ILUSTRAÇÕES LUÍSA VASCONCELOS
01 de Agosto de 2018
Ilustração Luísa Vasconcelos
[conteúdo exclusivo para assinantes | ed. 2012 | agosto 2018]
E no princípio era o Verbo, eis a notória abertura presente no primeiro capítulo do Evangelho de João, que em seus versículos iniciais remonta à criação do mundo, mesmo tema do primeiro capítulo do Gênesis (que vem a ser o primeiro livro tanto da Bíblia hebraica quanto da versão cristã; faz parte do Pentateuco e da Torá e, do grego, significa “nascimento” ou “origem”). Cabe notar que todo o Novo Testamento foi escrito em grego koiné ou helênico: a língua franca da parte oriental do Império Romano nas primeiras décadas da era cristã.
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.
(João 1:1-4)
A versão grega de origem, porém, traz a expressão logos, no que depois restou traduzido como “verbo”, mas seria, no princípio, a palavra. Por que principiamos este texto assim? Uma simples implicância inicial? O conteúdo e o foco desta escrita, adverte-se desde já, não são de natureza teológica, mas, sim, uma reflexão que perpassará algumas observações extraídas de áreas diversas, entre elas a linguagem e a cultura.
Começamos por pensar essa construção tão notória, que acaba naturalizada, como tantas outras construções culturais, e traz em si uma estratégia política intrínseca, mesmo quando inadvertidamente (sobretudo assim, pois se quer subliminarmente presente): o masculino traço marcando o vocábulo verbo (que subjuga nas traduções a versão feminina palavra) e contamina de másculo tom e definição o Deus monoteísta da tradição judaico-cristã (longa, confusa, bélica e opressora linhagem desdobrada em tantas igrejas e doutrinas) e finda com “a luz dos homens”.
Tudo isso que levantamos até agora serve para atentarmos a um modo de dizer-se convencionado na gramática normativa da língua portuguesa (por nós herdada pela via esmagadora da colonização): o termo homem é o resumitivo do gênero humano, da espécie humana; o plural se faz na flexão masculina da língua… A hierarquização das estruturas se faz notória: Deus (masculino) acima dos homens; os homens acima das mulheres… Signo de patriarcado; patriarcalismo: portas abertas ao machismo que se vai instaurando e à subordinação (como em paralelo possível à estrutura de formação de períodos ou à lógica masculinizante da língua: mulheres subordinadas). Desde quando? Até quando?
Merlin Stone, historiadora da arte e escultora internacionalmente premiada, autora entre outros títulos de When god was a woman (Quando deus era uma mulher) e Ancient mirrors of womanhood (Antigos espelhos da feminilidade), na introdução ao livro O novo despertar da deusa: o princípio feminino hoje, publicado pela editora Rocco, nos diz:
Com o conhecimento e a experiência do vasto espectro do que as mulheres podem ser e do que os homens podem ser, percebemos que os termos feminino e masculino têm sido usados para criar uma dualidade muito além daquela que realmente existe – e não necessariamente no sentido mais positivo tanto para as mulheres quanto para os homens.
Considerando as diferenças reais, podemos nos questionar sobre o que é biologicamente determinado e até mesmo o que pode ser divinamente ordenado. (…)
Quanto menos aceitarmos uma dualidade exagerada das características dos gêneros, com o sistema de valores que a acompanha, mais podemos nos perguntar como e por que esses estereótipos se tornaram tão onipresentes em nossa sociedade. Quem traçou essas imagens e por que elas são descritas do jeito que são? (In: NICHOLSON, 1993, p. 21-23).
Eis uma pergunta até capciosa, pois tomada por tantos e, presumidamente, como uma espécie de ponto pacífico: papéis definidos, estereótipos de indumentária, vocabulário, comportamentos divididos fixamente por gênero/sexo (aqui, instâncias propositadamente confundidas, tomadas como sinônimos, que nem são). Na realidade, esconde-se nessa lama o interesse de manter uma hierarquização, como já insinuamos.
É muito mais atávico até que possamos aqui retraçar ou combater com a militância isolada e a lucidez, sobretudo, de algumas mulheres como a escritora Simone de Beauvoir que, em O segundo sexo, lança a acertada afirmação: “não se nasce mulher, torna-se mulher”; e na esteira dela, em movimentos de contradição, de polêmica ou de interseccionalidades, que acrescem ao caldo das discussões a ideia de performance de gênero (vide Judith Butler, ensaísta que esteve no centro de celeumas no Brasil recentemente); ou as ideias de etnia e raça ou pós-colonialidade, ou a noção de “escrevivência” da escritora mineira Conceição Evaristo, por meio da qual preconiza que a escrita deve nascer imbricada com a experiência vital de quem cria. É preciso, mais que nunca e sempre, denunciar o caráter de engendramento e ficcionalização que há por trás dessas perguntas e das estruturas mais fincadas da língua.
Verbo não obrigatoriamente é sinônimo de palavra; mas ambos são armas. As estratégias de luta devem ser percebidas, descortinadas! Voltemos mais alguns passos nesse percurso… Se falamos no terreno da língua como fundacional do mundo, falamos também na noção de divindade, que vem acompanhada de ordenamentos, leis, concepções e prisões identitárias.
Há quem lembre a Grande Deusa (Gaia), há quem invoque as divindades fêmeas gregas (também do período helenístico). Por exemplo, outro antigo caso pertinente para se pensar a dualidade de gêneros é o clássico conflito entre a deusa grega Gaia (Terra) e o deus Apolo (Sol). Tanto na poética dramatúrgica (no teatro grego) de Ésquilo quanto na de Eurípedes, encontra-se a coincidente versão de que o templo de Gaia, em Delfos, passou para o comando de Apolo. Segundo Ésquilo, foi fruto de um presente; já em Eurípedes, o templo foi tomado por Apolo violentamente. Voltamos a Merlin Stone, na mesma obra anteriormente citada, que recupera esse conflito:
O que torna este conflito entre Gaia e Apolo tão interessante é que Gaia era associada à escuridão e aos mistérios da terra e das cavernas. Era associada a revelações místicas do futuro, e um feroz abandono físico e psíquico caracterizava os rituais celebrados em sua honra. Apolo, como o Sol, era considerado o Deus da luz e da racionalidade. A tomada do templo de Gaia por Apolo, em Delfos, simbolizava a conquista pelo assim chamado conhecimento racional e abstrato do conhecimento obtido através das emoções, intuições e revelações místicas. (In: NICHOLSON, 1993, p. 24).
E a autora segue relembrando que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche abordou essa disputa entre a racionalidade apolínea, tida como rígida e formal, e o abandono intuitivo, feroz, anímico de Dioniso, considerado um deus infantil, um tanto efeminado e associado a Gaia em seu templo de Delfos. Nietzsche deixa nítida sua inclinação ao dionisíaco, mas, mesmo assim, a “tradição” parece ter ignorado e trabalhado na perspectiva de enterrar Gaia. Afinal, o mais famoso oráculo da antiguidade grega ser encarnado por uma mulher, velha e sábia, é imagem poderosa em demasia para permanecer reverenciada.
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Chegamos a outro colaborador para conduzir nosso desvio de pensamento, Ronaldo Brito, professor de História da Arte no Programa de Mestrado em História Social da Cultura da PUC–Rio, que, no artigo intitulado Fato estético e imaginação histórica, diz:
Fazer História é fazer a experiência do Maior, diante do qual vivemos em situação de carência, em situação de demanda, mas que não deixa de ser um estado de desafio.
A interpretação não se sobrepõe aos fatos. Os fatos, em si mesmos, são fatos interpretados. Quando se lê a História se lê um texto, é claro. O problema do narrar, o problema do escrever a História é um problema histórico. Obviamente não estou dizendo que inexista o real. Mas, quando o real se torna histórico é captado no interior de outra ordem, é efetivado na ordem da linguagem. Quando o historiador contemporâneo percebe que utiliza uma linguagem – linguagem que não é só verbo e escrita, é também um método, uma tática de pensamento, um projeto de compreensão – obriga-se a um comprometimento cultural. (…) Assim, ele pode observar as premissas idealistas que operam, sem que suspeitasse, na base da sua História. E como essa origem e essa tradição conduzem à determinada concepção de História, a certa concepção de Verdade. (BRITO, 1996, p. 197-198, grifos nossos).
Claramente, na visão de Brito (como fizemos questão de destacar na citação), a História é o relato da “experiência do Maior”, ou seja, do mais poderoso e que se impõe como fatos interpretados, como um real instaurado como verdade inquestionável, mas que é construído segundo “premissas idealistas” de um sujeito que traduz nessa versão dominante e legitimada a sua concepção (ou a que se viu, às vezes inconscientemente, forçado a incorporar). Como o próprio Brito adverte, não é que não haja real, mas a operação de historicizá-lo é forjada por meio e no centro da linguagem, que é oficializada por quem pode “dar a palavra final”.
Se olharmos o lúcido raciocínio de uma pensadora não legitimada pela ordem oficial e à qual não foi conferido prestígio pela elite meritocrática (essa elite que cumpriu os requisitos para se tornar intelectual, conforme as regras de certa tradição), veremos o rei posto a nu:
Se a primeira mulher que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça para cima! E agora elas estão pedindo para fazer isto. É melhor que os homens não se metam.
Obrigada por me ouvir e agora a velha Sojourner não tem muito mais coisas para dizer. (TRUTH, 1851 apud RIBEIRO, 2017, p. 21).
Sojourner Truth foi o nome adotado por Isabella Baumfree, que nasceu em um cativeiro em Nova York e tornou-se abolicionista, escritora e ativista pelos direitos das mulheres. A partir de 1843, adotou novo nome e, em 1851, participou da Convenção dos Direitos da Mulher, em Ohio (EUA), na qual apresentou seu discurso mais conhecido, intitulado E eu não sou uma mulher?, do qual faz parte o trecho citado anteriormente. Nessa fala, Sojourner traz à tona, no século XIX, um aspecto fundamental de avanço de perspectiva na agenda do feminismo, que também precisa se repensar constantemente: a falácia da universalização da mulher como uma “categoria unívoca”. Apenas muito depois é que pensadoras como Judith Butler vão insistir nesse aspecto e abrir espaços para se levarem em conta as intersecções, como raça, orientação sexual e identidade de gênero, condição socioeconômica e geopolítica, religiosidade…
Djamila Ribeiro resume bem o foco do que aqui queremos pôr em relevo: “… pensar a partir de novas premissas é necessário para se desestabilizar verdades.” (RIBEIRO, 2017, p. 24), ou seja, parece fundamental questionar o estabelecido, fazer um esforço permanente para seguir o que nos adverte a feminista caribenha, negra e lésbica Audre Lorde, quando enfatiza que não se devem hierarquizar opressões, pois que interseccionalizar não pode significar novos modos de seccionalizar. Ela própria tinha dificuldade em lidar com a divisão dos movimentos e pautas, porque se via cindida: contra qual opressão deveria lutar? A de gênero, a de raça, a de orientação sexual? Antes de mais nada, adverte Lorde: é preciso “matar a parte do opressor em nós”(apud RIBEIRO, 2017, p. 50), para não se legitimar ou reproduzir o poder que se condena.
Retomando Djamila, então, para desestabilizar as verdades cristalizadas, é preciso reinventar novas premissas, olhar por outros ângulos. “Logo, definir-se é um status importante de fortalecimento e de demarcar possibilidades de transcendência da norma colonizadora.”(RIBEIRO, 2017, p. 44), mas definir-se sem hierarquizar as seccionalizações: eis o desafio.
Lélia Gonzalez, pensadora e feminista negra, é também uma referência na contestação ao paradigma dominante. Em muitos de seus textos, utilizou deliberadamente uma linguagem que desafia e desobedece às regras da gramática normativa; sobretudo com o objetivo de dar visibilidade às contribuições e especificidades de fala dos povos escravizados. Por exemplo, no artigo Racismo e sexismo na cultura brasileira, reflete de forma contundente:
É engraçado como eles (sociedade branca elitista) gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é do que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem é o ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês. (GONZALEZ, 1984, p. 238).
Essa colocação abre espaço para pensarmos a proposição urgente e necessária de uma descolonização do pensamento, a partir de uma brecha que nos permita enxergar a crítica à imposição de uma epistemologia universal de um saber dominante marcado por uma série de traços distintivos, mas que assim não se enxerga e que ignora os saberes de povos originários, de classes menos abastadas e/ou mais periféricas/menos centrais, de religiões, povos, pessoas de orientações de desejo ou de gênero ou de etnias não hegemônicas… Então, soa-nos fundamental e urgente desestabilizar a normatização discursiva e linguística branca, masculina, rica, cis, heteronormativa, e propor caminhos de variabilidade de uso da língua que escancarem a ficção dominante criada como língua-padrão.
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Michel Foucault, uma das mais importantes figuras a pensar os procedimentos das sociedades vitorianas e seus mecanismos de organização pautados em estratégias de vigilância aos corpos e comportamentos e punição aos que se desviem da norma, alerta claramente para o mecanismo de produção do discurso que, segundo ele, em toda sociedade, funciona como uma produção que é “ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2012, p. 8-9). Ou seja, o discurso é um sistema social que visa estruturar e legitimar um certo conjunto/imaginário social e deslegitimar outros que dele desviem ou o questionem: trata-se de controle e exercício de poder/dominação.
Seria preciso entender as categorias de raça, gênero, classe e sexualidade como elementos da estrutura social que emergem como dispositivos fundamentais que favorecem as desigualdades e criam grupos em vez de pensar essas categorias como descritivas da identidade aplicada aos indivíduos. (COLLINS, Patrícia Hill apud RIBEIRO, 2017, p. 61).
E, ainda, inserimos aqui a categoria relativa à faixa etária, pois a condição de idosa alija ainda mais uma pessoa em uma hierarquia social. E trata-se de trazer o pessoal à tona, sim, posto que “o pessoal é político”, e este é um lema do feminismo, como reitera Carol Hanisch (2000), em seu trabalho assim nomeado. Afinal, as maiores revoluções das mulheres se tecem no cotidiano, aparentemente miúdo, de criar filhos, de desempenhar jornadas triplas, de “minar de dentro” o sistema que as quer submissas. Que feminismo queremos e fazemos? O de essas mulheres poderem dizer-se em cena, na vida, em casa, nas ruas, no trabalho (sozinhas, ou acompanhadas!): falar do desejo, da sexualidade, da condição de profissionais em várias áreas. E as teias identitárias se pulverizam…
É urgente criar estratégias, ininterruptamente, para fazer ruir esse sistema de opressões sobrepostas, tão antigo quanto a humanidade.
A escritora inglesa Virgínia Woolf proferiu uma série de palestras, no já distante ano de 1928 (apesar de muito do cenário ainda permanecer igual), em duas “escolas para mulheres”, na Cambridge University (publicadas pela primeira vez no ano seguinte) que foram reunidas sob o título Um teto todo seu, livro no qual argumenta sobre o quão imprescindível é a existência de um espaço (tanto literal quanto figurativamente) para as escritoras em uma tradição social e literária dominada pelo patriarcado: “Tudo o que poderia fazer seria oferecer-lhes uma opinião acerca de um aspecto insignificante: a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção (…)” (WOOLF, 1990, p. 8). Logo, sem poder arcar com suas próprias despesas, mulher alguma pode ter autonomia…
O trabalho é árduo, o percurso é longo. Não se pode arrefecer, relaxar ou desconcentrar em qualquer mínimo espaço de avanço nas conquistas feitas. Mas é preciso ir além… Como professora de literatura (em instância basilar, de língua/linguagem, obviamente), como poeta e dramaturga, começo a pensar as tantas possibilidades de interseccionalidade que me atravessam em meu feminismo cotidiano e no dAs tantAs alunAs e dos alunos com quem trabalho e construo aprendizados. Sigo provocando, então…
Em um trabalho iniciado em 2017 com o coletivo de teatro Bárbara Idade, majoritariamente composto por mulheres senescentes (há apenas três homens: dois atores e o diretor), criamos, a partir da ferramenta do Biodrama, uma proposição da argentina Vivi Telas, de uma dramaturgia que nasce das experiências de vida das pessoas envolvidas no processo de criação. Ali nasceu uma das primeiras fissuras; propus – e foi aceito por todas – que experimentássemos uma primeira efetiva ação de mudança político-linguística entre nós: se somos uma maioria massiva de mulheres (eu e mais a assistente de direção, somadas ao todo, totalizamos 11), entre nós havendo apenas três homens, por que não instituíamos que nossos plurais seriam sempre no feminino? Já nos rebelávamos contra uma dimensão da língua que obriga a flexão masculina no plural, se houver um homem que seja… Propor caminhos de revolução pela língua e retomar o interseccional com a questão da idade e do gênero fortalece nossas micropolíticas.
Aqui propomos e começamos a pôr em prática uma estratégia política efetiva no nível da linguagem, algo que ecoa uma prática dos movimentos de militância de grupos não hegemônicos no terreno do gênero; como o artifício de se usar o “X” em lugar de marcar o gênero binário com “O” ou “A”; ou o uso de uma espécie de “gênero neutro” (que existia no latim e não existe na gramática normativa da língua portuguesa), flexionando-se o final das palavras em “E”: “coleguEs”, “todEs”… Ou ainda usar o símbolo de “@” para indicar um plural que não se flexiona compulsoriamente no masculino, bastando haver um homem em uma totalidade de quantas dezenas de mulheres haja… No caso do Bárbara Idade, nosso desejo é de marcar o feminino como plural majoritário, uma marca de militância feminista no plano linguístico que esperamos e cremos ver reverberar em mudanças pragmáticas de olhar e ação na vivência do grupo. Afinal, língua é poder; nomear confere poder; performance de linguagem também traduz identidade, reflexão, protagonismos…
Mas as ressalvas aparecem: quem defende o respeito à gramática normativa, descritiva, a uma certa concepção de tradição (tudo isso sabemos esconder muito mais caroços sob o angu)… Mudar comportamentos culturais de dominância e opressão exige estratégias diversas e diversificadas, sutilezas, humor e, sobretudo, uma argumentação ágil e bem-urdida.
Por exemplo, no espaço das inclusões, pode-se acrescentar a esse caldo de discussão a questão da acessibilidade de pessoas com necessidades específicas: cegos, surdos, cadeirantes… E viriam os argumentos de que usar o “X” ou “@” ao final das palavras dificultaria o uso de programas de tecnologia digital desenvolvidos para cegos: o sintetizador de voz não “lê” (não foi codificado para enunciar) as palavras grafadas com esses símbolos… Insisto que esse é um problema bem menor: a tecnologia deve nos servir, não nos impedir em um avanço inclusivo em detrimento de um obstáculo menor. Que os programas incorporem essas adaptações, pois muito mais difícil (e urgente e necessário na mesma medida) é seguirmos alargando os espaços sociais para as pessoas de grupos não hegemônicos (sejam quais forem) se verem representadas e com representatividade!
Afinal, a língua é organismo vivo, portanto, sempre em mutação, e apoderar-se do poder que ela confere é estratégia de micropolítica e de minar de dentro as estruturas cristalizadas, e assim haver “verba” e palavra para a escrita de novas (h)estórias, destronando o discurso oficial por lhe revelar as falácias, como adverte tão precisamente a fala de Chimamanda:
Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. (ADICHIE, 2009, 17’37”).
REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. Canal TED – Technology, Entertainment, Design, 2009. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-historia/>. Acesso em: 30 abr. 2018.
ADICHIE, Chimamanda. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
BRITO, Ronaldo. Fato estético e imaginação histórica. In: PAIVA, Márcia de; MOREIRA, Maria Ester (Org.). Cultura, substantivo plural. Rio de Janeiro; São Paulo: CCBB; Ed. 34, 1996.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2012.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs, 1984. Disponível em: <https://goo.gl/VFdjdq >. Acesso em: 1º maio 2018.
HANISCH, Carol. The persona lis political. In: CROW, Barbara A. Radical feminism: a documentar reader. New York: New York University Press, 2000.
NICHOLSON, Shirley (Org.). O novo despertar da deusa: o princípio feminino hoje. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.
RENATA PIMENTEL, professora de Literatura da UFRPE.
LUÍSA VASCONCELOS, estudante de Design e ilustradora.