Se a arteterapeuta Nise da Silveira (1905-1999) fosse colocada diante da produção artística dos aborígenes, talvez encontrasse algumas aproximações entre as pinturas dos ancestrais australianos e a arte produzida por seus “clientes”, tal qual chamava os usuários do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Porém, apesar da carga simbólica de ambas as produções, as semelhanças não passam de lembranças visuais; sim, pois não existe uma associação direta entre aquilo que Jung e a própria Nise investigavam em torno das expressões do inconsciente e as formas exploradas pelos aborígenes em suas tradições pictóricas.
A exposição O tempo dos sonhos: arte aborígene contemporânea da Austrália está aí para ilustrar melhor o que dizemos. Em cartaz a partir do dia 13 deste mês na Caixa Cultural Recife, depois de rodar outras cidades do país desde 2016, a mostra coletiva aponta como o “pintar” aborígene está próximo do “sonhar”, não pelas vias do inconsciente, tal qual concebeu a Psicologia, mas de uma linhagem de conhecimento mitológico animista. Dela, brotam narrativas ancestrais passadas de geração a geração, muitas vezes como estratégia de sobrevivência. O que para nós ocidentais poderia imediatamente remeter ao abstracionismo expressionista ou até naïf, para eles adquire outros sentidos. A partir da cosmovisão dos habitantes originários do território australiano, uma pintura sozinha pode garantir o futuro de um povo inteiro, trazendo pistas em perspectiva aérea, por exemplo, sobre a localização de fontes secretas de água – dado precioso para quem vive em regiões desérticas, como são os nativos daquele país. Em outras palavras, o verbete sonho possui aqui uma semântica peculiar quando “materializada” entre tintas e telas.
Os especialistas ocidentais da arte, muitos deles treinados pela ótica modernista, em seu gosto pelo “exótico” ou original, viram grande valor artístico nesses trabalhos, parte deles expostos no MoMA e Metropolitan, de Nova York, e em bienais como as de Veneza, São Paulo e Sidney, além da Documenta de Kassel e Art Basel (Miami, Basel e Hong Kong). Algumas dessas obras podem também ser vistas na Caixa Cultural Recife, que apresenta uma seleção com cerca de 40 pinturas, esculturas, litografias e as chamadas bark paintings – pinturas em entrecasca de eucalipto, típica do Norte. Ao realizar esses trabalhos em um suporte específico, os artistas conferem às suas composições uma interpretação particular de peixes, cangurus, seres humanos e outras figuras do milenar universo aborígene. Os tons terrosos e a textura das obras lembram uma dada expressão indígena brasileira.
A exposição compreende 45 anos de produção, ou seja, desde que o mercado internacional passou a se interessar por obras de nomes como Rover Thomas (1926-1998) e Emily Kame Kngwarreye (1910-1996), bastante aclamados posteriormente por sua arte. Na visão da curadoria, assinada pelo brasileiro Clay D’Paula e os australianos Adrian Newstead e Djon Mundine, a artista negra é uma dos expoentes da mostra e já chegou a ser tida pelo mundo da arte ocidental como um dos grandes nomes da pintura expressionista do século XX. Detalhe: ela começou a pintar quadros aos 80 anos, sem nunca ter sequer tido contato com a produção artística ocidental, pois a maioria desses artistas vivem/viviam no deserto australiano. Dela, estará na mostra, em cartaz até 5 de agosto, a obra Sem título, de 1992, feita quatro anos antes de sua morte.
Sonhar das mulheres, acrílica sobre tela de 1991, de Lily Nungarayi Hargraves. Imagem: Reprodução