral certamente se integra a esse panorama crítico, sobretudo porque compartilha uma importante característica com esses trabalhos anteriores: a junção dos artistas – aquele que escreve e aquele que é comentado – promove um enriquecimento de experiência para os dois lados, ou seja, o ensaio de Cabral funciona como uma reflexão sobre a obra de Miró e também como uma potencialização da própria poética de Cabral. Ao comentar Miró, refletindo sobre forma, construção, tradição e inovação, entre outros tantos temas, Cabral faz um ensaio abrangente, que não se esgota naquilo que ele tem a dizer sobre o pintor catalão. É preciso ter em mente a ênfase que Cabral dava à noção de “composição”, percebendo como Miró é apenas mais um elemento dentro de uma constelação imaginativa em construção.

No processo de ler as gravuras e os quadros de Miró, Cabral também lê a própria poesia, aquela que já tinha escrito e aquela que ainda escreverá. O leitor hoje tem acesso a essas múltiplas perspectivas e caminhos que permitem uma leitura do ensaio de Cabral a partir do acúmulo criativo de temporalidades, leituras da história e da tradição.

É possível perceber essa amplitude de possibilidades em vários momentos do ensaio de Cabral, como, por exemplo, no trecho intitulado Criar como inventar: “Criação, portanto, como equivalente de invenção e não de descoberta. Equivalente a uma invenção permanente. Porque o rigor dessa consciência, a única talvez que conseguiu passar da luta contra o ponto de partida da regra, levando-a mais longe, à luta contra o resultado da regra assimilado a ponto de hábito, exerce-se tanto contra esse mesmo hábito como contra a solução ou a maneira por meio da qual, um momento atrás, ele conseguiu criar à margem do costume”.



Miró acompanha de perto a produção do livro original, para o qual ofereceu duas gravuras: para capa e miolo. Fotos: Reprodução

A divisão proposta por Cabral para seu ensaio também merece um comentário à parte. De maneira geral, Joan Miró é dividido em parágrafos expostos como blocos, ao mesmo tempo independentes e ligados a uma argumentação compartilhada. De maneira mais específica, contudo, Cabral organiza alguns desses blocos argumentativos dentro de uma denominação geral, uma espécie de título de seção que dá o tom da discussão. Para gerar tal efeito, Cabral faz uso da marginália, colocando à margem do corpo do texto chamadas que indicam e resumem o conteúdo geral do ensaio: “Importância da linha”, “A linha na estrutura estática”, “A linha na pintura de Miró”, “O segredo de sua linha”, e assim por diante.

Em suas Notas sobre a edição, que acompanham o volume, Valéria Lamego informa que a marginália é “um artifício textual e gráfico” usado especialmente “pelos escritores do século 19”, como Samuel Taylor Coleridge e Edgar Allan Poe (que escreveu inclusive ensaios sobre o tema), mas que também aparece no século XX em um autor como Roland Barthes, por exemplo (A câmara clara e Fragmentos de um discurso amoroso). A marginália de Cabral funciona também como um facilitador para o leitor que, mesmo ao folhear o ensaio, pode ter uma noção aproximada não só dos temas e das discussões, mas principalmente de como ele realiza o encadeamento das ideias, a progressão ensaística propriamente dita, um dos pontos altos de Joan Miró.

Como conclusão, é preciso enfatizar a relevância da publicação do ensaio de Cabral no Brasil atual, uma vez que estamos diante de uma prova de integridade intelectual e comprometimento com a cultura, lições fundamentais e hoje ainda mais urgentes. O esforço interpretativo de Cabral em direção a Miró mostra uma saudável relação entre a cultura brasileira e a cultura internacional, estabelecendo não uma hierarquia, mas um espaço de troca e diálogo, algo que Cabral apresenta em toda sua produção artística.

A obra de Miró, escreve ele, “me parece nascer da luta permanente, no trabalho do pintor, para limpar seu olho do visto e sua mão do automático”. Mais uma vez, aqui vemos Cabral partir de Miró e alcançar uma visão de mundo ainda mais ampla e que certamente ressoa em nosso tempo presente, nos problemas e obstáculos que nos tocam hoje. Nada mais apropriado do que um estímulo ao pensamento crítico que se quer independente, rigoroso, lutando contra o automatismo e o espírito de rebanho.

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).

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