Artigo

O corpo sensível do livro-objeto

Ao folhear um livro, o leitor não apenas lê o conteúdo textual que se apresenta na superfície da página, mas também é afetado por uma experiência com o objeto

TEXTO Nanda Maia

06 de Maio de 2019

No selo 'Porta Aberta', Philippe Wollney experimenta diferentes formas de edição

No selo 'Porta Aberta', Philippe Wollney experimenta diferentes formas de edição

Foto Breno Laprovítera/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 221 | maio de 2019]

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À memória de Paula Santana

A raiz da palavra dobra é plek, indica multiplicação, desdobramentos, duplicação. Passar do simplex para o duplex”, explica Philippe Wollney. O livro como objeto tenta captar o presente, mas o conteúdo (se este artigo ou um poema) se revela no como e onde interage com o leitor. Logo, se o que você empunha é uma revista impressa sob forma de códice – um conjunto de papéis dobrados ao meio, em páginas sobrepostas – ou um tablet que projeta o texto em rolo, aspectos como formato, cor, espessura, textura e luminosidade do papel ou do display são algumas das sinestesias que estão sendo processadas pelo seu cérebro com auxílio de seus sentidos. No entanto, o códice pode ser não só palco da experiência afetiva do texto que você curiosamente resolveu ler até o momento, mas também uma forma de vivência poética. Assim, o livro transcende o suporte para se constituir no corpo do que você lê e sente: “a força que contorna o poema deriva do seu corpo em cena”, escreve a poeta Maré.

O LIVRO QUE SE DESDOBRA
Em 2012, Philippe Wollney criou o selo Porta Aberta, em Goiana (PE), para atender a uma necessidade comum a muitos artistas contemporâneos que captam qualquer benefício da tecnologia, seja digital ou analógica, em vista da vivência criativa: a autopublicação. No mesmo ano e por motivações convergentes, o também poeta Fred Caju iniciou as atividades da Editora Castanha Mecânica, Paulista (PE), cuja finalidade era mostrar ao público a sua produção poética que já era pensada de forma seriada, como num livro.

Com isso, enquanto amadurecia suas habilidades editoriais produzindo obras autorais e de amigos, Caju primeiramente operava na edição de livros digitais (assim como Wollney ao iniciar o seu selo), até notar, em 2016, que os livros analógicos influíam como um potente objeto de afetos. Anos antes, em 2010, Maré já iniciava na autopublicação, até que, em meados de 2015, cria o selo Bendito Ofício, a partir da edição dos livros META (2016) e poesia pra pixo (2017). Portanto, existir, criar e multiplicar são os verbos que conjugam esses artesãos do devir, Wollney, Caju e Maré.


A poeta e artista visual Maré criou o selo Bendito Ofício
para publicar obras suas, a exemplo de META (2016).
Foto: Breno Laprovitera/Divulgação

“Eu costumo chamar a Bendito Ofício de selo de poesia expandida”, escreve Mariana de Matos (Maré), “como possibilidade de materializar esse modo de pensar publicação, porque entendo que o mercado não consegue absorver essa demanda nem em relação à forma, estética, nem em relação às particularidades de que às vezes uma publicação necessita”. Para esses poetas, o códice é um ramo, de muitos outros, capaz de estabelecer conexões com o outro. Além do livro, a poesia de Philippe Wollney também se expande nas interações entre o texto e o audiovisual ou entre texturas de sons e imagens. Logo, tal qual uma constelação de palimpsestos, a palavra está “em expansão, dilatando-se, como um fio condutor que transita em várias regiões”, compara Wollney, que costuma cultivar suas referências, ora evocando antropofagias, ora reverenciando mestres do coco de roda ou do maracatu (já que a oralidade é a sua base de expressão).

É o caso de Poemas de um eu cretino ou o espelho da coruja (2012), no qual o editor do Porta Aberta relata que a pesquisa de imagens e de tipos de papel foi necessária à construção do livro, além da busca por ilustrações de Till Eulenspiegel, um tipo de bobo da corte do folclore alemão que brinca com as linguagens. Logo, a imagem do poeta que experimenta é a mesma do bobo da corte, um palhaço, sendo essa a sua função, compara Wollney. “Por mais que a arte, a literatura ou o poeta transgrida, sempre ocorre dentro do espaço do status quo onde se permite. Então, Poemas de um eu cretino faz não só uma autocrítica como uma provocação”, comenta.

Camadas textuais também estão presentes na produção de Fred Caju, cujo contato com o público é apontado por ele como transformador, mais do que com a artesania. “Agora eu acredito profundamente que a autopublicação e a publicação independente criam novas microesferas de poder e conseguem dar visibilidade a vozes historicamente silenciadas”, expõe Caju.

A pluralidade desses artistas não pretende a erudição nem o isolamento, mas a vivência. Por isso que os livros META e poesia pra pixo são, para Maré, o desejo de borrar os limites impostos pelas formas convencionais de produção e fruição de poesia: não são nem da literatura nem das artes visuais, estão na fronteira, propõe a artista-visual e poeta mineira, à medida que as duas obras também se expandem em forma de poema-manifesto, em quatro serigrafias, e de uma série de três poemas em cerâmica.


Foto: Breno Laprovitera/Divulgação

O paratexto (geralmente complementar ao conteúdo principal) também é um espaço de subversão da forma, pois, dada a inventividade com que se relaciona com a estrutura do livro, seu valor acessório é reprojetado na superfície dinâmica da página. Assim se dá no ~APÊNDICE~ de META, que pode ocupar o topo ou a base do papel vegetal, basta, para isso, que o leitor coloque o livro de ponta-cabeça, ao mesmo tempo em que a baixa opacidade da página permite enxergar o outro lado da impressão na textura crespa do kraft. Nesse ambiente transparente, lemos os três versos: “O POETA QUE NÃO É LIDO/ (uma linha de letras sobrepostas)/ É POESIA / AISEOP É”. Quando viramos a página, na camada azul do papel color plus, agora lemos o texto em reflexo: “ODIL É OÃN EUQ ATEOP O/ (letras sobrepostas)/ É POESIA/ AISEOP É”. De modo que as palavras se modificam e se mantêm, (in)dependentemente do ponto de vista.

O colofão, por sua vez, uma nota final na qual são disponibilizadas referências, informações técnicas ou processuais sobre a publicação, é outro espaço de expansão do processo criativo. Para Fred Caju, trata-se de uma das partes mais importantes do livro, pois é onde ele tem a oportunidade de democratizar, para o leitor, as formas de fazer o livro. Em estilhaços (2018), por exemplo, o editor nos relata: “se você chegou a este colofão para ter a certeza de que a capa foi feita com estilhaços de cascas de ovos lhe daremos essa confirmação mas não se preocupe tivemos um grande cuidado com a higienização delas (…)”.

Em cada modo de produção, se artesanal ou industrial, editoras ou autores-editores têm desdobrado suas obras, pensamentos e processos em múltiplos espaços e eventos culturais, físicos ou virtuais, ora oferecendo cursos, palestras e debates, ora realizando instalações, montagens teatrais e demais intervenções. O livro convoca sentidos, pois, não se restringe aos elementos físicos do livro, “podendo um texto, uma frase, ou mesmo a leitura configurarem experiências sensoriais”, explica Clara Barzaghi, gerente e colaboradora da n-1 edições, de São Paulo.

Em Pernambuco, esse tipo de produção se expande em casas de publicações independentes, como a Livraria e Sebo do Pátio, no Pátio de São Pedro, no Recife, e o Sebo Casa Azul, em Olinda. Na Zona da Mata Norte, além do selo Porta Aberta, em Goiana, outros coletivos de impressos ampliam o raio de circulação dos livros artesanais na região: Universo em Controverso e Lololista Cartonera, em Nazaré da Mata; Iluminismo Poético, em Timbaúba; e o coletivo Ispia!, em Carpina. No centro de São Paulo, por sua vez, a Lote 42 mantém, desde o final do ano passado, a Sala Tatuí como um espaço multiuso para eventos culturais e de formação, visando complementar a Banca Tatuí. A n-1 edições, também em 2018, abriu a sua loja presencial.

A LEITURA INCORPORADA
Designer e sócia da editora paulistana Ubu, Elaine Ramos explica que o texto e o livro podem estabelecer diálogo em várias camadas, seja na escolha de uma tipografia, gerando a forma visual do conteúdo textual, ou se expandindo para a estrutura do livro, propondo uma interação menos convencional “entre o conteúdo e o leitor, num projeto mais experimental”, aponta. Ramos cita um de seus projetos inventivos, Bartleby, o escrivão – Uma história de Wall Street (2017), de Herman Melville, lançado pela Ubu, como exemplo em que o livro-objeto personifica a narrativa. Um texto clássico que só é lido quando o leitor, com certa angústia e cautela, é impulsionado a descosturar a capa e soltar (uma a uma, com uma régua de acetado que acompanha a obra) as páginas do miolo que estão pregadas, já que o texto é ocultado por uma textura. De modo que a própria designer revela que a ideia do projeto era provocar um “acho melhor não”, frase constantemente repetida pelo personagem principal da história.


Para ler a edição de Bartleby pela Ubu, é preciso descosturar a capa e soltar as páginas do miolo. Foto: Divulgação

A Carambaia também visa à materialização da leitura que desafia padrões. Fabiano Curi, diretor editorial, pontua que o primeiro passo da editora paulistana consiste em captar textos que dialoguem com o público contemporâneo brasileiro, para então buscar designers que demonstrem afinidades com o conteúdo pesquisado. “O projeto gráfico é a proposta para a materialização da leitura que esse artista gráfico fez do texto. No projeto, ele coloca referências de seu repertório e de sua pesquisa”, explica Curi. O livro-objeto que mescla o método artesanal e industrial também faz o múltiplo, observa Clara Barzaghi, que situa qualquer processo industrial na criação de livros da editora n-1 “numa rede muito mais ampla de pensamento e de articulação”.

A materialização da leitura também é percebida nos livros ilustrados, terminologia amplamente utilizada na literatura classificada como “infantil”, sob narrativas de linguagens híbridas que flutuam entre as dimensões de ficção e realidade do leitor e vice-versa. É o caso de Mala quadrada, cabeça quadrada, lançado em 2018 pela editora pernambucana Caleidoscópio e consagrado com a medalha de bronze na categoria de Design Editorial de Livros, pelo Brasil Design Award do mesmo ano. O título do livro surge de um comentário que há 15 anos está marcado na lembrança de Patrícia Vasconcellos: “Ouvi a frase do título do livro de um xamã lá na Sibéria, em 2004, quando se referia ao tamanho da minha mala enorme sendo arrastada na grossa camada de neve. Fiquei com aquilo… mala quadrada, cabeça quadrada…”.


O livro-objeto Mala quadrada, cabeça quadrada brinca
com as formas mais perceptíveis: o triângulo,
quando está fechado; o quadrado, quando aberto.
Fotos: Divulgação

A partir da viagem, Patrícia se distancia da Ciência da Computação, empreende no estudo de Psicologia, intensifica o seu envolvimento em Cura Espiritual, até se perceber escritora em 2006, incorporando ao texto de Mala quadrada, cabeça quadrada o sentido de transformação. Este que se projeta no corpo do livro-objeto sob três formas mais perceptíveis: o triângulo, quando o livro está fechado; o quadrado, quando aberto; e o círculo – explorando uso de cores, texturas, traços e manchas gerados pela ilustração, além da disposição espacial das palavras. “O que fiz?”.

DESAFIOS DA INVENTIVIDADE
Uma vez que boa parte do raio de circulação de Philippe Wollney ocorre pela Zona da Mata pernambucana, o poeta aponta a acessibilidade nos preços como essencial ao Porta Aberta, mantendo o valor final das publicações entre R$ 8 e R$ 25, devido aos formatos econômicos, fundamentais para o bom aproveitamento de material, isto é, quando o desperdício é reduzido ao máximo. Na Castanha Mecânica, livros físicos e virtuais compartilham o catálogo da editora, que, além de projetar obras a partir da reutilização de recursos, ainda recorre a softwares livres e tipografias doadas ou em domínio público, mantendo a faixa de preço que varia entre R$ 2 e R$ 50, também mais acessível ao público.

Segundo Elaine Ramos, da Ubu, na indústria de livros, sair do padrão significa um custo maior. “No universo da baixa tiragem, do livro de artista, é possível experimentar com muito mais liberdade, já dentro de uma equação de preço do mercado de livros de livraria é muito limitado, e muito desafiador”, explica a sócia da editora.

Contudo, Ramos revela ainda que é possível “subverter o funcionamento das máquinas em alguma das etapas de produção sem inviabilizar o projeto do ponto de vista do custo”. Assim, pensar o códice como uma potência artística e literária não envolve, somente, alguém que pense o livro como um objeto multifacetado, mas também estar ciente de que nem sempre é possível arcar com as despesas que a criatividade exija ou que o leitor esteja disposto a pagar.

Igualmente provocados sobre um possível encarecimento que os acabamentos podem acarretar aos livros-objeto, João Varella e Cecilia Arbolave, da Lote 42, esclarecem que há soluções que podem ser seguidas ou não, à medida que a pesquisa de recursos e processos produtivos caminham em diálogo com o orçamento disponível.

Por outro lado, questões técnicas podem encaminhar as escolhas criativas. Como exemplo, Varella e Arbolave citam o livro Indiscotíveis (R$ 50), lançado pela Lote 42 em 2014, com a edição esgotada, cuja ideia inicial consistia em acomodar 14 ensaios em 14 livretos em formato semelhante ao do LP. “Só que o orçamento da gráfica era inviável, o que nos forçou a pensar em alternativas, até chegarmos à solução de botar dois capítulos por livreto de forma invertida. Assim, ao terminar de ler um ensaio, o leitor vai ‘virar o disco’ e ler o outro. A solução foi muito melhor do que a primeira ideia”, concluem.

Indiscotíveis, lançado pela Lote 42 em 2014, acomoda 14 ensaios em 14 livretos em formato semelhante ao do LP. Foto: Divulgação

Tanto Varella quanto Arbolave reforçam que buscar o aperfeiçoamento de produção e de projeto gráfico, visando à experiência do leitor ao conteúdo, não implica encarecer os livros, à medida que o preço final passa a ser considerado no planejamento. Seja explorando formatos que agreguem camadas de significados às obras – como Inquérito policial: Família Tobias (2016), de Ricardo Lísias (R$ 50) –, seja investindo a atenção em materiais e acabamentos que tornem a experiência do leitor em algo singular – como em Fachadas (2017), de Rafael Sica (R$ 40) –, indicam os editores. Em sua loja virtual, o catálogo da Lote 42 dispõe de uma faixa de preço entre R$ 30 e R$ 100.

Na loja virtual da Carambaia, por sua vez, a faixa de preço varia entre R$ 26,90 e R$ 168,90, subdividida em três linhas de produtos: as edições Limitadas, a coleção Acervo e o selo Ilimitada. As edições Limitadas possuem saída de 1 mil exemplares numerados manualmente e projetos gráficos exclusivos de obras já publicadas no Brasil ou inéditas – como Ifigênia (2016), de Teresa de La Parra, estipulada em R$ 129,90. A coleção Acervo, com valores que variam de R$ 26,90 a R$ 28,90, atendem a um padrão gráfico unificado, em formato econômico. Já o selo Ilimitada possui maior tiragem e construção gráfica modesta, com uma única edição finalizada, no valor de R$ 50.

Para o editor Fabiano Curi, em contexto brasileiro, é relativo dizer quando um livro sai caro ou barato, pois observa que publicar diferentes versões editoriais de uma mesma obra é mais comum em outros países do que no Brasil. “A obra é a mesma, mas os diferentes leitores querem diferentes edições. Na Carambaia, lançamos dois livros do Machado de Assis, em edições de R$ 100 e R$ 200. Os 100 exemplares especiais de R$ 200 de Memórias Póstumas de Brás Cubas acabaram em 12 horas. Os 900 de R$ 100, em três meses”, aponta Curi.

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em edição da Carambaia. Foto: Divulgação

Na loja virtual da n-1, a faixa de preço está entre R$ 5 e R$ 76, 50. Com o investimento mínimo, o leitor adquire um cordel da série Pandemia, vendida também em caixa, com uma dezena de outros cordéis, acompanhados ou não de adesivos. Clara Barzaghi indica que, até o momento, os cordéis da caixa LUTA foram os únicos disponibilizados virtualmente, por terem sidos escritos na urgência do período eleitoral. “Como uma tentativa de olhar para um fenômeno assombroso que se instaurou na política do país. Claro que foi uma situação muito pontual, mas foi um primeiro exercício do que pode se tornar uma prática mais comum da n-1, que é a publicação on-line de nossos livros”, estima Barzaghi, que também aponta despesas comuns na edição de qualquer livro: direitos autorais, revisores, tradutores, preparadores de textos, designers, além da impressão (preço de capa de um livro).

POLÍTICA, RESISTÊNCIA, EXISTÊNCIA
Quem lê Mala quadrada, cabeça quadrada se depara com a fragmentação do poder da palavra, imediatamente percebida por Patrícia Vasconcellos, que se desprendeu do protagonismo historicamente criado na figura do escritor e dividiu a autoria da folha de rosto com os designers Gabriela Araujo e Eduardo Souza, igualmente diagramadores e ilustradores da obra, respectivamente.

De modo que, para o trio, reconhecer o projeto gráfico, diagramação e ilustração de forma horizontal ao texto também tomou proporção política, em contraposição “ao verbocentrismo do mundo literário”, exprime Eduardo, posicionamento também compactuado por Gabriela Araujo: “diagramação, ilustração, o papel que foi impresso, o formato, tudo isso influencia na interpretação do leitor. E é isso que faz o livro ser um livro, sabe? Não depende só do texto”, explica a designer.

Em Físsil (2016), editado pela Cartonera da Zona, Universo em Controverso e Porta Aberta, os poetas Endresson Ribeiro, Wilemberg Gonçalves (ambos de Nazaré da Mata) e Philippe Wollney exploram questões sociais, econômicas e existenciais. Seja no colofão: “Este livro é composto enquanto o pó e a fuligem temperam o período do corte da cana. Entre incêndios e odores (…)”.

Físsil (2016) traz poemas e projeto gráfico que evocam o ato da violência. 
Foto: Breno Laprovítera/Divulgação


Seja nos versos de fúria, sob símbolos da Pedra do Ingá: “o verão por essas terras é uma boca de fumaça que anuncia a permanência da safra. você já acordou coberto de fuligem?”. Com poemas e projeto gráfico que trazem ou reencontram o ato da violência e até respondem com violência, completa o poeta, incorporados na costura em vermelho sangue, na arte canibal no verso da capa e na abertura do miolo em celofane vermelho e tecido verde, cujas marcas remetem ao ritual tupinambá, no qual se pintavam com manchas e traços, observa Wollney.

Perguntado sobre como a n-1 é capaz de fazer o múltiplo, o editor Peter Pál Pelbart observa que os livros que compõem o catálogo da editora, quando somados, formam um rizoma, “em linhas entrecruzadas e móveis”, sem começo, fim ou qualquer direção predefinida, ao passo que “a navegação aberta vai criando outras linhas, direções, explorando outras potencialidades do presente, do pensamento, da política, da clínica, das artes”, contextualiza.

Parafraseando Pelbart, que também é filósofo, ensaísta e tradutor, a editora, a n-1 contempla a multiplicidade ao abrir mão do centro, ou seja, do que estabelece domínio sobre um conjunto, e passa a investir em questões invisíveis à mídia e à academia, reinventando questões e problemas postos. Desse modo, Pelbart conecta cada publicação a uma sensibilidade, em vista dos movimentos minoritários. Por exemplo: A íntima utopia (2013), à psicose; O aracniano e outros textos (2015), aos autistas; Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural (2015), aos indígenas; Teoria King Kong (2016), ao feminismo; Testo junkie (2018), ao movimento LGBTQ; Crítica da razão negra (2018), à negritude, dentre outras obras e sensibilidades convocadas pelos livros-objeto da n-1 editora.

Sensibilidades também potencializadas no fazer poético da Castanha Mecânica. Na coletânea No entanto: dissonâncias – com capa serigrafada e bordas pintadas em spray na cor vermelha, organizada por Fred Caju – talvez se capture o fazer do artesão de livros e se assimile um pouco mais sobre esse objeto político para além do suporte que é o livro-objeto: “Acreditamos muito no livro como um vetor de transmissão de afeto e como uma arma de luta, por isso, na artesania de nossas edições, buscamos potencializar e reutilizar ao máximo os recursos empreendidos”.


No entanto: dissonâncias, da Castanha Mecânica,
a capa serigrafada e bordas pintadas em spray
na cor vermelha. Foto: Divulgação


Hoje, Caju define a sua lida como um ato de existência, e não de resistência. “Não estou em posição de defesa nem me vejo em subalternidade a nenhuma editora. Escolhi esse caminho, escolhi meu raio de alcance e meus lugares de afeto”, escreve o poeta. Assim, em sua superfície sensível, o códice incorpora vivências poéticas e se revela num livro-corpo: objeto sensível com potência artística e literária que se expande em e se conecta a outras vivências.

FERNANDA MAIAdesigner do Outros Críticos, mestre e doutoranda em Teoria Literária (UFPE), no qual desenvolve tese sobre o livro-corpo.

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