FOTOS WAGNER RAMOS
01 de Setembro de 2018
Integrantes do Mesa Coletiva
Foto Wagner Ramos
[conteúdo na íntegra (desgustação) | ed. 213 | setembro 2018]
Não nos sentamos à mesa para comer, mas para comer juntos. A frase do filósofo grego Plutarco é um bom resumo da ideia da sociabilidade à mesa, onde sentamos não apenas para recarregar as energias, mas também para reafirmar os laços que nos unem com quem está à nossa volta. Mas o que acontece quando esse compartilhamento se expande da mesa à cozinha? É o que acontece no Mesa Coletiva, projeto de cinco jovens cozinheiros pernambucanos que busca repensar a relação com os ingredientes, os produtores e as tradições, com foco no fazer artesanal.
“Nós tínhamos o mesmo discurso”, afirma Gi Nacarato, que trabalha no restaurante Quina do Futuro e compõe o coletivo junto com Thiago das Chagas (Retetéu e São Pedro), Yuri Machado (Cá-Já), Vinícius Arruda (O Mundo Lá de Casa) e Danillo Coêlho (Pousada Patacho). O primeiro passo foi realizar uma expedição pelo interior de Pernambuco para ir atrás dos produtores e buscar parceiros em todas as etapas da cadeia de produção. “A inovação sem tradição é vazia, é preciso entender de onde a gente veio”, explica Gi, para quem cozinhar é um ato político.
Thiago já fazia parte do Projeto Sapoti, voltado para pensar a cozinha brasileira, com a professora Lourdes Barbosa, do Departamento de Hotelaria e Turismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A ação de extensão incluiu visitas às marisqueiras de Tejucupapo, em Goiana (PE), e às doceiras de passa de caju de Vila Velha, em Itamaracá (PE). “São essas mulheres que detêm o conhecimento”, afirma. Para ele, é impossível fazer cozinha boa sem ingredientes frescos e a ação colaborativa tem esse fim. “Pernambuco é referência na cultura em várias áreas, mas a cozinha ainda caminha a passos lentos”, opina.
Para bancar as viagens pelo interior do estado, o grupo começou a promover eventos como um jantar de cinco etapas, realizado no ano passado, todo embasado em uma pesquisa sobre a mandioca: biscoito de polvilho com manteiga de alho e requeijão de corte como couvert, pirão de queijo coalho com pão-recife gratinado como entrada, bolinho de macaxeira feito no dendê com bobó de pitu como primeiro prato, cabrito atolado no tucupi como segundo prato e semifrio de macaxeira com nata como sobremesa. A assinatura das preparações, que buscam extrair todo o potencial dos insumos, é coletiva.
Em uma das viagens, o grupo foi à casa de farinha de Seu Davi, em Chã da Alegria (PE), na Zona da Mata, e encontrou a produção parada por causa da concorrência. Segundo os trabalhadores, não é possível competir com a farinha que chega do Paraná, com preços muitos baixos. “Eles precisam de alguém para falar que aquilo é importante”, afirma Yuri, que destaca a relevância de o cozinheiro saber como o ingrediente nasce. “O estudo da tradição é a gente se reencontrando com a gente mesmo”, defende. Esse diálogo, segundo ele, já faz aparecerem nas feiras orgânicas vegetais pouco conhecidos, como a beldroega.
No caso de Danillo, houve mais uma descoberta do que uma redescoberta, já que o pernambucano morava em São Paulo desde pequeno. “Continua sendo uma descoberta constante”, diz. “A gente não se encaixa, então tenta fazer diferente.” Um dos desafios encontrados pelo grupo é conseguir manter a frequência dos encontros mesmo com o cansaço depois de um dia de trabalho nos restaurantes, que tem mais de braçal do que glamouroso. “É preciso ter disponibilidade de ir além da cozinha, apesar do trabalho exaustivo. A recompensa não é monetária”, opina Gi.
Outras ações foram um evento ocupando o espaço público do Jardim do Baobá, nas Graças, e uma oficina de plantas alimentícias não convencionais (pancs). Além das pesquisas sobre ingredientes, o Mesa Coletiva sonha em criar uma escola de cozinha nordestina para democratizar o ensino da gastronomia – eles já têm uma parceria com a organização não governamental Comunidade dos Pequenos Profetas, que atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. “O mote principal do coletivo é a inclusão em todos os aspectos. Ficou limitado focar apenas nos produtores”, afirma Thiago.
Fazer com que os jovens se enxerguem de forma mais humanizada é um dos pontos positivos dessa parceria para Gi. Isso passa por rever conceitos: comer de colher ou gostar de xerém pode deixar de ser algo estigmatizado para virar memória afetiva positiva. “A cozinha transforma cada um de uma maneira”, lembra. “Por incrível que pareça, hoje, a cozinha precisa de pessoas que gostem de cozinhar”, define. Cabe lembrar que o grupo não é fechado a novos integrantes. “Um dia, o coletivo poderá ter 100 cozinheiros e um impacto muito maior”, espera Yuri.
COMIDA HONESTA
O discurso do Mesa Coletiva se concretiza na prática cotidiana de cada uma das casas dos seus integrantes, que costumam ter fila de espera à porta. O que esses representantes da nova gastronomia pernambucana têm em comum não só na postura, mas também no prato? Eles fazem comida pernambucana, brasileira ou internacional? Contemporânea, tradicional ou autoral? Ou um pouco de cada? A cozinha pode ser difícil de caber em caixinhas, mas talvez “comida honesta” seja o único rótulo com o qual todos se identificam.
Pratos do restaurante Cá-Já
Voltar um pouco no tempo ajuda a entender o que está por trás do conceito. Durante uma temporada de quatro anos trabalhando em restaurantes em Portugal, Thiago também concluiu um mestrado em Segurança e Qualidade Alimentar na Restauração na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Defendida em 2012, a dissertação continha um estudo de viabilidade de um restaurante de cozinha brasileira com foco na sustentabilidade e nos preceitos do movimento slow food. Não foi acaso, Thiago havia sido fundador do convívio (grupo local) recifense do slow food em 2005.
Fundado na Itália em 1986, o movimento “segue o conceito da ecogastronomia, reconhecendo as fortes conexões entre o prato e o planeta”, segundo seu site. O alimento deve ser bom, limpo e justo, ou seja, deve primar pelo sabor, não prejudicar a saúde nem o ecossistema e conceder remuneração justa aos produtores. Em relação ao ingrediente bom, o manifesto diz que “o sabor e aroma do alimento, reconhecido por sentidos educados e bem-treinados, é fruto da competência do produtor e da escolha de matérias-primas e métodos de produção, que não devem de maneira nenhuma alterar sua naturalidade”.
Quanto à limpeza, o movimento defende que “cada estágio da cadeia de produção agroindustrial, incluindo o consumo, deve proteger os ecossistemas e a biodiversidade, salvaguardando a saúde do consumidor e do produtor”. O alimento justo completa a tríade: “A justiça social deve ser buscada através da criação de condições de trabalho respeitosas ao homem e aos seus direitos e deve ser capaz de gerar remuneração adequada; através da busca de economias globais equilibradas; pela prática da simpatia e solidariedade; pelo respeito às diversidades culturais e tradições”.
Cabe aos convívios articular a relação com os produtores e estimular os chefs a usar alimentos locais, comportamento que se alinha com a noção descrita no cardápio do Retetéu Comida Honesta, que leva o conceito até no nome: “Comida honesta é aquela que já foi mais que testada e aprovada por gerações, que pode ser compartilhada, proveniente geralmente de pequenos produtores, vendida a um preço justo e que, por acaso, está sendo servida no Recife, mas que não vem com rótulos. O importante é sentar-se à mesa diante de uma farta refeição, em boa companhia e deliciar-se”.
Thiago abriu o Retetéu em 2014, como delivery de congelados prontos para comer com “sabor caseiro de verdade, sem corantes nem conservantes”, segundo a descrição da embalagem. Em 2015, virou restaurante em uma casa com quintal arborizado no Bairro da Encruzilhada, que está se ampliando para aumentar a capacidade de atendimento. Segundo o chef, a casa bebe da contribuição da estética da cozinha brasileira, com comida para ser compartilhada e não empratada – a exceção fica por conta do recém-lançado prato executivo da semana, para acudir quem vem sozinho ao local.
Com vocação diurna, o menu do Retetéu traz pratos como a coxinha de costela bovina com massa de macaxeira e maionese da casa como entrada, o cupim à baixa temperatura com molho escuro como prato principal e o pudim de leite tradicional com calda de passa de caju de Vila Velha como sobremesa. A cada fim de semana, há um prato do chef diferente – “para instigar e tirar da zona de conforto”, diz Thiago – que pode ser desde um lagostim grelhado com chuchu ou uma bochecha de porco até uma lula recheada com linguiça matuta e paçoca de amendoim.
“Ser honesto passa pelo storytelling da verdade. A história tem que ser verdadeira, tem que ter um lastro”, defende. “São restaurantes que querem fazer parte da sua vida e você vai querer aquilo nos outros locais também”, explica Gi, que destaca o papel da experiência de estar em um local assim. Danillo questiona o rótulo de cozinha afetiva, que vem sendo usado a torto e a direito sem muita fundamentação ou justificativa. “Já vi muita cozinha afetiva sem ter afeto por aí”, brinca. “Esses rótulos são usados mais por questões mercadológicas”, lembra Gi.
Prato do restaurante São Pedro
MISE-EN-SCÈNE
A honestidade, porém, não passa apenas pela relação com o ingrediente e o fornecedor, mas também pelo contato entre o comensal e a equipe de salão. Em junho, o Retetéu realizou uma oficina com os garçons ministrada pelo ator Luciano Pontes, com o objetivo de desenvolver mais consciência de si e dos desejos dos clientes. “Serviço é mise-en-scène, então, nada melhor do que um ator para desenvolver certas habilidades”, conta Thiago, que acredita que o serviço tem que se comunicar com o que é servido e que o garçom deve contribuir para a experiência do comensal.
A ligação com a cidade é outra pauta sempre à tona. O segundo restaurante de Thiago fica no Pátio de São Pedro, no bairro central de Santo Antônio, e foi aberto no início do ano com apenas 18 lugares e ênfase nos frutos do mar. O São Pedro procura, de acordo com o chef, servir “comida de terroir do centro da cidade”: boa parte dos insumos usados vem do Mercado de São José, que fica a 300 metros da casa. A vontade é contribuir para a revitalização do pátio, que já viveu bons e maus momentos e hoje tem poucos restaurantes em funcionamento, e servir como opção para almoço no centro de segunda a sexta-feira.
Já nos Aflitos, em uma casa rosa da década de 1950, está o Cá-Já, restaurante chefiado por Yuri, que estudou gastronomia na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e passou por vários países cozinhando, incluindo os restaurantes Glasserie, em Nova York, por dois anos; Rafael, em Lima, por um ano; e DOM e Dalva e Dito, em São Paulo. O cozinheiro, que também já fez parte da cozinha do Cirque du Soleil, abriu o Cá-Já no final de 2017 com menus diferentes no almoço e no jantar, com propostas distintas. “São duas operações em uma, com duas pegadas diferentes”, conta.
No almoço, a casa aposta no “comidão” e serve peixada, favada, rabada e galinhada. No corredor que leva ao quintal, as pessoas na fila de espera que sempre marca presença nos fins de semana aguardam experimentando dudu (ou sacolé) de frutas da época ou já adiantando os pedidos dos drinques. Se o calor está grande, recebem chapéus e leques quando seguem para a mesa. A casa inaugurou um salão fechado com ar-condicionado recentemente, mas é no quintal que a maioria dos clientes faz questão de ficar. “Recife é solar e o Cá-Já é um restaurante que tem a ver com a cidade”, afirma Gi.
No Instagram, a casa se define como “um cardápio ancorado na cozinha brasileira que acolhe, traz memórias afetivas, mas com toque contemporâneo, valorizando os ingredientes locais”. À noite, há opções mais autorais, como o guiozá de lagosta na hora da entrada, o saramunete com arroz de moqueca como prato principal e o creme de maracujá com gelatina de hibisco e crumble de farinha de maracujá com açúcar mascavo na sobremesa. Nos dois horários, o serviço é pensado para fazer o cliente ficar à vontade, como se estivesse em casa. “Quero tratar o cliente como eu gostaria de ser tratado”, afirma Yuri.
Sentir-se em casa é literalmente inevitável no Mundo lá de Casa, no Hipódromo, projeto que já foi assunto de reportagem na edição 181 da revista Continente: o “restaurante”, na verdade, é a moradia de um grupo que resolveu abrir suas portas para abrigar experiências gastronômicas, às quintas-feiras, e musicais. O chef das panelas é Vinícius, que estudou Farmácia antes de entrar para a cozinha e descobriu em um intercâmbio que isso era o que queria fazer da vida. “Cozinhar no Mundo lá de Casa não permite que eu me engesse”, afirma. O menu degustação muda a cada semana e tem cinco pratos a preço fixo.
Além do trabalho nos jantares de quinta-feira e nos petiscos nos dias de shows na casa, Vinícius abriu o Empório Toque do Chef, em que vende chutneys, geleias, picles e outros produtos sem conservantes. “É bruxaria em potinhos”, brinca o cozinheiro, que se considera artesão e “matuto de Surubim”. Ele já tinha o costume de fazer esses experimentos, mas foi na temporada que passou trabalhando em um restaurante em Seul, na Coreia do Sul, que se impressionou com a variedade de conservas. Surgiu então a ideia de envasar as preparações que ele já fazia – e, claro, acrescentar outras novas, com ares asiáticos.
No período coreano, foi a amiga Gi que ficou à frente da cozinha do Mundo. Formada em administração, ela começou a cozinhar por acaso e trabalhou no Mocotó, em São Paulo. Hoje, está implementando novas tecnologias e melhorias de processos no Quina do Futuro, onde faz um trabalho mais mental do que braçal por causa de uma hérnia de disco que não permite que fique muito tempo em pé. Ela responde pela criação dos sushis veganos da casa. “A intenção é que qualquer pessoa goste, seja ou não vegana. Cada teste buscou tirar o sabor mais marcante daquele ingrediente, sem mascará-lo”, explica.
QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA
O mais novo integrante do grupo, Danillo, largou o curso de Turismo no último período para se dedicar às panelas. “Nunca tive influência da minha família nem tinha aquela avó que cozinhava”, avisa. Ele estudou cozinha no Instituto Gato Dumas, em Buenos Aires, onde trabalhou no restaurante El Baqueano. Em São Paulo, teve experiências no Maní e chegou a ter um food truck de café. Hoje é chef da Pousada Patacho, que leva o nome da praia no litoral sul de Alagoas, onde prepara um menu degustação com frutos do mar diferente a cada semana, usando ingredientes locais.
Danillo participou da quarta temporada do programa The Taste Brasil, que vai ao ar no canal GNT e tem como mentores os chefs André Mifano, Claude Troisgros, Felipe Bronze e Helena Rizzo. “Eu tinha muita resistência com reality shows de gastronomia, mas fui atrás da legitimação dos mentores para saber se estava fazendo do jeito certo”, explicou. Ficou em segundo lugar. Ele considera que a vivência valeu a pena pela oportunidade de absorver conhecimentos – ele era do “time” de Claude Troisgros – e pelo exercício da criatividade. “De certa forma, esses programas fazem as pessoas querer cozinhar.”
Para os integrantes do coletivo, o papel do cozinheiro ultrapassa os limites da cozinha. “É algo mais profundo do que só fazer comida: é uma forma de se expressar, é uma linguagem”, diz Danillo. “É preciso fazer o máximo que puder dentro da sua realidade. Cozinha não é uma moda, é a vida das pessoas”, defende Vinícius. “Comer é um ato político e isso é uma revolução. Daí o comportamento de saber de onde vem a comida, pois tudo tem consequência para as gerações futuras”, diz Yuri. “O cozinheiro deve se perguntar: qual a mensagem que quero passar?”, completa.
Para Gi, já passou da hora de parar com a ideia de que cozinha é um lugar de glamour e vaidade em vez de um espaço de trabalho duro. “É lugar para servir e não para ser visto”, afirma. “O cozinheiro tem que ser agente social e ter consciência de onde se encontra”, diz. O fortalecimento da cadeia passa por quem cozinha, mas também por quem come, a quem afinal também cabe o poder de decisão sobre que tipo de relações quer fomentar. “Temos que ser conscientes como cozinheiros e como comensais. Isso é ser humano, no final das contas”, conclui.
RENATA DO AMARAL é jornalista, doutora em Comunicação pela UFPE.
WAGNER RAMOS é fotógrafo.