Portfólio

José Bezerra

O parteiro dos espíritos da caatinga

TEXTO E FOTOS TIAGO HENRIQUE

06 de Maio de 2019

Fotos Tiago Henrique

[conteúdo na íntegra | ed. 221 | maio de 2019]

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Aos poucos, com a convivência, a natureza se torna apreensível. De alguma maneira, há em nossos genes algo que ainda não se desligou dessa imensidão que, por teimosia, insiste em viver independente da nossa insistência em dizimá-la. Conforme imergimos e convivemos com ela, o caos e o medo se dissipam e nossos sentidos, livres da anestesia da urbe, ganham uma sensibilidade tal, que passamos a notar as nuances do vento muito antes de a chuva se aproximar, ou que a intensidade, a temperatura e a matiz da luz do sol e do céu mudam durante o ano. Que há variações quase imperceptíveis no canto dos pássaros, capazes de nos avisar se há predadores por perto. Essa vastidão passa a se comunicar, dizer as horas, apontar direções e até pede para morrer. Ou nascer. É isso que José Bezerra faz: “Eu não crio nada. Tudo está lá, pedindo para nascer. Eu só ajudo a virem para o mundo”, atesta.

É também aos poucos que nos habituamos com a fala rápida e embolada de Zé Bezerra, como é mais conhecido na região. A estatura baixa e a leveza com que anda lhe dão uma aparência frágil, muito embora tenha realizado atividades essencialmente braçais durante toda a vida, que lhe deixaram como saldo, além das cicatrizes, uma força e um rigor físico raros para uma pessoa prestes a completar 67 anos.

Ele possui raízes que remetem aos fulni-ô, etnia indígena guerreira do sertão, e caboclos cangaceiros como antepassados. Nasceu em Buíque, hoje uma cidade com pouco mais de 60 mil habitantes, a 300 quilômetros do Recife, no limite entre o agreste e o sertão de Pernambuco. Lá vive com a esposa e cinco filhos numa casa de taipa, cuja parede da entrada é adornada por figuras abstratas, pontilhadas com pedrinhas colhidas uma a uma na região mística do Parque Nacional do Vale do Catimbau, o segundo maior do país, onde se consagrou como um dos grandes mestres de arte popular do Nordeste, ao lado de Véio, Efrain de Almeida, Nino, Manoel Graciano e Manoel Santeiro, alguns artistas, entre tantos, que têm em comum a madeira como matéria-prima de suas obras.

No caso de José Bezerra, a madeira é a umburana, também conhecida com ambaurana, baru, cumaru-do-ceará, cumaru-das-caatingas, imburana-de-cheiro, entre outros nomes populares. A planta, nativa da caatinga, exala um cheiro suave de cumarina, levemente adocicado, e possui propriedades medicinais que podem ser úteis para combater problemas respiratórios. Chega a alcançar 10 metros de altura na mata fechada e sua madeira é considerada moderadamente pesada. É densa, mas macia, de coloração amarelada ou rosada uniforme, e superfície lustrosa, medianamente lisa ao tato. Embora seja resistente, é vulnerável ao ataque de cupins subterrâneos em períodos de estiagem. Quando isso acontece, seus galhos caem e, às vezes, até a árvore toda. Entretanto, nesse momento, não é morte que o artista enxerga, mas um ser pronto para vir ao mundo.



José Bezerra utiliza a madeira de umburana como matéria-prima para suas peças

Apesar do status que sua obra alcançou, e de suas peças já terem sido expostas em diversos estados brasileiros e países como Alemanha, França, Itália e Portugal, JB, como assina, prefere a simplicidade – que aqui passa longe de ser um eufemismo para pobreza – e não liga para definições a respeito de seu trabalho. Para ele, não importa o que falem. Continuará criando, pois esta foi uma imposição da natureza. Ordem direta de um espírito da mata que, há 17 anos, sussurrou-lhe, em um sonho, que vivesse dos troncos de umburana. A partir de então, tem se dedicado a trazer à tona figuras grotescas, bruscas, de formas opulentas e tamanhos que variam de acordo com o a criatura que está prestes a nascer. Obras que não cabem em juízos de valor, por transcenderem a matéria e a criação possível.

As peças, espalhadas no terreiro do seu sítio, imagem marcante que demora a sair da memória de quem o visita, têm vida e personalidades próprias. São seres que, muitas vezes, revisitam o passado do artista, ora em sua totalidade – como um ex-cangaceiro de mais ou menos um metro e meio que, segundo o artista, assistiu a seu parto –, ora em fragmentos, como a pata de um potro que um dia pertenceu a ele, ou o pé do seu bisavô, um rastejador – como eram chamados os homens que conheciam as matas e caçavam cangaceiros em Águas Belas, no agreste pernambucano. São animais outrora caçados, tornando-se hoje objetos de adoração. E, além dessas, há ainda aquelas obras que contam histórias que nunca saberemos se realmente aconteceram.

Por mais que a madeira seja uma matéria-prima recorrente entre escultores ao longo da história da arte, por apresentar propriedades e possibilidades específicas, com suas formas naturais e torções dos troncos, o trabalho de José Bezerra dá vida a formas mais puras e selvagens, extraindo do seu entorno o necessário para um ofício feito pelas mãos de um bricoleur, como se chama o faz-tudo na França.

Ferramentas que também marcam a personalidade do artista artesão: basicamente um formão velho e enferrujado, mas preciso e útil, fabricado artesanalmente. Uma grosa rude adaptada com um cabo de madeira feito ergonomicamente para sua mão direita, cujos dedos anelar e mínimo são entrevados devido a um acidente de trabalho, e um indiferente facão que o acompanha desde os tempos da roça. Para detalhes mais finos, quando a peça exige, usa pregos, gravetos, agulhas de crochê ou qualquer material que atenda à sua necessidade. Tem vezes em que a peça pede para ser montada em outra e, por isso, Zé já chegou a usar até tripas de bode, embora seja mais comum usar o couro. “Cada uma delas me diz como quer ser terminada”, conta. “Quando não tenho o material em casa, peço para alguém comprar, invento ou continuo procurando até encontrar.”

Ele também não costuma aceitar a imposição de clientes que encomendam sua obra. “Quando alguém me pede uma peça, ou eu peço para escolher das que estão aqui comigo, ou que me diga o tamanho e o que seria, uma beata, um animal, um homem, mas daí o resto é comigo. Eu tenho que sair e ver o que encontro, se a pessoa aceitar, tudo bem, se não, a gente tem que esperar a coisa aparecer.”

Atualmente, as esculturas de José Bezerra constam no catálogo da Galeria Estação, que possui um termo de uso de algumas de suas obras até 2021. Situado no Bairro de Pinheiros, zona oeste da capital paulista, o espaço foi inaugurado em 2004, por Vilma Eid e Roberto Eid Philipp, e possui um acervo farto, com obras de artistas de diferentes regiões do Brasil. A galeria foi responsável pela projeção nacional e internacional deste artista, promovendo exposições e exportando a obra que transformou aquele ponto do Vale do Catimbau em um polo turístico que beneficia não só seu público – uma média de 50 a 100 visitantes por mês, segundo a Associação de Guias Turístico do parque –, mas o próprio distrito onde mora, a Vila do Catimbau, ou Vila da Igrejinha, a uns 6 quilômetros do centro urbano de Buíque.

Em seu espaço, o mestre formou discípulos como Fábio Ramos e Luís Benício que, embora tenham sido introduzidos no mundo da arte por ele, hoje desenvolveram seus próprios estilos, combinando técnicas distintas, que também lhes proporcionaram destaque nos circuitos de arte do estado e do país. Ambos são vizinhos de Zé, assim como dona Mocinha, que mora bem em frente e, por influência do mestre, resolveu, aos 55 anos, se dedicar ao artesanato em madeira. “Eu não ensino” – disse-me ele, certa vez – “porque isso não se ensina, eu mostro o que eu faço…. E, como eu sinto, as pessoas começam a sentir também. Elas passam, ficam olhando eu trabalhando ali na tapera, eu vou falando, mostrando um olho, uma boca, uma pata e aí elas começam. Quando vem alguém aqui e me pergunta de onde vem a inspiração, eu digo que vem dos espíritos dessa caatinga”.

Embora o conceito de um sertão místico e ingênuo, cruel e violento tenha se fixado no imaginário coletivo brasileiro desde Canudos, seguido por representações de uma região do país caracterizada pela miséria, seca, cangaço, messianismo e lutas entre famílias, desde 2003, pelo menos, com a chegada de Lula à presidência da República, essa não é mais a regra para se definir o interior nordestino. Contudo, caminhar pelo terreiro de José Bezerra e observar aqueles seres enigmáticos nos dá a impressão de que esse é mesmo um lugar fantástico, capaz de nos reconectar com o que há de mais essencial em nossa relação com a natureza. Aquelas imagens imperfeitas – como o anagrama imperfeito que as palavras imagem e enigma formam – nos fazem refletir sobre o mundo por outro prisma. E podem aparentar ter significado só ali, assim como José Bezerra diz que só é quem é dali. Na verdade, conforme vamos nos habituando ao vento, aos pássaros e à mata, passamos a perceber que o parteiro José Bezerra e as criaturas que ajudou a trazer ao mundo estão ali de visita, celebrando a imensidão, esperando de nós apenas um pouco mais de consciência.

TIAGO HENRIQUE, fotojornalista e pesquisador paulistano nascido em 1987. Baseado entre o agreste e o sertão de Pernambuco desde 2014, dedica-se a documentar a vida de pessoas que detêm os conhecimentos e as técnicas necessárias para preservação da cultura popular e as transformações socioculturais do sertão contemporâneo.

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