Portfólio

Alex Cerveny

O homem e seu deserto

TEXTO ADRIANA DÓRIA MATOS

01 de Julho de 2018

'Glossário dos nomes próprios', óleo s/linho, 120 x 160 cm, 2015

'Glossário dos nomes próprios', óleo s/linho, 120 x 160 cm, 2015

Pintura Edouard Fraipont/Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 211 | julho de 2018]

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Dentro de um casulo
embaixo da terra, tem um homem nu. A postura dele é bem alongada, como se acabasse de girar na piscina e estivesse se espichando para continuar seu nado. Na superfície, há árvores altas e ressequidas, nos seus galhos secos e nas parcas folhas dependuram-se homens de várias estaturas, todos estão nus, a maioria parece querer se comunicar conosco, porque levantam os braços, acenam, nos olham diretamente.

Tudo está escuro ao redor, exceto por essas criaturas, algumas cabeças de homens barbados – semelhantes a ex-votos, soltas no espaço – e fileiras e mais fileiras ascendentes de palavras, frases, coisas escritas em letras brancas num jorro aparentemente sem sentido, balbuciante, delirante. “Ryan, 31, Brian, 25, Boston Gamer, 44.” Outra lista: “Who believes in teachings of the bible and tries T follow to the bes of my ability #kis #kis #kis”. Em mais uma fila, escolhida aleatoriamente: “25 issac ibrahin los amigos son para siempre. soy um chico normal como todos, con mis virtudes y defectos, amante de la vida y de las cosas sanas, dando uma sonrisa a todos”.


Hornet, óleo s/tela, 100 x 74 cm, 2017.
Imagem: E. Ballardin/Reprodução


Há outras palavras e frases dispostas em veios que tomariam mais um tempinho da nossa atenção. O conjunto é estranho e harmônico, foi pintado a óleo sobre uma tela de 100 x 74 centímetros, e ganhou o nome de Hornet, que em alemão significa “vespão” (esses insetos gostam de nidificar nas árvores ocas, daí pensar que o homem debaixo da terra poderia ser um hornet). Sua data é 2017, mas sua existência paira numa era indeterminada.

Sete anos antes, a mesma pessoa que pensou esse vespão onírico imaginou outra cena, mais desértica, mais simples, menorzinha (uma planície de apenas 35 x 28 centímetros), mas que mantém algumas similaridades com a do Hornet. Der Struwwelpeter II, segunda parte de um tríptico, nos apresenta um homem nu, posto numa planície deserta. Ele porta um galho em chamas e se dirige para uma espécie de árvore-totem de forma humana. Está pronto para atear fogo. Mas quem brinca com fogo pode se queimar, é o que indica o terceiro quadro dessa sequência de pinturas a óleo, pois agora o homem foge, assustado com a aparição de uma cabeça que surge sobre a fumaça da fogueira que resultou da sua ação contra o totem.

Numa das narrativas do livro infantil Der Struwwelpeter, publicado pelo psiquiatra alemão Heinrich Hoffmann em 1845, a menina Pauline queima até a morte por conta de uma brincadeira com fósforos. É clara a referência a essa história de punição nas pinturazinhas apocalípticas aqui mencionadas, justamente pelo título que receberam. E nós poderíamos passar horas nos deleitando em buscar – e encontrar – menções ao fogo na obra de Alex Cerveny (1963), o paulistano que brinca com fogo e outros elementos da natureza e que é autor dessas e de outras minuciosas narrativas em forma de desenho, pintura, gravura e bordado que ele apresenta ao mundo desde quando deu início à sua trajetória como artista, em 1982.


Der Struwwelpeter II, óleo s/ tela, 35 x 28 cm, 2010.
Imagem: Edouard Fraipont/Reprodução

***

“Era uma vez… – Um rei – dirão logo os meus pequenos leitores. Não, meninos, vocês se enganaram. Era uma vez um pedaço de pau. Não de madeira de lei, mas um simples pedaço de lenha, desses que no inverno atiramos nos fogões e nas lareiras para acender o fogo e aquecer os aposentos”. Lá vinha o fogo de novo, atiçando o juízo de Alex Cerveny. Dessa vez, lá por 2011, por conta de uma nova edição d’As aventuras de Pinóquio que a (extinta) Cosac Naify estava preparando e convidou o artista para ilustrar. Na conversa que tivemos ao telefone para a produção deste texto, Cerveny contou que o Pinóquio “foi uma negociação de um ano, com várias recusas, até chegar ao cliché-verre. Uma vez aceita a proposta, tive que trabalhar intensamente, virei adulto”.

O cliché-verre (clichê em vidro) é um tipo peculiar de gravura desenvolvida na segunda metade do século XIX, cuja matriz é um vidro chamuscado pela chama de uma vela, onde se desenha o negativo, que depois é revelado em papel fotográfico. (Tem até um videozinho disponível na rede com o próprio Cerveny explicando a técnica no processo de produção das ilustrações para o Pinóquio.)

“Ler e ilustrar o Pinóquio de Carlo Collodi, na tradução de Ivo Barroso, foi uma redescoberta. Não apenas quanto ao texto, sem cortes e original. Mas também pelas frestas que se abriram nele, para que eu reencontrasse na memória as minhas primeiras estripulias e atos inconfessáveis. Este trabalho fez com que eu me projetasse em muitas das cenas apresentadas, algumas vezes próximas dos vestígios de minha própria (ou de qualquer) infância e das fantasias vividas no processo de metamorfose para a vida adulta”, escreveu Alex Cerveny, sobre esse trabalho, para o blog Fora de Mim, em 2012.


Ilustração feita na técnica cliché-verre, para
As aventuras de Pinóquio, 2012. Imagem: Reprodução

Os desenhos que o artista realizou para essa edição d’As aventuras de Pinóquio nos remetem àqueles feitos por crianças, de linhas simples e sem perspectiva, e à arte naïf. Em Alex Cerveny, a palavra naïf ganha o sentido claro de independência das normas e convenções da arte contemporânea. Com seu trabalho, ele também nos lança à ideia de autonomia, a um palavreado artístico particular conectado às erudições, à arte antiga, ao passado, ao livre pensar. E isso tem muito a ver com sua base e suas escolhas. Ele diz que “arriscou muito na formação”. Ainda menino, teve a sorte, conta, de estudar numa escola de pedagogia inovadora, que oferecia disciplinas anticonvencionais e estimulava o desenvolvimento intelectual e criativo do alunado.

“Aos 14 anos já fazia curso de arte, aos 18 já me achava artista. Então dispensei a faculdade. Quando entrei na Faap, aos 21 anos, não aguentei a sensação de que estava vendo tudo de novo, isso se juntou ao meu lado orgulhoso. Também estava envolvido com o circo, em que entrei com amigos. Então fiquei trabalhando como contorcionista.” Tem essa passagem curiosa na história de Cerveny, que trabalhou durante dois anos nas artes circenses, quando criou o personagem Elvis Elástico, o contorcionista, que não por acaso “aparece” em várias de suas obras, em corpos – em geral, masculinos – enroscados em si mesmos. Ele conta que o homem-elástico é “uma marca interna, um modo de ser”.

Estar por risco e conta própria levou o artista a uma trajetória individual, fora do circuito da arte (embora essa seja uma meia verdade, já que ele é representado por boas galerias, tem obras em acervos importantes, expõe nacional e internacionalmente etc.). “Estar fora do circuito” significa estar em outro lugar, e não ser excluído. “As regras da arte começaram a me incomodar, as tendências, os modelos, as curadorias. Era frustrante fazer o trabalho e nem ser aceito”, comenta. “Se a gente dá ouvido ao que o mundo espera de nós, é sempre poda. Gosto de absorver tudo ao meu redor e misturar todas as referências.”


Para o Decameron (2013), Cerveny criou mais de 40 desenhos e inseriu adornos direto no texto-matriz. Imagem: Reprodução

***

A visão irônica quanto a esse lugar sagrado que arte ocupa pode ser apreciada numa pequenina pintura a óleo (24 x 30 centímetros) datada em 2007, que Cerveny intitulou La adoración del cubo blanco. Sobre misturar todo tipo de referência, possivelmente esse é o maior trunfo da sua obra e motivo de deleite para os que se colocam diante dela. Alex Cerveny vai da alta cultura ao mais prosaico da cultura pop sem perder a linha narrativa, uma habilidade bem impressionante.

Há muitos exemplos disso, mas um bom de citar é o da mostra Glossário dos nomes próprios, que o artista realizou em 2015, como celebração aos seus 50 anos. Ele desenvolveu a exposição para ser exibida primeiramente no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. O conjunto era composto de duas pinturas a óleo em grande formato e uma série de desenhos de nus masculinos em nanquim e aguada sobre papel chinês. Ali tem de tudo: menção a Camões, a Nietzsche, ao cancioneiro pop dos anos 1980/90, a uma narrativa de naufrágio na Baía de Guanabara, ao desejo de falar de si, do corpo, dos desejos, da solidão…

O ponto de partida foram Os lusíadas, de Camões, de onde o artista pinçou alguns nomes masculinos que constavam num glossário ao final do livro e os transportou para sua pintura. A partir disso, Cerveny imaginou uma sociedade formada exclusivamente por homens. A exemplo de outras obras suas, trata-se de um universo fantástico, repleto de elementos que solicitam decifração – ou não, porque podem muito bem ficar naquele lugar inapreensível que aloja nossos sonhos. No meio dessa pintura, há duas ilhas no meio do mar. Em cada uma delas, um homem nu. Um deles está sentado na pedra e apoia uma das mãos numa esfera; o outro, numa ilhotazinha próxima, a exemplo do que vimos no Hornet, se espicha, como que acenando para o outro, que apenas o observa, passivo. Há uma ideia de impossibilidade nesse centro narrativo, pois tudo ali está disposto, mas apartado.

Dizer que o ponto de partida dessa mostra foi o livro de Camões é quase retórica, porque situações anteriores já se encontravam ali, pedindo para se expressar. Por exemplo, ele conta que, na adolescência, costumava desenhar homens nus, de pênis eretos, mas que logo reprimia essa manifestação, destruindo os desenhos. Numa de suas viagens recentes, comprou num antiquário uma caixa de madeira encimada pela imagem – em metal – de um bebê bolinando o próprio pênis (que compôs a exposição). Quando esteve na China, em 2013, comprou uma porção de papel de arroz. Com o convite do Paço Imperial, tomou coragem de usá-los para falar sobre esses temas reprimidos e se divertiu em “chutar o balde”, para usar uma expressão dita por ele mesmo. Os desenhos foram feitos em duas semanas.


La adoración del cubo blanco, óleo s/linho, 24 x 30 cm, 2007. Imagem: Reprodução

Portanto, além do quadro que nomeia a exposição e de outra pintura – Para além do bem e do mal, na qual toma partido do título da obra de Nietzsche (“Tudo acontece pro bem e pro mal depois da descoberta do pênis, as conquistas e os fracassos dos homens”, disse ele, para uma entrevista de TV sobre a mostra) – tudo o mais na exposição são 24 desenhos de homens nus de pênis eretos. “Apenas um dos desenhos foi vendido”, comenta o artista, “as pessoas têm problema com o nu masculino”. Quando conversávamos sobre isso, Cerveny mencionou um díptico que produziu nos anos 1980. “Eram duas gravuras em metal, Adão e Eva. A Eva foi vendida, o Adão ficou inédito. Até hoje ficava enroscado com essa diferença em relação aos nus masculinos e femininos na arte.”

Possivelmente os nus que Alex Cerveny vem desenhando e pintando recorrentemente na sua obra tenham sido mais bem-recebidos que os de Glossário dos nomes próprios porque dizem menos respeito a uma sexualidade acintosa, explícita e mais sobre uma nudez arquetípica, primal e, em certo sentido, desprovida de sexualidade. Ainda que, em ambos os casos – da nudez primal e da nudez explícita, coloquemos assim – haja o componente autobiográfico, porque a figura, o corpo e os desejos do artista estão colocados nos seus desenhos junto com o seu pensamento e sua habilidade narrativa.

Haveria mais o que falar sobre autobiografia e erotismo na obra desse artista tão minucioso no seu labor – quase que a repetir o gesto de um copista do medievo – mas é preciso, pelo menos, mencionar as ilustrações que ele desenvolveu para a edição brasileira do Decameron de Boccaccio, na passagem dos 700 anos de nascimento do poeta italiano (Cosac Naify, 2013). Nele, há o equilíbrio entre erotismo, picardia, humor e virtuosismo.

“Assim como o Pinóquio, o Decameron também teve urgência”, lembra Cerveny, que é acostumado a trabalhar com os prazos apertados das editoras, pois atuou anos como ilustrador para o jornal Folha de S.Paulo (coluna de Bárbara Gancia) e tem feito várias parcerias com editores, em projetos de livros para os públicos adulto e infantil. “Não tive tempo de elaborar, o livro foi uma libertação, feito para adultos, sem qualquer restrição. A Cosac me abasteceu com uma farta pesquisa sobre edições anteriores do Decameron e a ideia mais linda do livro é a inserção de adornos nas páginas. Fiquei com orgulho de entrar na linhagem de ilustradores dessa obra”, disse o artista, que ilustrou manualmente, página a página, as inserções decorativas ao longo do texto numa cópia que serviria de matriz para impressão. Dentre as 100 histórias originais do Decameron, 10 foram escolhidas por Maurício Santana Dias, cada qual adornada com capricho, numa edição memorável.

Depois de colaborar em tantos projetos bem-realizados de livros ilustrados, agora, Cerveny prepara uma edição 100% de sua lavra, textos e desenhos. Mas sem pressa, ele diz, “se enroscando” no trabalho, deixando que ele vá tomando forma num tempo estendido.


O corpo, óleo s/tela, 30 x 24 cm, 2013.
Imagem: Renato Parada/Reprodução

***

“Clavícula x 2. Omoplata x 2. Esterno vértebras lombares x 5. Pariental x 2. Temporal x 2. Maxilar x 2.” Talvez não seja de corpo e massa, membros, órgãos e ossos que se trate o encontro. Mas, como sugere o óleo sobre tela O corpo (2013), que ele seja feito de um desejo latente, suspenso, que flutua no vazio que há em Você e no Outro, eternamente.

ADRIANA DÓRIA MATOS, jornalista, professora universitária e editora da Continente.

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