Portfólio

Eudes Mota

Um artista entre duas tradições

TEXTO Mariana Oliveira

01 de Novembro de 2018

Na série 'Gráficos', algumas obras exploram elementos dos jogos de tabuleiro

Na série 'Gráficos', algumas obras exploram elementos dos jogos de tabuleiro

Imagem Reprodução

[conteúdo exclusivo para assinantes | ed. 215 | novembro de 2018]

Algumas correntes da arte abstrata, como o Construtivismo, o Suprematismo e o Neoplasticismo – surgidas nos primeiros anos do século XX – encontraram na simplicidade das formas geométricas e no rigor matemático um caminho a ser seguindo. Também, já nesse início de século, Marcel Duchamp dava um passo na busca por uma arte mais conceitual, repensando o objeto artístico, vendo a arte como um conceito. Um urinol virou obra, anos depois; uma lata de sopa Campbell virou ícone da pop art pelas mãos de Andy Warhol. Mesmo sendo completamente diferentes, pregando ideias díspares, ambas as tradições artísticas colocavam em xeque a pintura em sua versão mais tradicional.

Homenagem a Mondrian, obra da série Cruzada. Imagem: Reprodução

É justamente num lugar de diálogo entre esses dois discursos que se situa a poética do artista pernambucano Eudes Mota. “Embora seja evidente que a pintura contemporânea tenha sobrevivido aos discursos apocalípticos e teleológicos das vanguardas modernas, são poucos os pintores que, como Eudes Mota, refletem sobre esse anunciado fim – sempre aliado a um futuro incerto – de modo crítico, valendo-se dos procedimentos básicos que definem o meio e, incorporando, simultaneamente, assuntos e ações que põem à prova sua continuada pertinência. Em trabalhos da série Gráficos, o artista traduz anotações da vida ordinária (mudanças de fase da lua, táticas usadas em jogos de futebol) para o campo codificado da tradição geométrica da pintura”, escreveu o crítico Moacir dos Anjos, em texto da exposição realizada pelo artista no Mamam, em 2005.

A geometria que encanta Eudes está nas ruas, na marcação de vagas de estacionamento no chão, nas palavras-cruzadas, nos códigos de barra, nos moldes de costura, nos classificados dos jornais, nos jogos de tabuleiro. Observando esses elementos do cotidiano, o artista transporta-os para o espaço da tela, da moldura, da pintura, do objeto, da escultura, reinventado-os, dando novos sentidos a esses signos. “Em Cruzada gravada, trabalho em água forte, em número de 10, o trabalho de Eudes novamente une o rigor plástico de Mondrian ao espírito da pop art de resgatar do cotidiano signos banalizados”, descreveu o professor e pesquisador Anco Márcio Tenório, que também atribuiu a Eudes um olhar de lince. Aquele olhar poderoso, que enxerga além da normalidade, que, ao olhar um simples maço de cigarros, centra-se nos códigos de barras ali grafados.



Eudes Mota criou uma série de trabalhos que utiliza os moldes de costura como base. Imagem: Reprodução


O uso da folha de ouro foi uma influência de Antonio Dias. Imagem: Reprodução

“Foi na década de 1990 que eu me deparei pela primeira vez com um código de barra. Aquela geometria me encantou e eu terminei trazendo essa referência para uma série de trabalhos”, relembra o artista. O mesmo ocorreu com os moldes de costura que o artista descobriu numa visita a uma irmã que costumava costurar. Não foi diferente com as palavras-cruzadas – que habitam diariamente os jornais impressos e inundam as páginas de revistas voltadas exclusivamente para a publicação desse passatempo – que deram origem uma vasta série intitulada Cruzada. Nos trabalhos, estão a métrica e a precisão de cada quadrado grafado. Em alguns, não há mais nada, apenas a alternância dos quadrados em duas cores selecionadas pelo artista, em referência clara aos trabalhos de Mondrian. Em outros, números e letras se misturam à geometria. A pureza das formas e das cores nos remete a uma visão da arte que se basta em si mesma, entretanto as referências ao cotidiano, aos objetos banais, estão também estampadas ali.

Apesar de ter na tela, na arte bidimensional, um de seus espaços de referência, o artista se dedica também a trabalhos tridimensionais, objetos que ele constrói, esses também inspirados no mundo, na vida, nas ruas. A madeira é sua matéria-prima. “Quando descobri a madeira mais antiga, sua textura, comecei a fazer pequenas peças, depois fui aprendendo a manusear as ferramentas para trabalhar com ela e passei também a construir peças grandes. Madeira, tela, passei a diversificar, esculpia, pintava”, conta. Da relação com essa matéria-prima, surgiram séries importantes como Portas, na qual ele utilizava portas antigas do casario recifense. Na sequência veio a série Bandeiras, feita a partir das bandeiras de ventilação que existiam sobre essas portas.

Entre os trabalhos de grande dimensão em madeira, estão as cadeiras confessionais. Imagem: Reprodução

“Tínhamos uma casa em Itamaracá e decidimos visitar Vila Velha, localidade na ilha onde existe uma igreja bem antiga. Chegando lá, Eudes ficou paralisado diante de duas cadeiras confessionais do início da colonização no Brasil. E foi dali que veio a inspiração para outra série em madeira, que são as cadeiras confessionais produzidas por ele até hoje”, relembra a esposa do artista Lua Mota. As cadeiras confessionais grandes ganharam versões menores. Foi na madeira também que Eudes encontrou espaço para criar seus pequenos objetos, que trazem referências de sua infância, escapulários, palmatórias, brinquedos, rifas, além das assemblages que trazem para as telas pedaços do material.

As palmatórias, hoje recriadas pelas mãos do artista, foram uma constante na sua infância. Eudes, assim como os irmãos, possui uma deficiência auditiva genética. Já aos quatro anos, sentia os primeiros sinais da perda da audição e chegava a apanhar com a palmatória na escola, onde nem todos sabiam que não escutava.

Foi o isolamento trazido pela dificuldade de escutar que levou Eudes à arte. “Minha perda auditiva me isolava socialmente e terminou me levando ao universo da arte, esse espaço mais silencioso. Para mim, a arte é um ato solitário.” Em 1962, aos 11 anos, passou a frequentar a Escolinha de Arte do Recife. No seu trajeto, saindo de casa, em Campo Grande, descia na Avenida Rosa e Silva e seguia andando para a Rua do Cupim. Passava por duas belas casas modernistas da via – atualmente demolidas – das quais se tornou arguto observador, sobretudo da sua arquitetura e dos painéis em azulejos de Augusto Reynaldo das varandas, que lhe chamavam a atenção pela abstração e geometria. Na Escola de Arte, foi aluno de Thereza Carmem, depois foi aprender técnica em óleo com Aura Lima Barros, que havia sido aluna de Teles Júnior. Nesse momento inicial, dedicou-se à pintura figurativa, pintou uma natureza-morta e participou da sua primeira exposição coletiva, em 1965. Chegou o tempo de fazer as malas e viajar para o Rio e São Paulo, visitando galerias, museus e exposições e mergulhando de vez na arte.

VICENTE
Ainda aos 12 anos, conheceu aquele que seria uma das grandes referências na sua carreira, o pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro, pioneiro no modernismo brasileiro. Eudes recorda que, em uma reportagem de jornal, o já consagrado artista chamava a atenção para um jovem promissor: Eudes Mota. “Conheci Vicente muito jovem, numa coletiva de pintores pernambucanos. Ele me influenciou demais, assim como influenciou toda uma geração.” Outro artista que teve influência no seu trabalho foi Antonio Dias. “A simplicidade geométrica dele, que me fascinou, e o uso da folha de ouro, uma técnica que uso muito até hoje, são referências que vieram desse grande artista”, conta.

Atualmente, Eudes segue produzindo com o mesmo vigor. Vai ao ateliê, nas Graças, todos os dias, de domingo a domingo, muitas vezes de bicicleta, mantendo o antigo hábito de pedalar. As suas formas geométricas seguem perfeitas, apesar do diagnóstico de Mal de Parkinson, que surpreendeu o artista em 2009. Em tratamento desde então, vive dias melhores e outros, piores. A doença limita profundamente a ação das suas mãos, paralisando-as, “deixando-o congelado, às vezes”, como descreve Lua Mota. Surpreende a disposição do artista em seguir sua rotina diária, numa obstinação comovente, própria dos verdadeiros artistas.


Encantado com a geometria dos códigos de barras, Eudes deu novos significados a eles em suas telas. Imagens: Reprodução

Na busca pela melhora da qualidade de vida e controle de alguns sintomas, Eudes realizou em outubro uma cirurgia neurológica, a segunda desde a chegada da doença. Até aí, a arte se fez presente. A esposa e os amigos se uniram para promover um leilão, no final de setembro, que pudesse garantir a realização do procedimento. Em pouco mais de duas semanas, numa enorme mobilização, foram reunidos trabalho de cerca de 70 artistas, estreantes e consagrados (entre eles Lorane Barreto, Renato Vale, José Patrício, Márcio Almeida, Marcelo Silveira, Reinaldo Fonseca, Paulo Bruscky, Thyna Cunha, José Paulo, Jeims Duarte, Amanda Melo), cuja venda teve 70% do valor revertido para custear a cirurgia.

O artista segue em recuperação, mas em breve deve voltar à sua dinâmica diária de trabalho, indo ao seu ateliê diariamente, retirando os aparelhos auditivos, e, ali, em seu mundo particular, no silêncio, vivendo o seu ato solitário, a arte.

MARIANA OLIVEIRA, jornalista, editora-assistente da Continente.

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