contribua com o jornalismo de qualidade Só agora, ao organizar os primeiros pensamentos para escrever uma crônica sobre meus dois anos morando em Olinda – e à frente de um sebo –, lembro que faltou pouco, quase nada, para que eu já morasse na cidade desde 2000, quando voltei de uma temporada de seis anos em São Paulo.
Quem já morou em muitas casas sofre menos com os baques das mudanças, as perdas, o que ficou pra trás. O fato é que eu tinha encerrado meu ciclo em São Paulo, os tais créditos do mestrado tinham sido pagos, não tinha mais a bolsa e sobrevivia escrevendo uns relatos pornográficos barra-pesada, quando decidi voltar para meu Pernambuco velho.
Luzilá Gonçalves, amiga das antigas, moradora do Poço da Panela, fez seu périplo matinal e encontrou uma casinha linda, na Visconde de Araguaya, 51, vizinha à moradia das meninas do Cumadre Fulozinha.
“Arriscado tu casar com uma delas”, disse, mas deu errado. A dona da casa alugou para outra pessoa, pouco antes da minha chegada.
Cheguei, só de mala, a cuia dos meus livros vinha pela transportadora. Dei umas voltas por Olinda, achei uma casa linda, acho que era na Rua da Boa Hora, Rua da Aurora, vou caminhar. De novo, no bingo faltou uma pedra. Estava tudo certo, mas a dona da casa, não sei o motivo, deu pra trás, e fiquei sem Poço, sem Olinda, sem nada.
Me arranjei com o amigo André, na Rua dos Arcos, novamente o Poço da Panela me chamando. Depois meus livros chegaram num caminhão e fiquei morando numa casinha charmosa, atrás da casa principal, onde André vivia, e tinha um cachorro grandão, o Preto, que gostou de mim.
Um ano depois, num réveillon, uma amiga do Poço chegou no La Prensa (sim, já fui dono de bar) e disse que a casa da Visconde de Araguaya, 51, tinha desocupado. Teve o réveillon, mas nem me preocupei com os fogos e aquela esperança exagerada toda do dia 31, que nunca entendi direito. Às 8h5 da manhã do dia 1º de janeiro, estava caçando a dona da casa. Dona Jane foi lá, mostrou tudo, a casa era linda, tinha até quintal, é aqui que vou me arranchar, recomeçar a vida, pensei.
“Vamos ver lá em cima”, disse, e foi subindo uma escada em caracol que eu não tinha visto. O primeiro andar era imenso e com vista para o bar – o de Seu Vital, que eu já conhecia. Eu quase chorei.
O aluguel era R$ 400 – o equivalente a 13 relatos pornô, mas fingi que não tinha achado a casa essas coisas todas, igual quando vejo um livro do caralho em algum sebo, e ele custa R$ 10. Ela baixou para R$ 350 (11 relatos e meio). Como eu, era amiga de Luzilá, bastou um telefonema, que ela me deu a chave. Depois providenciaria o contrato. Peguei uma rede e já dormi o primeiro dia do ano lá.
Eu fui feliz feito um peste, nos seis anos ou sete que morei no Poço. Amigos de primeiríssima qualidade (Walter, Naná, Boy, Ninha, Seu Vital, Dona Severina, Spraite, Raimundinho, Duda a Milhão, Barrabás, Oswaldo Titio, enfim), pelada no campinho de Seu Abdias, aos domingos, fundei bloco de carnaval (Os Barba), ajudei a criar uma biblioteca comunitária, escrevi centenas de crônicas e publiquei dois livros em Seu Vital.
Foi uma longa jornada, até Olinda aparecer de novo em minha vida.
Depois do Poço, fui morar no Cabo de Santo Agostinho. Minha tia-avó, Flocely, estava com problemas de saúde, não tinha filhos, e eu podia ajudar. Tive que me mudar pra lá. O velho e bom Léo Antunes assumiu minha casa no Poço. Eu sempre me mudo, levo umas 330 caixas de livros e ainda fica uma biblioteca inteira.
A tia morreu, depois casei, morei na Rua da Aurora, onde fui imensamente feliz, depois veio a separação, então surgiu de novo aquela pergunta existencial – onde vou morar? A casinha do Poço tinha virado um restaurante, FUE, que depois fechou. Estava com uma parte do telhado no chão. Sem chance.
Uns meses antes, no meu blog Estuário, eu tinha escrito que um lugar que achava perfeito para morrer era num sebo. E há muitos anos eu tinha planos de ter um. Mas minha morte, decerto, causaria inúmeros transtornos ao dono do estabelecimento, além da queda de venda dos livros no dia – um cadáver dentro do seu comércio.
É uma coisa de um mau agouro terrível. O sebo de fulano dá azar. O cara não tinha nem 50 anos. Vôte. Vou mais lá não. Ele morreu com qual livro na mão?
A solução veio num tarô. Eu adoro misticismos em geral, menos aquele papo de inteligência emocional, aqueles gurus fajutos que a turma beija os pés deles e aquela doideira de ficar meditando duas horas, quando não nascemos no Himalaia.
A amiga Eunice já tinha me falado várias vezes que botava tarô, e eu nada. Todo mundo sabe que sou lento em muita coisa. Então, já separado e passando pelos meus maus bocados, e sem lugar para morar, marquei o tarô.
Foi um negócio doido. Era uma segunda-feira, e as cartas avisaram que minha vida passaria por um vendaval. Tudo se renovaria. Nada ficaria no lugar. Na terça, liguei para a amiga Chivi, que sempre circulava em Olinda.
– “Chivi, tu sabe onde tem uma casa para alugar, para eu botar meu sebo?”
– “Samarone, acabei de sair de uma casa azul. É linda, mas muito grande e fora de mão, para abrir minha padaria aqui não dá”, respondeu.
Na quarta, fui lá. O corretor, gente boa, me mostrou a casa. Eu quase choro quando vi a lindeza, os espaços, o silêncio. Ao contrário da casa do Poço, que a mulher me chamou para mostrar a parte de cima, o corretor me chamou para ver a parte de baixo.
Era um quintal imenso, maravilhoso. O único problema é que eu não tinha dinheiro para o primeiro aluguel. Ele apareceu, misteriosamente, nessas engenharias secretas do destino. A dona da casa, por sinal, me conhecia. No sábado, ela chegou com o contrato, as chaves e o corretor. Quando eles saíram, entrei na casa sozinho e comecei a caminhar lentamente pela casa, pedindo licença para viver ali. Tive a intuição de que aqui seria muito feliz, na casa e na cidade.
No dia seguinte, cheguei como morador. Trazia vassoura, pá, saco de lixo, aquelas coisas todas. Era dia 12 de março de 2017, aniversário de Olinda. Foram 17 anos, desde o primeiro namoro com a cidade, naquele distante 2000.
Uma semana depois, chegou uma gatinha e resolveu ficar comigo. Se chama Isabelitta. É linda, manhosa, adora literatura e música clássica.
Dia 7 de abril, abri o Sebo Casa Azul. Os amigos chegaram, os poetas chegaram, os artistas chegaram. Outro dia, celebramos dois anos.
Já posso morrer num sebo, mas não estou com nenhuma pressa.
SAMARONE LIMA, jornalista e escritor, autor de livros como Viagem ao crepúsculo e O aquário desenterrado, mantém o blog Estuário.