A análise e a contextualização da trajetória das mulheres no mundo ocidental e, em especial, no Brasil, têm importância fundamental para a compreensão da maneira como elas são retratadas no cancioneiro de Francisco Buarque de Hollanda. Nascido em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, com um “L” dobrado, ele é o quarto dos sete filhos do casal Maria Amélia e Sérgio Buarque de Holanda (com um “L” só), célebre historiador brasileiro. Desde muito cedo, foi inserido num ambiente intelectualmente rico e cercado de mulheres por todos os lados, entre elas as quatro irmãs, três das quais mais novas do que ele, e a mãe, figura basilar da sua família.
A casa dos Buarque de Holanda era local de frequentes encontros de poetas, escritores, músicos, jornalistas, intelectuais, diplomatas, cujas reuniões, não raro, eram embaladas por música, uma das paixões de Sérgio. Aos 12 anos, Chico já compunha algumas canções e até operetas, encenadas com a ajuda das irmãs. Os dois anos de educação em escola americana na Itália, durante o período em que o pai lecionou a cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma, renderam-lhe uma fluência em idiomas que o ajudou a abrir as portas da grande biblioteca paterna. Aos 15 anos, lia Honoré de Balzac, Albert Camus, Gustave Flaubert, Jean-Paul Sartre, André Gide, Marcel Proust, Stendhal, Franz Kafka, Tolstói e Dostoiévski. Entre os brasileiros, seu padrão de escritor passou a ser Guimarães Rosa. “Ninguém é filho do autor de Raízes do Brasil [75] impunemente”, anotou a jornalista Regina Zappa, uma das biógrafas de Chico. [76]
No fim dos anos 1950, vivia-se no Brasil uma atmosfera de encantos, em que se vislumbrava a possibilidade de realização do que se poderia chamar de uma utopia brasileira. O país, em suas imensas contradições, parecia, naquele momento, estar perto de reconciliar seus antagonismos históricos e rumar para a modernidade. Nesse cenário, a nova capital, Brasília, brilhava como a síntese do reencontro do Brasil consigo mesmo, símbolo da sociedade nacional integrada.[77] Virar Oscar Niemeyer, o arquiteto que a idealizou e construiu, era o sonho de muitos jovens da época. Chico Buarque foi um dos que embarcaram na onda. Ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo em 1962, mas logo se desinteressou pelas pranchetas. Entusiasmo, mesmo, ele encontrou nos bares do entorno da faculdade, ambiente de intensa agitação musical, onde a música popular brasileira fervilhava no embalo de todas as transformações que vinham ocorrendo desde a década anterior.
Quando o LP 78 rotações Chega de saudade, do baiano João Gilberto, saiu da prensa e ganhou as ruas em 1958, o Brasil ficou atônito. Aquela letra, aquele ritmo, aquela voz, aquela batida no violão revolucionavam a música no país e enterravam uma longa fase da canção nacional, repleta de boleros e acordeões. A Bossa Nova nascia transformando as melodias de então em “relíquias do romantismo noir de homens mais velhos, que tinham amantes e não namoradas e cuja alma era tão enfumaçada quanto as boates em que afogavam seus chifres”.[78] O novo movimento viraria uma febre, que despertaria nos jovens, como nunca antes na história brasileira, a vontade de cantar, compor e tocar um instrumento. Mais exatamente, o violão.[79] As letras da bossa nova também mudariam a abordagem da mulher, que deixaria de ser a “outra” ou a “Amélia”, a “dona de casa”, para virar musa inspiradora.
É em meio a esse clima que Chico Buarque resolve deixar de lado a arquitetura para investir em música. “Queria cantar como João Gilberto, fazer música como Tom Jobim e letra como Vinicius de Moraes.”80 Aos 20 anos, começou a compor profissionalmente e já não era desconhecido quando, em 1966, a música A banda explodiu no 2º Festival Popular de Música Brasileira da TV Record, transformando-o em sumidade nacional.[81] A canção carregava os contornos de modinha feliz e cheia de lirismo, nos moldes do que fora iniciado pela Bossa Nova.
Em artigo publicado no jornal Correio da Manhã naquele ano, o poeta Carlos Drummond de Andrade saudava “a felicidade geral com que foi recebida a passagem dessa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica”, que dava “bem a ideia de como andávamos precisando de amor”.[82] Antes dela, Chico Buarque já havia produzido algumas composições sobre o tema (amor). E, nessa época, também já contava com sete músicas que falavam sobre a mulher, embora nenhuma em que as mulheres falassem. Algumas até se tornaram sucesso. Mas todas elas ainda abordavam o elemento feminino, de certa forma, à moda da velha escola, de maneira muito assemelhada aos sambas da década de 1920, em que a mulher era uma espécie de objeto pitoresco na vida do homem, este o eu lírico, elemento central da canção, como ocorre em A Rita, de 1965.
Nessa letra famosa, a personagem feminina é reproduzida a partir de visões machistas construídas acerca das mulheres, como dissertado nos capítulos anteriores. Rita, faceira e aproveitadora, abandona o seu homem apaixonado. Na ruptura, leva tudo o que era dela (seu retrato, seu trapo, seu prato) e tudo o que podia levar dele: bens materiais e sentimentais (uma imagem de São Francisco e um bom disco de Noel) e a própria alma do sujeito (o sorriso, representação da alegria; o assunto, representação da capacidade de comunicação e interação; os planos, como perspectiva de futuro; os pobres enganos, como a crença numa vida feliz a dois; os vinte anos, na condição da própria juventude perdida). Vingativa, ela trata de matar o próprio sentimento do amor na saída, arranca o homem do seu peito e deixa muda a forma mais viva de ele se expressar: o violão. Tal qual Eva, a mulher seguia enganando o homem.
No ano anterior à A Rita, os militares haviam ascendido ao poder por meio de um golpe, e a turma da bossa nova, divergente quanto aos rumos do movimento musical, tinha rachado. Nara Leão, a musa bossa-novista, adotou a linha da canção de protesto, ao lado de compositores dos morros cariocas, cuja apoteose foi o espetáculo Opinião. Mas, após dois anos dessa aliança entre favela e burguesia, ela decidiu partir para outra etapa e descobriu em Chico Buarque o compositor ideal para renovar seu repertório, com canções que retomassem o lirismo do início da década. Nara, cantora então consagrada, projetou-o no cenário nacional ao gravar algumas de suas músicas, como Olê, Olá e Madalena foi pro mar.[83] Esta última gira sobre a mesma temática da mulher que deixa o seu amado a ver navios. E ele, resignado e apaixonado, procura lembrar a si mesmo que “Jesus manda perdoar/a mulher que é Madalena”.
Da Europa e dos Estados Unidos, a classe média brasileira recebia as notícias das agitações sociais e, em especial, da marcha das mulheres na luta por mais direitos e mudança de sua condição. Atenta aos ventos de um novo tempo, Nara – ela mesma uma mulher de papel vanguardista para a época – sugeriu a Chico que investisse em música desse gênero, sobre a temática feminina, para o qual ele parecia ter talento.[84] Surgiu, assim, em 1966, Com açúcar, com afeto, a primeira de Chico Buarque de Hollanda (nessa época, ainda com dois Ls) em que a letra é protagonizada por um eu lírico feminino que disseca os sentimentos da mulher de maneira sem precedentes na música popular brasileira. “Foi a primeira música que eu fiz (com a mulher) em primeira pessoa. Foi por encomenda da Nara (Leão). Ela pediu e eu escrevi”,[85] relembrou Chico durante a gravação de um documentário sobre a temática feminina em sua obra. Atualmente, cerca de 190 canções – mais que metade do que Chico produziu em quase cinco décadas – trazem a mulher como personagem poética.
Cumpre, inicialmente, destacar que letra de música pode, sim, ser considerada como poesia. Assim entendem, por exemplo, renomados poetas brasileiros da atualidade, como Affonso Romano de Sant’anna e Nelson Ascher, para os quais a discussão toda está malposta, em que pesem intelectuais norte-americanos, franceses e mesmo brasileiros considerarem a comparação escandalosa. No entendimento do crítico e ensaísta Afrânio Coutinho, por exemplo, a sociedade brasileira jamais elaborou o seu signo poético, peculiar, mesmo que polissêmico. Em decorrência disso, vive o vazio e a crise, cuja representação mais bem-acabada é a paraliteratura. Letra de Chico Buarque, aos olhos de Coutinho, é antiliteratura ou literatura da crise da literatura.[86] Mas, para pensadores como Ascher, o cerne da questão está em um problema de definições. Dependendo de onde se coloquem os limites da poesia, as letras estarão dentro ou fora deles.[87] Na mesma linha, Romano de Sant’anna defende a viabilidade de se estudar esteticamente um texto de música como poema.[88]
Corroboram esse entendimento os estudos lexicais de literatura dirigidos pelo professor Michel Jarrety. Neles, identifica-se claramente que a obra musical buarquiana pode ser classificada como “poesia sonora”. Na definição do próprio Jarrety, esse gênero reúne um conjunto de experiências “tão diversas, que, a partir de meados do século XX, construíram um lugar privilegiado para a voz, esteja ela trabalhando somente sobre a dicção, esteja ela amplificada por um microfone. Dessa forma, a voz pode ser pura ou bem-associada a sons ou a músicas. A parte do sentido se encontra, então, minorada em proveito do corpo e dos recursos da oralidade”. Jarrety, contudo, admite que “o livro não pode acolher na sua plenitude essa poesia que, por vezes, trabalha baseada nas unidades mínimas da linguagem”.[89]
Pode-se dizer que a poesia sonora de Chico Buarque é uma das que mais sensivelmente captam o feminino e melhor o exprimem na música popular brasileira. Por um lado, ela carrega uma visão masculina da mulher, numa lírica com contornos, muitas vezes, corporal e sensorial, como na canção Tororó (Dentro da fêmea Deus pôs/Lagos e grutas, canais). Por outro, apresenta um eu lírico feminino, por meio do qual a fala da mulher emerge de uma perspectiva espantosamente feminina, como em Pedaço de mim (Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu).[90] É a partir das vozes desse eu feminino e desse eu masculino que surgirão todas as figuras construídas de mulher nas letras de Chico Buarque.
Essas figuras do feminino repisarão, de muitos modos, os estereótipos e os papéis forjados para as mulheres na sociedade ocidental e, principalmente, na brasileira. Adélia Bezerra de Meneses enxerga na obra de Chico características da tradição grega do dionisismo, que se dirigia, sobretudo, aos que estavam fora da vida política, à margem da ordem social da polis, como os escravos e as mulheres. Linha de atuação intelectual, aliás, que seduziu muitos pensadores ao longo dos séculos, como Olympe de Gouges, conforme visto no primeiro capítulo. O discurso de Chico – que também trata de malandros, pivetes, operários – dá voz aos que não a têm. Assim, encontra-se nele o tema das mulheres vinculado ao tema da marginalidade social.[91]
Por essa razão, a poesia buarquiana, carregada de romantismo, não renova mitos ou reforça clichês sobre as mulheres. Antes de tudo, expõe existencialmente o cotidiano em sua profundidade e em seus limites,[92] e questiona a realidade feminina ao evidenciá-la.
Foi Paris quem deu ao compositor, quando ainda tinha 10 anos de idade, o seu primeiro encontro com a imagem de uma mulher desnuda. Na década de 1950, teatros, cartazes de rua, capas de revista parisienses expunham, sem pudores, mulheres com pouca ou nenhuma roupa. Para um garoto brasileiro daquela época, a experiência antecipava em muitos anos uma visão que, praticamente, só seria desfrutada na maioridade. “Aquilo foi um alumbramento pra mim”,[93] confessou o autor, que viveu infância e adolescência cercado pela mãe e quatro irmãs. Casado aos 23 anos com a atriz Marieta Severo, com quem a relação durou mais de três décadas, ele teve três crianças. Todas mulheres. “Tenho lá em casa várias almas pra me inspirar”,[94] chegou a ponderar. Não sem razão, as tantas e tão próximas fontes de inspiração talvez tenham levado Chico Buarque, desde cedo, a fazer da observação e da curiosidade os principais meios de construção da sua poesia com temática feminina.
“Há sempre, pra mim, um grande mistério na alma feminina. Eu tenho uma grande curiosidade com relação à mulher, como ela pensa, como ela age. Eu sou um espectador, um voyeur, um vedor das mulheres. Gosto de ver como elas se movem, ver como elas raciocinam, ver como elas reagem diante das coisas. É sempre uma surpresa pra mim. Não acaba. Eu me considero um grande desconhecedor da alma feminina, ao contrário do que se fala... Virou um lugar-comum por causa das canções. Eu sou um sujeito muito curioso exatamente por desconhecer, por querer saber, querer entender e não entender nunca.”[95]
Desse processo, redundaram poemas-canções que, selados pela marca da poesia em geral, versam sobre histórias de amor e desamor, sempre. E é no contexto de uma relação afetiva que se flagra o fundamental do feminino.[96] Percorrendo conflitos sentimentais dessa natureza, Chico Buarque aborda – ora por meio de um eu lírico masculino, ora por meio de um eu lírico feminino – características marcantes da mulher, a partir das quais constrói um discurso social significativo sobre a sua condição.
No início da sua carreira, as mulheres das canções tinham perfil passivo e alienado, circunscritas aos domínios do lar, de onde viam o mundo por uma janela. O exato estereótipo criado na sociedade brasileira para as brancas, conforme analisado no capítulo anterior. Entre as músicas mais ilustrativas dessa situação, estão Ela e sua janela e Januária, cujo nome tem origem no radical latino janus, de onde vem o termo janela. Mas, ao longo do tempo, essas mulheres foram mudando de perfil, tornando-se mais autônomas e, em alguns casos, passando inclusive a impor-se aos homens, como em Olhos nos olhos, a primeira música “mais feminina, que é uma mulher cantando a sua liberdade”,[97] segundo definiu Chico Buarque de Holanda (nessa época, já com um “L” só, após ter retirado o outro do sobrenome para manter a grafia original do pai). Nas poesias sonoras buarquianas, as mulheres, envoltas em histórias de amor, transformam sua condição do mesmo jeito que na vida, razão pela qual a trajetória do eu lírico em Chico Buarque insere-se no âmbito da problemática humano-existencial.[98]
Para Roland Barthes, “dois mitos potentes nos fizeram crer que o amor podia se sublimar em criação estética: o mito socrático”, segundo o qual “amar serve a engendrar uma multitude de belos e magníficos discursos, e o mito romântico”, cujo fundamento parte da crença de que se produz “uma obra imortal ao escrever sua paixão”.[99] De fato, Chico Buarque é notadamente reconhecido pela forma precisa como estrutura e mescla, nas letras de suas canções, imagens construídas e sensibilidade no uso das palavras. E, ainda, pelo que consegue evocar em quem escuta ou lê sua poesia. Em sua obra, há uma perfeita costura de signos, significantes e significados. Para falar sobre o amor, ele afronta “o esbanjamento da linguagem: essa região de enlouquecimento onde a linguagem é ao mesmo tempo muito e muito pouco, excessiva e pobre”.[100]
Com mais da metade do seu cancioneiro dedicado à mulher, o poeta ingressa, seja por meio de um eu lírico feminino, seja por meio de um eu lírico masculino, em um terreno que não é seu, mas do outro. É um campo desconhecido, como mesmo atesta Buarque, e minado de contradições. Por um lado, o poeta crê “conhecer o outro melhor que qualquer um e o afirma triunfalmente; e, de outro lado, ele é frequentemente tomado por esta evidência: o outro é impenetrável, raro, intratável”. Não se pode “abri-lo, voltar à sua origem, desfazer o enigma”. É dessa forma que o outro (a mulher em Chico Buarque, no caso em tela) aparece no discurso amoroso como um enigma insolúvel do qual depende a vida do autor. “É consagrá-lo como deus. No lugar de querer definir o outro (o que é que ele é?), eu me volto para mim mesmo: o que é que eu quero, eu que quero te conhecer? (…) Isso redundará no seguinte: meu outro se definirá somente pelo sofrimento ou pelo prazer que ele me dá.”[101]
À luz desse entendimento, resta claro que a invenção do outro, como analisa Jacques Derrida, surge a partir da invenção de si mesmo. É, então, que o poeta deve se preparar “porque para deixar vir o outro todo, a passividade, um certo tipo de passividade resignada pela qual tudo volta ao mesmo, não está colocada. Deixar vir o outro não é a inércia pronta a qualquer coisa. Sem dúvida, a vinda do outro, se ela deve restar incalculável e de uma certa maneira aleatória, ela se subtrai de toda programação. Inventar, isso seria, então, ‘saber’ dizer ‘vem’ e responder ao ‘vem’ do outro”.[102]
“As minhas (mulheres) são todas inventadas”,[103] disse Chico Buarque durante a gravação do DVD À flor da pele. Dessa maneira, ele acolhe e canta a mulher que lhe “passa em exposição”, para usar uma expressão de sua música As vitrines. As mulheres do seu cancioneiro são aquelas mesmas da sociedade, com suas características e seus estigmas, às quais ele sabe dizer “vem”, convidando-as à sua obra. São figuras do cotidiano, humanas, distanciadas da perfeição de um mundo utópico. Sua profunda compreensão do processo de transformação histórico-social feminino e do papel da mulher na formação da sociedade brasileira, temas dos dois capítulos precedentes, fica evidente em suas construções poéticas. É o modo como ele se prepara, para citar novamente Derrida, “a deixar vir, ao mesmo tempo inventar e deixar vir o outro”.[104]
A mulher inventada em Chico Buarque reflete de um jeito muito bem-elaborado a sua condição social, sem, no entanto, ratificar estereótipos ou propor idealizações. Assim, sua Iracema, ao contrário da “virgem dos lábios de mel e de cabelos tão escuros como a asa da graúna”, do escritor José de Alencar,[105] é uma imigrante ilegal que “voou para a América” e “tem saudade do Ceará, mas não muita”. Sua morena, diferentemente da de Álvares de Azevedo, que corava de vergonha diante das elegantes declarações de amor do poeta,[106] vem de Angola, requebra com sensualidade e sem pudores e é sua “camarada do MPLA”.[107]
A música, que chega hoje por tantos meios a uma massa amorfa chamada público, insere-se numa “forma de comunicabilidade” que Jean Baudrillard e Marc Guillaume classificaram como “espectral”. “A comunicação espectral realiza, sem dúvida, o ideal da comunicação: multiplicar as novidades a distância.” Isso, contudo, redunda no fenômeno do anonimato, uma vez que “o destinatário deixa de ser identificado. O anonimato inicia um corte que vai separar o sujeito não somente de seu sentimento de si mesmo e de seu contexto social, mas até mesmo de toda a realidade. Ele seria um meio de liberar o imaginário e, dessa forma, de tomar uma distância em relação a si mesmo”. Mas o anonimato é, também, “o operador que permite articular o mundo social, utilitário – portanto, em parte desumana, ao mesmo tempo necessária e funesta – e o mundo íntimo, passional, humano e, ao mesmo tempo, irrisório, mas essencial”.[108]
O fato de a música provocar “a elisão da identidade, como aquela de uma letra ao fim de uma palavra”,[109] propicia a sua recepção e aceitação por grupos de diversos matizes sociais. Como uma carta com infinitos destinatários, as canções fazem “surgir o outro no tema de que trata, sob a forma do discurso do inconsciente, uma alteridade que viria do próprio tema e seria, contudo, fonte de alteração”. Elemento imerso num “mundo social”, o sujeito emerge ao encontrar o seu “mundo íntimo”, a partir do momento em que dá contornos próprios e particulares às letras das músicas que recebe como anônimo. Essas ressonâncias da “espectralidade” fazem parecer que a canção lhe foi feita sob medida.
Alcançar essa façanha em larga escala – a de fazer com que, em um mundo de cultura de massa, o sujeito sinta-se único ao identificar-se e reconhecer-se na obra – é o grande objetivo de qualquer emissor de meio “espectral”. Nesse aspecto, Chico Buarque, como já o classificou o escritor Millôr Fernandes, parece ser a “única unanimidade” no Brasil.[110] Na crítica musical brasileira, praticamente inexistem retoques à sua obra. Os havidos fizeram parte de um momento muito peculiar da música popular, na década de 1960, em que integrantes de movimentos como o Tropicalismo e a Jovem Guarda rivalizavam com os remanescentes da bossa nova e independentes, como Chico.[111]
No que tange aos poemas-canções cuja temática é a mulher, apenas um afigurou-se polêmico, por pura incompreensão de algumas críticas feministas da época. Na década de 1970, foi lançada Mulheres de Atenas, produzida em conjunto com o dramaturgo e diretor de teatro Augusto Boal, que tem a Grécia como pano de fundo para retratar a condição de submissão feminina numa sociedade patriarcal (como a brasileira). A frase inicial de todas as seis estrofes – “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas” – foi interpretada por alguns integrantes do recém-surgido movimento feminista do Brasil como uma agressão e um escárnio. Obviamente, a análise apressada cedeu, em pouco tempo, espaço à razão e a música passou a ser enxergada no contexto em que foi produzida: o de denúncia de uma situação social. Atualmente, é considerada uma das mais belas composições buarquianas. “Havia um pouco de bobagem naquilo tudo (nas críticas). O feminismo levado às últimas consequências levava a besteiras”,[112] comentou Chico Buarque, décadas mais tarde.
Há, na obra buarquiana, no que concerne ao tema mulheres, um discurso marcado por uma alteridade “constitutiva da ipseidade (ou seja, o que constitui a individualidade de um ser como ele enquanto ele mesmo e diferente dos outros) ela mesma. A ipseidade do si mesmo” na poesia de Chico “implica a alteridade em um grau tão íntimo, que uma não se deixa pensar sem a outra, que uma passa um pouco na outra”. E, nessa linha de raciocínio, está “não somente uma comparação – si mesmo similar a um outro –, mas também uma implicação: si mesmo enquanto… o outro”.[113]
As mulheres inventadas de Chico Buarque de Holanda, ora percebidas por um eu lírico masculino, ora por um eu lírico feminino, protagonizam histórias, cujas narrativas forjam identidades próprias, como analisa Ricœur.[114] É essa identidade narrativa, essa identidade das personagens, das quais o perfil psicológico construído cria uma ligação entre elas e o público,[115] que será objeto da análise dos próximos capítulos.
ALBERTO DA COSTA LIMA, radialista, jornalista e advogado. O recifense foi removido pelo Ministério das Relações Exteriores, do qual é servidor, para a Embaixada do Brasil em Paris, em 2007. Lá, fez um mestrado em Línguas, Literatura e Civilizações Estrangeiras pela Universidade Paris III - Sorbonne, cujo trabalho final virou o presente livro. Atualmente, mora em Brasília.
NOTAS: 75 Raízes do Brasil, publicado em 1936, é considerado um dos melhores estudos já realizados sobre o processo de formação do Brasil e de sua sociedade. 76 Zappa, Regina, Chico, Perfis do Rio – Chico Buarque, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 3a edição, 1999, p. 93. 77 Silva, Fernando de Barros e, Folha Explica – Chico Buarque, São Paulo, Publifolha, 2004, p. 15. 78 Castro, Ruy, Chega de saudade – A história e as histórias da Bossa Nova, São Paulo, Companhia das Letras, 3a edição, 2006, p. 197. 79 Id., ibid., p.198. 80 Werneck, Humberto, op., cit., p. 32. 81 Silva, Fernando de Barros e, op. cit., p. 30. 82 Werneck, Humberto, op. cit., p. 50. 83 Zappa, Regina, op. cit., p. 58. 84 Werneck, Humberto, op. cit., p. 100. 85 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 86 Coutinho, Afrânio (direção), A literatura no Brasil, volume VI, Rio de Janeiro, Editorial Sul Americana, 2a edição, 1971, p. 226. 87 Ascher, Nelson, Letra de música é ou não é, enfim, poesia?Folha de São Paulo, São Paulo, 5 de outubro de 2002, Ilustrada, p. E2. 88 Sant’anna, Affonso Romano de, Música popular e moderna poesia brasileira, Petrópolis, Vozes, 1977, p. 97. 89 Jarrety, Michel (dir.), Lexique des termes littéraires, Paris, Librairie Générale Française, 2001, p. 330. 90 Meneses, Adélia Bezerra de, Figuras do feminino na canção de Chico Buarque, Ateliê editorial, São Paulo, 2001, p. 20. 91 Id., ibid., p. 41. 92 Boff, Leonardo, Chico Buarque e a cultura humanista cristã, in Chico Buarque do Brasil, Rinaldo Fernandes (org.), Rio de Janeiro, Garamond: Fundação Biblioteca Nacional, 2004, p. 85. 93 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 94 DVD Chico ou o país da delicadeza perdida, dirigido por Walter Salles e Nelson Motta. 95 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 96 Meneses, Adélia Bezerra de, op. cit., p. 21. 97 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 98 Silva, Anazarildo Vasconcelos da, O protesto na canção de Chico Buarque, in Chico Buarque do Brasil, op. cit., p. 178. 99 Barthes, Roland, Fragments d’un discours amoureux, in Œuvres complètes, Tomo 3 : 1974 – 1980, Paris, Éditions du Seuil, 1977, p. 547. 100 Id., ibid., p. 549. 101 Id., ibid., p. 586. 102 Derrida, Jacques, Invention de l’autre, in Psyché – Inventions de l’autre, Paris, Éditions Galilée, 1987, p. 53. 103 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 104 Id., ibid., p. 54. Para expressar melhor essa ideia, Derrida criou o verbo “invenir”, formado pela fusão dos verbos em francês inventer (inventar) e venir (vir). 105 O romance Iracema, representante da fase indianista do Romantismo brasileiro, foi escrito por José de Alencar em 1865. 106 O poema Morena, de Álvares de Azevedo, escritor da segunda geração romântica brasileira, também conhecida como ultrarromântica, foi inserido na publicação póstuma Lira dos vinte anos, que reúne parte expressiva da sua obra. A primeira edição data de 1853. A última versão, cujo formato circula atualmente, é de 1942. 107 MPLA é a sigla do Movimento Popular de Libertação de Angola, surgido em 1956, para lutar contra a dominação colonial portuguesa e em favor da independência angolana, somente conquistada em 1975. Camarada é a forma de tratamento difundida entre os comunistas, que o MPLA, vinculado ideologicamente ao sistema, adotou entre os seus integrantes. 108 Baudrillard, Jean et Guillaume, Marc, Figures de l’altérité, Paris, Descartes & Cie, 1994, pp. 30-31. 109 Id., ibid., p. 32. 110 Werneck, Humberto, op. cit., p. 62. 111 Id., ibid., pp. 58-59. 112 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 113 Ricœur, Paul, Soi-même comme un autre, Paris, Éditions du Seuil, 1990, p. 215. 114 Id., idem., p. 175. 115 Jouve, Vicent, Poétique du roman, Paris, Armand Colin, 2a edição, 2007, p. 91.