– Epa!
Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os peitos contra o guidão, se enverga, equilibra a sacola na bicicleta e corta de fininho o cais. Vai que vai embora. Está quase sozinho com as luzes no comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O menino mais o seu calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua campainha, trim-trim nas esquinas que atravessa.
Cinco da manhã. As vassouras de piaçava correm nas mãos dos dois garçãos, peitos de fora, calças arregaçadas, tamancos. Batem, esfregam o chão da calçada do Bar Café Restaurante Chave de Ouro.
A cidade, os prédios e os morros dormem de todo. Cais não dorme. Não se apaga. Lá pelos cantões, um que outro olho aceso fica no rabo da manhã. E fica.
Ao ler o texto antes de ir para o copidesque da revista, o colega de redação Woile Guimarães deixou um bilhete sobre ele:
João Antônio
Cabei de ler o cais, sô. Nada de embromação, só coisa linda de doer escriturada por lá. Puxa vida, deu uma vontade lôca de te abraçar e saber escrever desse jeito bonito assim.
Guima – 15-8-68
Poético demais para a reportagem, verídico demais para a ficção. O cais, esse espaço que já não é terra e ainda não é mar, um entrelugar que também é um não lugar, como propôs Marc Augé, espaço de fluxo de pessoas, trabalhadores e mercadorias, com códigos próprios de tradução e convivência. Um entrelugar contado por um entregênero, o conto-reportagem. E João Antônio, um que outro olho aceso no rabo da manhã, a escrever sobre sua alegria aos amigos.
Professora e poeta premiada, Ilka era uma amiga de longa data. Foi ela quem ajudou João Antônio a reescrever Malagueta, Perus e Bacanaço de cor, depois que um incêndio na casa dos pais de João destruiu os originais. Só restaram alguns trechos transcritos em cartas para Ilka. Tragédia que quase pôs tudo a perder, e tudo era muito: Malagueta, Perus e Bacanaço, a estreia literária de João Antônio, em 1963, quando tinha apenas 26 anos. Reescrito no desespero, levou de cara dois prêmios Jabuti, um feito inédito na literatura brasileira até então. Fazia todo sentido que fosse ela a “terceira pessoa a saber” que o autor daquele conto se preparava para ingressar de vez na carreira de escritor.
Logo depois de Um dia no cais, empolgado com a nova função, mas agitado com aquele 1968, ocorreu a João uma história sobre um sujeito comum que entrava para a luta armada. Deixava para trás a contemplação quase idílica à beira do porto e mergulhava no conflito. Pulou de cabeça na transição de Júlio, seu novo personagem, que carrega o amigo de trabalho Jonas para o front. E de repente se punha a falar de aparelhos, armas, ataques. Nascia o conto Dia de bomba, que jamais chegou a ser publicado, e só foi revelado em 2017, durante um seminário na USP que celebrava os 80 anos de nascimento de João Antônio. Júlio também é o nome do pesquisador da UFSCar que encontrou o texto inédito.
Dividido em 10 dias, tempo em que Jonas decide jogar uma bomba no meio de uma ação tática contra os militares, o conto é um achado que enriquece ainda mais a fortuna crítica do escritor. Justamente por ser a primeira vez que João Antônio leva seus merdunchos às vinhas da ira.
Júlio tem amigos como ele, que vou conhecendo aos poucos, nos nossos encontros, nos botequins, na casa de um, de outro. Parecem muito comuns por fora, mas são finos por dentro. Um pessoal que vive com ideias impertinentes, além de muitas ocupações depois do trabalho. É um tal de fazer curso, discutir isso e aquilo. E me parecem importantes. Alguns conhecem até países estrangeiros. Claro que não entendo muitos assuntos que eles conversam, principalmente certas palavras. Mas num ponto estou de acordo e eles me são muito agradáveis – a vida precisa melhorar.
E já que os graúdos não fazem nada, alguém dos miúdos, como eu e os outros, deveríamos nos mexer.
Quarto dia.
Hoje é sábado, não há expediente lá no escritório e eu pulei mais cedo. Quando a mulher me perguntou se eu não ia ajudar a fazer a feira, fui dizendo que estava comprometido com campeonato de malha. Mas me levantei e fui para a estrada onde o Júlio me esperava com o volks. Almocei e conheci o sítio deles, onde costumam se encontrar aos sábados e domingos, a turma reunida. E não são poucos. Há pessoas de diversos padrões, uns têm carro, outros não. Mas nas opiniões e nas ideias, está todo mundo de acordo. Pessoal calmo, estranho, muito diferente dos que conheço por aí, que quando falam em política e governo é para malhar, malhar e ficar por isso mesmo. Havia uns trinta sujeitos, todos com a cabeça no lugar, do tipo de Júlio. Mas ele me garantiu que, no todo, eram muito mais de trinta. O grupo, espalhado por todos os cantos da cidade, já anda beirando as quinhentas pessoas. E rematou, me cutucando:
‒ E você, Jonas, já é um dos nossos.
O tema lhe era muito estranho: em toda sua obra – desde a estreia, em 1963, com Malagueta… até o último livro editado, a coleção de perfis culturais Dama do encantado, de 1996 –, nunca havia usado a ficção para o enfrentamento político. Talvez, se tivesse tido tempo para pôr em prática a chance de só escrever contos na revista Realidade, João Antônio não teria desistido da ficção por tantos anos, como fez, até 1975, quando finalmente publicou seu segundo livro, Leão de chácara.
“O conto estava numa caixa com outros textos datiloscritos do escritor, nada que chamasse a atenção. Achei que fosse alguma matéria para jornal. Daí me deparei com o conto, escrito em papel de pauta da Editora Abril. Muito possivelmente, o conto não saiu por conta da situação política. A última reportagem assinada por ele na Realidade foi O pequeno prêmio, sobre as corridas de trote em São Paulo. Em dezembro de 1968, mês do AI-5. A equipe foi, como se sabe, dissolvida depois do ato”, comentou Julio Cezar Bastoni da Silva, pesquisador da UFSCar que encontrou o material inédito, na ocasião da descoberta.
Arquivo Cedap/Unesp
TERCEIRA CARTA
Se as cartas de junho tinham esperanças de braços erguidos, as que escreveu à Ilka, posteriores ao AI-5, são de profundo desalento. A vontade de deixar São Paulo e voltar ao Rio é o ímpeto que sobra. Em 19 de dezembro de 1968, diz ele:
Suas cartas. Sua carta, agora de 8 de dezembro, teve, como muitas outras e outras cartas suas, o poder de me tirar do marasmo, do choque. E desanuviar, bastante mais do que posso, a perspectiva sombria, ou antes, a inteira falta de perspectiva que está jogada sobre mim. Pesam sobre mim, agora claramente, responsabilidades outras, fundas, irredutíveis. Um homem como eu não pode deixar de se sentir profundamente amargurado num fim de ano como este, depois do governo deste país desfechar algo chamado Quinto Ato Institucional.
Nesta São Paulo apressada, das mil complicações industriais e dos seiscentos e não-sei-quantos problemas, inevitável é a indiferença com que o povo recebe uma medida do tamanho (do) país, um retrocesso de alguns decênios, um desastre total.
Mas eu não posso ficar indiferente. Com amigos na cadeia, com a peia, com a amarra, o tacão da censura oficial sobre tudo o que daqui pra frente redigirei (o verbo é certo, que escrever, para mim, é outra coisa).
Não estou exatamente revoltado. Estou é triste, amargurado, sem motivações, uma vontade desmaiada de xingar.
Não posso terminar bem um ano, quando sei claramente que o que vem aí será pior.
“Uma vontade desmaiada de xingar.” O AI-5 era uma bigorna: “o tacão da censura oficial sobre tudo o que daqui pra frente redigirei”, “que escrever, para mim, é outra coisa”. Mesmo sem que ele mencionasse, agora se sabe que o conto Dia de bomba já estava interditado na gaveta, um prenúncio dos dias que viriam.
QUARTA CARTA
Em 3 de fevereiro de 1969, João manda outra carta-bomba à Ilka:
Atravesso fase péssima, minha amiga. Sobrecarregado de problemas, probleminhas e problemões. Vivo meio tonto. E, falando claro, caí numa maré de má-sorte.
Vivo uma época difícil, em que viver, no mundo todo, deve implicar um ato que angustia, atemoriza, acovarda. Há um clima de negatividade no ar, com esperanças de braços caídos, atmosferas negras.
(…)
Não adianta sentir nojo das corriolas que mandam na imprensa de São Paulo. Eles estão com a bola branca, como diria um jogador de sinuca. E matarão a minha bola, no momento mais estratégico do jogo. Aí, a partida acaba e eles ganharam. São muitos, de muitos lados, e estão dispostos a qualquer tipo de joguinho ladrão.
Mas lutarei com as armas que tenho. E, minha amiga, ainda quero fazer algo tão independente, que deixará toda essa gente sem me entender.
E não farei para espantar ninguém.
Lembra-se, há alguns anos, quando lhe disse, que havia o momento em que o escritor tinha de voltar as costas à literatura? Faz muitos anos, minha amiga.
Parece-me que é chegada a minha vez de abandonar quase tudo. Viver outra vida. Atirar-me de cabeça a outra coisa. Como no tango de Discépolo, amiga, ‘saberás que tudo é mentira, saberás que nada é amor; gira, gira’.
(…)
Não posso viver como o grande texto, o excelente repórter, o ótimo redator, um dos maiores contistas nacionais. Já não sou criança e já não estou em tempos de cigarra cantadeira.
A esperança de braços caídos.
Naquela quarta carta, João abdica da carreira de escritor e anuncia o longo inverno da “cigarra cantadeira”. Até 1975, não publicaria mais nenhuma ficção, só reportagens, tão fartas e em tantos veículos, que até hoje seus pesquisadores penam para mapeá-las. João adorava o Rio, mas voltar àquela época era assumir uma derrota imensa, que cobraria seu preço.
Ilustração: Luísa Vasconcelos
QUINTA CARTA
Dois meses depois e já escrevia de Copacabana:
Dizia eu do meu desânimo. E não quero repeti-la, embora, pelo jeito, ela tenha se perdido.
Deixa pra lá. Um desesperado, silente, irremediável deixa pra lá. À carioca, sabe?
Bem. Assumo a vida. Assim mesmo. Frustradora, não fazendo graça ninguém. Que fazer? Eu sou um homem. Assumo a vida. Se eu fosse mais homem, muito mais, ah. Então, assumiria mais que o sustento e os destinos de meu filho. Assumiria o País todo, o Continente, como Ernesto Guevara. O único total, Homem.
Quero escrever-lhe pouco, pouco. Reclamismo não interessa, não é de fé.
A vida vai. Meu filho fez dois anos hoje, 4 de abril. Forte, inteligente. Minha mulher está bem. Eles me dão muito.
Faz quinze dias que funciono profissionalmente no Rio. Largo, outra vez, esta cidade. Fui contratado por Manchete. Minha aventura na Editora Abril teve fim. Mudarei logo. Estou lá e minha família aqui; estou tomando pé para me mudar.
Não quero fazer juízo apriorístico, já não sou criança e nem me sinto um rapaz. Mas eu insisti, até onde um homem como eu pode insistir, eu insisti. Mais, seria teimosia. São Paulo não deu pé. Ponto.
“Ponto.”
As cinco cartas trocadas com Ilka naquele período ajudam a entender essa virada da sua trajetória – a alegria interrompida, o exercício da ficção de forma livresca, que voltava às amarras do jornalismo. Uma virada que pode ter acionado o ressentimento que ele demonstraria até o fim da vida.
“Esse período de pouco menos de um ano na trajetória de João Antônio é crucial. Além de explicar a falta de publicações até 1975, define seu percurso posterior, tanto pela questão da profissionalização do escritor, que ele sempre lamentou não ser possível no país, como explora em Abraçado ao meu rancor, quanto por mostrar a verdadeira conexão que ele teve de fazer, obrigatoriamente, entre literatura e jornalismo, que nunca deixaria de acompanhar sua obra”, analisa Júlio, que trabalha com as cartas de João em seu pós-doc.
Naquele fevereiro escaldante de 1969, quando montava casa em Copacabana, João Antônio voltaria ao ramerrame do jornalismo diário, seguindo um calendário político que o açodaria a ponto de provocar uma internação forçada no Sanatório da Muda, na Zona Norte do Rio, em 1970 (e que lhe renderia outros feixes de cartas).
Quase 50 anos depois, o conto seria encontrado. João Antônio também: no mesmo seminário que celebrava seus 80 anos, na USP, em outubro de 2017, jovens participantes anunciavam a edição tardia de uma biografia, um documentário sobre o período em que o autor viveu no Paraná e novas edições de sua obra, incluindo, finalmente, Um dia de bomba.
MARIANA FILGUEIRAS é jornalista carioca, mestranda em Letras, no qual pesquisa a obra de João Antônio.