Não é de se estranhar que o lançamento e a divulgação dos livros O irmão e O banquete de Psique, do analista jungiano Gustavo Barcellos, tenham acontecido quase ao mesmo tempo. Apesar de cada publicação ter objetos de interesse muito específicos, existe um diálogo possível e importante de ser estabelecido entre cozinha, alma e arquétipo fraterno. Esse é um assunto abordado, inclusive, no capítulo Cocção final, no qual afirma que o alimento é o agente civilizatório por excelência. É Câmara Cascudo quem escreve que “de todos os atos naturais, o alimentar-se foi o único que o homem cercou de cerimonial e transformou lentamente em expressão de sociabilidade”. Por isso, como pontua Barcellos, há muitas representações e experiências do arquétipo fraterno envolvendo esse ato natural. Cita-se o simpósio grego, o banquete romano, a tertúlia espanhola e a quermesse flamenga.
O escritor paulista, fundador dos Cadernos jungianos, é conhecido por sua atuação e importância na difusão da psicologia arquetípica no Brasil, sendo o principal tradutor da obra de James Hillman para o português. No livro O banquete de Psique, assunto desta conversa concedida à Continente, faz um apanhado referente à imaginação da comida, passando não só pelas questões ritualísticas, mas também pelas metáforas digestivas – aliás, há todo um léxico partilhado com o divã: “engasgar”, “engolir”, “digerir” –, pelos modos de preparo, pela simbologia dos temperos e pela alquimia do açúcar. Não se trata, no entanto, de um livro endereçado apenas aos especialistas, mas de um convite à reflexão da alimentação na chave arquetípica, observando imagens e comportamentos relacionados a ela.
Diferentemente da História ou da Antropologia, esse ainda é um assunto pouco expressivo entre estudiosos da Psicologia, por isso, muitas vezes, as referências para essa reflexão são de outros campos de saberes. No meio estritamente psicológico, o interesse recai sobre a dimensão patológica da alimentação, mas pouco se pesquisa ou se escreve sobre a sua dimensão imagética e imaginativa. “A psicologia, de modo geral, se concentrou muito naquilo que é chamado de transtorno alimentar, ou seja, quando a coisa dá errado. Mas, e quando a coisa dá certo?”, questiona Barcellos. Nesta entrevista, o analista comentou alguns conceitos que desenvolve em O banquete de Psique, livro que funciona como uma introdução bastante fluida a diferentes abordagens e caminhos possíveis para se pensar essa questão.
CONTINENTEDo que se trata o conceito de “imaginação da comida”? GUSTAVO BARCELLOS Eu parto do princípio de que alimentar-se, fazer comida e consumir alimentos talvez seja, principalmente, uma atividade que convoca à imaginação. Há imagens tanto nos procedimentos de se fazer comida como nos produtos que nós comemos. Esses produtos não só convidam e provocam a imaginação, mas são frutos dela. Então, a imaginação também perpassa, como acontece com todas as atividades humanas, todo o capítulo da alimentação, da gastronomia, da culinária, desde os pratos mais simples até os pratos da chamada alta cozinha. Há um nível em que o ato de se alimentar é um ato simbólico, antropológico, cultural, além de ser um ato físico e biológico. Ele é, também, um ato da imaginação e, consequentemente, um ato psicológico. Eu tento fazer um livro de psicologia da imaginação culinária, que não é sobre os famosos transtornos alimentares, porque a psicologia, de modo geral, se concentrou muito naquilo que é chamado de transtorno alimentar, ou seja, quando a coisa dá errado. Mas, e quando a coisa dá certo?