Fiquei congelado assistindo àquela cena até receber a ordem de juntar a papelada que estava em cima da mesa e sair imediatamente da sala. Um bom tempo depois, já na fila de espera para o meu voo, voltei a ver o jovem caminhando pelo corredor. Fui falar com ele, queria saber o que tinha acontecido. Me contou que não queriam deixá-lo passar porque desconfiavam que ele não vinha para fazer turismo. E realmente não vinha. Um primo que já morava em Lisboa fazia alguns anos tinha lhe arrumado trabalho na construção civil. A sua ideia era passar uns anos em Portugal, guardar dinheiro, e depois voltar para o Brasil.
Esse rapaz que vi ser maltratado em Malpensa – alguém sem muita qualificação, disposto a fazer trabalhos pesados e que sonha juntar alguns trocados para poder comprar uma casa ou começar um negócio na volta para o Brasil – era, até muito pouco tempo, o retrato do imigrante brasileiro em Portugal. Segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o órgão português responsável pela concessão de vistos, a comunidade brasileira em terras lusas saltou de 20 mil, em 1999, para quase 120 mil, em 2010. A partir de 2010, houve uma inversão no gráfico por causa da crise econômica que afetou a Europa – e que foi especialmente dura em países mais pobres como Portugal e Grécia. Em 2015, o número de brasileiros nas terras de Camões tinha diminuído para pouco mais de 80 mil. De todo modo, ainda somos a maior comunidade estrangeira no país (quase 25% do total de não nacionais) e estima-se que o número real possa ser superior ao dobro, já que por aqui há muitos brasileiros em “situação irregular”, como denomina o SEF.
Em fevereiro deste ano, fui ao Consulado Geral do Brasil em Lisboa, cidade onde moro desde 2012, renovar o meu passaporte. Havia muita gente dentro e fora do prédio, e uma fila grande para obter informação. Pela primeira vez, foram-me oferecidos, na porta do edifício, serviços como xerox e fotografia. Ou seja, já há um pequeno comércio em frente ao consulado. “Vocês devem estar com muito trabalho agora com essa quantidade de brasileiros que têm vindo morar aqui, não?”, perguntei à moça que me atendeu. Ela respondeu: “A gente sempre tem trabalho. Na época dura da crise aqui, entre 2011 e 2014, era o pessoal que queria voltar para o Brasil, vinha pedir ajuda. Muita gente ficou sem emprego e não tinha como ir embora. E muitos desses já voltaram para cá, porque não se adaptaram. E agora há uma outra leva de brasileiros chegando”.
Passei o réveillon na casa de uns amigos que pertencem a essa “nova leva” de imigrantes. Éramos umas 15 pessoas, sendo que só uma não era brasileira (um alemão, convidado de alguém). Um grupo de gente na casa dos 28 aos 38 anos, a maioria chegada a Portugal há menos de um ano. Vieram estudar, fazer um mestrado ou algum outro curso, e tentam procurar trabalho na área, mas se viram com o que aparece, por enquanto.
Estão decepcionados com o Brasil, desanimados com a situação política e cansados de viver num país cujos índices de violência se assemelham aos de lugares em guerra. Não pretendem guardar dinheiro e também não sabem se vão (e quando) voltar para o seu país. Escolheram Portugal porque é um lugar familiar e que oferece facilidades como bom clima, o idioma e amigos que já estão instalados. Esse é o retrato de boa parte dos brasileiros que, nos últimos anos, desembarcaram em Portugal para viver. Uma reportagem publicada pelo jornal O Globo aponta que, em 2017, o Consulado Geral de Portugal em São Paulo recebeu três vezes mais pedidos de visto de residência por motivo de estudo do que no ano de 2016. Só a Universidade de Coimbra tem mais de 2 mil estudantes brasileiros entre graduação e pós-graduação.
Mas não são apenas pessoas jovens, em busca de especialização, que tenho visto por aqui. Vejo, conheço e ouço falar de famílias inteiras que acabaram de chegar. Algumas têm poder aquisitivo para comprar ou alugar um bom apartamento e vivem dos rendimentos que têm no Brasil. Outras, como a do cabeleireiro que recentemente me contou a vida enquanto me atendia, deixam o pouco que têm na terra natal e se arriscam numa nova vida. Ele veio com a filha, enquanto a mulher ficou em Campina Grande (PB) para terminar um curso de esteticista. O plano é que ela venha no segundo semestre para abrirem juntos um pequeno salão de beleza.
Outro casal que conheci trocou o Rio por Lisboa sem um plano definido na cabeça. O fato de ele ter passaporte português ajuda, mas não é garantia de um céu de brigadeiro. Por enquanto, eles ainda estão sem ocupação, analisando possibilidades de abrir um negócio, mas a família já aumentou: no começo do ano nasceu, em solo português, a filha concebida semanas depois deles terem chegado. Da última vez que nos vimos, elogiaram o serviço público de saúde e a oferta cultural da cidade, mas reclamaram da solidão. Ainda não fizeram amizade, nem com locais nem com estrangeiros.
Perto de onde trabalho há um restaurante que costumo frequentar. A dona é uma carioca que vive em Portugal desde os anos 1990. No ano passado, o filho dela, que morava no Rio, se mudou para Lisboa. Uns meses depois, a namorada dele chegou para ficar. Os dois trabalham no restaurante. No começo do ano, um irmão da dona também se mudou para cá. Pretende ganhar a vida como motorista. Da última vez em que fui lá almoçar, fiquei sabendo que outro irmão dela está prestes a chegar com toda a família. Vai deixar os negócios que tem no Rio e começar algo em Portugal.
A CIDADE DA MODA
Recebo todo mês pelo menos uma mensagem ou telefonema de um amigo que me conta que alguém próximo vai se mudar (ou já chegou) para a Lisboa e pergunta se posso dar umas dicas, tomar um café com essa pessoa. Tento ajudar. Quando cheguei, naquele 2012, com duas malas, vindo da Espanha, não conhecia uma pessoa sequer na cidade. Escolhi Lisboa porque era a capital mais barata da Europa, parecia-me um bom lugar para escrever a tese de mestrado e para viver como jornalista freelancer. E o ambiente meio decadente e melancólico, cada vez menos visível, me atraia. Vim para ficar seis meses. Já faz quase seis anos. Cheguei no inverno e em plena crise financeira e de autoestima da população. Portugal vivia sob intervenção da Troika (a junção do FMI com o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia) e os governantes pediam mais sacrifícios à população. Falava-se dos jovens que abandonavam o país por falta de emprego, dos funcionários públicos que tiveram os salários reduzidos, das empresas estatais que haviam sido vendidas para pagar dívidas, dos comércios que fechavam por falta de cliente.
Eu andava pelo centro da cidade e me assustava com a quantidade de imóveis abandonados, em ruínas. Quem visitou Lisboa recentemente deve ter dificuldade de imaginar, mas a cidade que encontrei quando cheguei era triste, decadente e inóspita. Hoje, é difícil achar um apartamento para alugar, os hotéis estão sempre cheios, toda semana abre uma loja, bar ou restaurante novo perto de onde vivo. Há muita vida na rua. A cidade está na moda, até a Madonna quis vir morar aqui. Isso significa que hoje viver em Lisboa é bem mais animado, e também mais caro, do que quando cheguei.
Mas a questão dos preços altos, para muitos, não é um problema. Recentemente, uma consultoria imobiliária divulgou o seu balanço anual. Os brasileiros compraram 27% dos imóveis que a empresa vendeu em Lisboa no ano passado. Um total de mais de 10 mil negócios. Outra gigante do ramo acaba de divulgar um estudo em que aponta que os brasileiros foram os maiores clientes em 2017 e que a procura é, maioritariamente, por apartamentos médios e grandes, de três ou mais quartos. Houve um aumento de 23% de compra de imóveis em Portugal de um ano para o outro e os investidores estrangeiros já representam 20% do mercado. “Hoje em dia, os brasileiros são bem-tratados porque se sabe que têm dinheiro”, conta-me um advogado que trabalha nesse ramo e que consultei para escrever este relato. Português, criado no Brasil, ele conhece bem a realidade dos dois lugares. Morou no Rio de Janeiro e voltou para Portugal há pouco tempo. Mantêm um escritório lá, mas vendeu a casa e comprou outra aqui. “Conheço muita gente nessa condição, que vendeu o imóvel que tinha no Rio e comprou em Lisboa ou no Porto. Trazem a família e ficam na ponte aérea, tocando o negócio daqui e indo de vez em quando para fazer reuniões. Muitos dos meus clientes acabaram por trocar Miami por Lisboa ou Cascais.”
Em 2017, uma revista semanal portuguesa fez uma extensa reportagem sobre os milionários brasileiros que se mudaram para Portugal. Na capa, lê-se: “Segurança, boas casas e um estilo de vida perto do mar é o que procura a nova elite que imigra do Brasil. Estão a chegar em força e pagam o que for preciso”. A legislação portuguesa estipula que um estrangeiro que comprar um imóvel no valor igual ou superior a 500 mil euros (mais de 2 milhões de reais) ou abrir um negócio que gere, ao menos, 10 postos de trabalho, recebe uma autorização para entrada e residência no país apelidada de “visto gold”. Na prática, essa pessoa – e os seus familiares – passam a ter um status parecido ao de um nacional ou naturalizado português. Enquanto os demais estrangeiros precisam provar que estão no país porque têm emprego, para estudar ou por algum outro motivo que justifique a obtenção de uma autorização de residência – quem tem o visto gold não precisa se preocupar com isso.
Diz a reportagem sobre os super-ricos brasileiros: “Os vistos gold para imigrantes desta nacionalidade (brasileira) são mais um indicador que reforça a tendência. Figuras discretas que parecem saídas dos núcleos ricos das telenovelas da Globo – muitas delas escudam-se no anonimato e pedem sigilo às imobiliárias –, aterram com mais frequência em Portugal nos últimos meses. Segundo dados recentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em 2017 foram concedidos 463 vistos gold a brasileiros. O número quase dobrou em relação ao ano anterior.
A vida de quem não tem um visto gold ou passaporte português é bem mais difícil. Quando cheguei, mesmo com um contrato de trabalho, por pura burocracia, passei mais de seis meses “em situação irregular” e tive que pagar uma multa bastante alta. Em fevereiro deste ano, agendei a minha renovação do título de residência. Ele vence em abril e só consegui data em outubro para renová-lo. Em tese, não há problema, não terei que pagar multa nem sou considerado “ilegal”. Mas é desagradável ter que andar com um papelzinho que prove que estou em dia com as minhas obrigações de estrangeiro.
A lentidão, burocracia e falta de informação nesses procedimentos é algo que vivi e vivo na pele, e sei, pelas conversas com os amigos, que não sou o único. Não sei como será para obter um visto gold, não tenho nenhum conhecido que o tenha feito, mas suspeito que não seja tão demorado nem cansativo como obter uma autorização de residência válida por um ano. E não só, tarefas como obter um número de identificação fiscal (o CPF daqui), abrir uma conta no banco ou alugar um imóvel pode se tornar uma dor de cabeça, se você não tiver alguém que o ajude.
OS DE CIMA E OS DE BAIXO
“Não dá mais, Brasil”, assim se chamava o especial que um canal de televisão fez sobre a vinda massiva de brasileiros para Portugal. Entrevistavam algumas famílias, recolhiam histórias de gente que tinham chegado recentemente. Todos falavam sobre a insegurança em terras tupiniquins e a situação política. Em dado momento, entrevistavam duas brasileiras que têm uma empresa de assessoria a novos moradores. A imagem mostrava uma delas filmando, com a câmera do telefone, um apartamento enquanto fala com alguém que está no Brasil interessado no imóvel.
“Nós fazemos tudo para as pessoas, tem gente que chega aqui sem ter visto a casa que comprou, só por fotos e vídeo. Quando chegam, a casa já está montada, escolhemos a decoração e tudo”, contava animada a empresária. Entrei na página da empresa e vi os serviços oferecidos. Além dos mais óbvios, como visto, transferência de dinheiro ou abertura de uma empresa, havia ali alguns itens curiosos: inscrição na academia, abertura de conta em banco, compra de carro e transferência da carta de motorista, indicação de empregada doméstica e babá, e até um “tour de orientação da zona de residência”. Pelos vistos, há quem pague para que lhe contem onde há uma farmácia, uma padaria e um caixa eletrônico perto de casa.
Comentei com um conhecido que estava escrevendo este depoimento e ele me passou por WhatsApp uma notícia com o comentário: “Acho que pode te ajudar”. Era reportagem de um jornal português dizendo que os hábitos e gostos dos brasileiros estão alterando o padrão de construção por estes lados. Principalmente nas zonas mais nobres de Lisboa e em Cascais e Sintra, duas cidades de praia muito apreciadas pelos brasileiros endinheirados. A aposta das construtoras é por casas com quarto de empregada, varandas amplas e garagem com vaga para dois ou mais carros.
Leio essa notícia e penso no rapaz que conheci em Malpensa há mais de 15 anos. Será que continua por aqui ou voltou para o Brasil? Se ainda estiver em Portugal, não deve lhe faltar trabalho. Talvez esteja construindo bonitas casas para alguns compatriotas que nunca tiveram problemas para entrar em Portugal, que jamais passarão pelo constrangimento que ele viveu no aeroporto de Milão. Gente que tem passaporte como o dele e o meu, mas com um carimbo dentro que abre muitas portas e facilita muito a vida. Gente que nunca vai saber o que é “estar em situação irregular”.
RICARDO VIEL, jornalista, vive em Lisboa há seis anos, onde trabalha na Fundação José Saramago.
MANUELA DOS SANTOS, designer e ilustradora à frente do Zezé Estúdio.