CONTINENTE Como foi a sua apresentação?
ROBERTO MENESCAL A gente ficou uma semana lá em Nova York, dando entrevistas, e conhecendo aqueles músicos todos, que seriam inalcançáveis pra gente. Num dia, estava na casa de um; depois, na casa de outro. Veio a apresentação, e eu nunca fui cantor, não é a minha cantar. Sou mais instrumentista, compositor. E chega lá, na véspera, não preparei nada com ninguém. Tinha que ter tocado com Oscar Castro Neto, com Sérgio Mendes, eles se ofereceram. Mas chegou na véspera, eu perguntei: “Como é que a gente faz?” Aí, tanto um quanto o outro falaram: “Cara, aí não dá mais para preparar o negócio com você.” E eu virei pro produtor e disse: “Não vai dar para eu me apresentar.” Ele falou: “O quê?! Você veio, está há uma semana aqui, passeando, indo na casa dos músicos todos, e agora não vai se apresentar? Está anunciado!” Entrei no Carnegie Hall, que é assustador. Você entra por trás, e é a aquela coisa de fundo de teatro, rua decadente, entradinha de teatro. Quando você entra, vê aquele palco, aquela plateia fabulosa; levei um susto e tive que cantar. A primeira vez que cantei na vida foi no Carnegie Hall. Acho que ninguém fez isso, estrear no Carnegie Hall. Mas durou um dia a carreira de cantor. No dia seguinte, eu disse: “Não quero cantar mais, não.”
CONTINENTE Você atribui o fim do ciclo da Bossa Nova a esse show, porque as pessoas se dispersaram? Ou foi o golpe militar, dois anos depois, que acabou com o clima bossa-novista no país?
ROBERTO MENESCAL Acho que as duas coisas. Essa dispersão pelo mundo, na realidade, foi um renascimento, o final de um ciclo no Brasil, onde a gente se encontrava todo dia, toda noite. Ao mesmo tempo, as raízes da nossa música foram se abrindo para todo o mundo, do Japão aos Estados Unidos. E, por outro lado, logo depois começa a ditadura, o golpe militar, e a gente leva aquele susto. Começam também a aparecer compositores que eu chamo de “compositores da ditadura”, que surgiram com a missão de lutar contra aquele regime, mesmo os compositores que já estavam sendo conhecidos, como Edu Lobo, o próprio Marcos Valle. E eu, aquele playboy de Copacabana, que jogava futebol na praia, não me sentiria honesto, se fizesse isso. De repente, a terra era de ninguém. Meu parceiro, Ronaldo Bôscoli, falou assim: “Beto, a gente vai ter que hibernar um pouco, esperar passar esse regime totalitário, pra gente voltar a fazer a nossa música.” Você está ouvindo?
CONTINENTE Estou ouvindo.
ROBERTO MENESCAL Aí, nós hibernamos. Eu fui tocar com a Elis Regina, e saí pelo mundo trabalhando. Depois, fiquei 15 anos sem tocar, porque entrei para a gravadora Polygram e fui alçado ao cargo de diretor artístico. E, com 80 artistas de primeiro time, não tinha tempo pra dormir, imagine pra tocar. Parei de tocar, não fazia mais música. Fiz Bye, bye, Brasil, porque era para a trilha do filme de Cacá Diegues. Fiz com Chico. Minha carreira de compositor tinha passado para segundo plano, até que voltei em 1985. Larguei a Polygram, larguei tudo, fui para o Japão, gostei novamente da vida de música.
CONTINENTE Quando você perguntou “está ouvindo?”, lembrei da história de João Gilberto, que ligava para você de madrugada, passava horas falando e perguntava: “Está ouvindo?” Você respondia “sim”. E ele: “Então, repita tudo o que eu disse.”
ROBERTO MENESCAL Eu sofri muito essa situação. Ele dizia: “Rapaz, você está dormindo.” “Não estou, não, João.” “Então, repita o que eu falei.”
CONTINENTE Queria que você falasse sobre a sua relação com João Gilberto. No livro Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer, você disse (para o jornalista alemão): “João é perigoso, tem uma coisa de sombrio, ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.” E aí você fala que as pessoas faziam tudo o que ele pedia. E você era uma dessas pessoas.
ROBERTO MENESCAL É verdade. Eu fui escravo. Agora, você sabe o final desse livro, né? O autor se matou.
CONTINENTE Sim.
ROBERTO MENESCAL Ele (Marc Fischer) falava assim: “Por que você o acha perigoso?” “Rapaz, tem que tomar cuidado, porque você vai perder sua personalidade.” Ele dizia: “Não é possível.” E perdeu, né? Você vê que o cara era um daqueles alucinados por João Gilberto, como tem no mundo até hoje. Acabou se matando, porque, sei lá, achou que realizou a obra que ele queria. E que não tinha mais nada na vida pra fazer. O João tem uma personalidade muito forte. Eu sempre falava para as pessoas: “Não chega perto do João, que você está perdido.” O cara não acreditava: “O quê? Comigo não, eu não gosto da música dele.” Cinco minutos depois, o cara estava: “Sim, João, o que você quer? Do que você precisa?” É impressionante o domínio dele sobre as pessoas, sobre a plateia. A força dele aparece naturalmente.
CONTINENTE Como foi o seu primeiro contato com ele?
ROBERTO MENESCAL Eu ia muito aos ensaios do Trio Irakitan. Aí, eles mostraram Ho-ba-la-lá e Bim-bom. Fui conhecendo a música do João. E, um dia, era o aniversário de 30 anos do casamento dos meus pais. Eles nunca tinham dado uma festa na vida, e deram uma festa de gala, todo mundo com aquelas roupas finas, as mulheres bem-produzidas. E eu, garoto, fiquei na porta recebendo as pessoas e os presentes. De repente, tocou a campainha. Abri, era um cara desconhecido. Pensei: “Deve ter vindo entregar alguma coisa.” Falei: “O que é?” Ele disse: “Você tem um violão? Eu queria tocar.” Mas ele não falava quem era ele. Abri a porta um pouquinho e mostrei: “Olha, está havendo uma festa aqui em casa, um montão de gente.” Aí, ele falou: “Ih, é grave, hein? Mas a gente não pode tocar?” Eu sem saber quem era. “Pô, cara, é difícil, eu tô aqui recebendo as pessoas.” “Mas não tem um lugarzinho que a gente possa tocar?” Aí, eu falei: “Entra comigo aqui rapidinho.” Entramos no quarto, o violão estava na cama. Ele pegou e já fez: “É, amor, ô, ho-ba-la-lá…” Falei: “Pô, você é o João Gilberto?!” Ele falou: “Sou, como é que você sabe?” Falei: “Por causa da tua música.” E ficamos tocando. Ele falou: “Não dá pra gente ir embora, não?” Ele me arrancou da minha casa, da festa dos meus pais. Saí com ele e fui mostrando as casas de Nara Leão, do Carlinhos Lyra, da turma toda. Fomos de casa em casa. Fiquei três dias fora com João. A gente tocando, com a mesma roupa. Aí, ficamos muito amigos. Fiquei dependente do João durante anos. Até no concerto do Carnegie Hall, fiquei muito dependente do João. E lá, eu falei: “João, eu vou me mandar, porque minha vida está complicada, tenho que me soltar um pouco.” Porque todo dia eu ouvia: “Vem cá, o que você vai fazer? Me empresta teu violão, que esqueci o meu.” Eu ficava muito dependente dessa relação; fazendo minha vida, tudo, mas sempre tinha uma coisa. Aí, em 1962, falei: “João, vou me mandar, porque vou ter que achar meus caminhos.” Ele falou: “Rapaz, que sacanagem…” E ainda me cobrou! Mas a última vez que nós estivemos juntos foi ali.
CONTINENTE Mas, ainda assim, vocês mantiveram contato por telefone?
ROBERTO MENESCAL Muito pouco. Porque falei: “João, não posso ficar aqui às três da manhã.” Aí, ele dizia: “Mas, rapaz, Caymmi fica.” “Mas eu não tenho o tempo do Caymmi. Ele está feito na vida. Eu tenho que me fazer.” Ele disse: “Então, tá. Sacanagem…” Ainda me botou uma culpa na cabeça. Mas continuei com a admiração total por ele. Acabei de receber um livro de um japonês sobre o João, que descreve todas as formas como ele canta cada música. É outro escravo do João Gilberto. No livro João Gilberto, um cara diz: “Esse é o maior cantor que eu conheci na vida.” O outro fala: “A Barbra Streisand é muito boa, o Frank Sinatra é muito bom. Mas ninguém chega aos pés do João Gilberto.” Isso no mundo todo, as pessoas que conheceram e admiram a arte dele. E você vê que a gente acaba conversando sobre João Gilberto. E, se bobear, a gente fica até de noite conversando sobre João Gilberto.
CONTINENTE Mas eu queria falar sobre outras coisas também, como a sua parceria com Ronaldo Bôscoli. Como era o processo?
ROBERTO MENESCAL Era um processo meio de casamento. A gente é completamente ao contrário. Ele, noite; eu, dia. Acho que isso completava a gente e isso gerou muita música. O Ronaldo era um grande letrista. O Caetano mesmo falou: “Ronaldo Bôscoli foi um dos maiores letristas que eu conheci.” E o Ronaldo, por sua vez, teve uma hora que, quando a Tropicália entrou forte mesmo, falou: “Beto, não dá pra fazer mais letra depois de Caetano, Gil, Chico, essa turma.” Aí foi quando eu entrei para a Polygram também, e a gente parou de compor. Fizemos mais umas duas ou três músicas. Mas eu já estava com a cabeça em outro lugar. E ele estava fazendo música com outras pessoas também. Mas foi meu grande letrista. Ele tinha um ciúme de mim, por eu estar sempre viajando com as cantoras. Até me apelidou de Rabo de Cometa, dizia que eu estava sempre atrás de uma estrela. Porque a vida também me abriu para trabalhar com as grandes cantoras. Aliás, o Brasil é o país das cantoras. Estou sempre com uma cantora daqui, uma cantora de fora. Gravei recentemente um disco com uma pessoa que adoro, Stacey Kent, uma cantora de jazz americana. Minha carreira é meio fora do que está acontecendo na TV, na rádio.
CONTINENTE Hoje a diversidade musical é muito maior; antes, ficava tudo muito dominado pelas gravadoras. Como você observa esse novo cenário?
ROBERTO MENESCAL Hoje todo mundo tem seu estudiozinho caseiro. Isso é bom. Tem o lado ruim também. Aparece muita coisa ruim. Essa diversidade está acontecendo de uma forma muito grande. Agora quem se salva, a gente vai ver aos poucos. Na verdade, é o fim de um ciclo, que começou nos anos 1920, no século passado, quando o samba veio, o jazz veio, o cinema veio e a televisão, isso tudo veio trazendo uma série de artistas. Estou falando da área de música, mas também de todas as áreas, dança, cinema… Mas, na área de música, os Estados Unidos projetaram esses cantores todos. Acho que esse ciclo está se fechando agora.
CONTINENTE Você, que tem acompanhado esse mercado há 60 anos, qual a avaliação que faz dele?
ROBERTO MENESCAL Tem uma turma que faz música como investimento, a música sendo reconhecida por investidores, como o cara que investe na bolsa de valores. Isso é principalmente o sertanejo. Pegam um garoto começando, fazendo um showzinho com 300 pessoas, avaliam o cara, botam dinheiro, cobram um percentual alto dele. Esses artistas acontecem muito rapidamente e com uma estrutura que ninguém teve até hoje. Então, dominaram o país. Nunca pensei que o sertanejo fosse entrar no Recife, por exemplo, e entrou, como entrou em qualquer lugar do Brasil e está chegando ao Japão e a vários lugares do mundo. Mas esse domínio tem uma duração, porque é uma música que não te faz pensar muito. Na nossa música, a gente pensava muito nas harmonias, queria puxar o público para um degrau acima. Ao mesmo tempo, nunca tive tanto trabalho na música como tenho agora. Porque tem a turma que vive da mídia e a que quer “outras coisas”, procura na internet. Tudo o que a gente faz está cheio de público.
CONTINENTE Você está prestes a fazer 80 anos. Como é a expectativa de chegar a essa idade? Isso tem um peso pra você?
ROBERTO MENESCAL Vou fazer 79,99 – aquele preço de remarcação. Uns amigos de colégio, de vez em quando, vêm falar comigo – penso: “Pô, esse cara foi meu colega, ele tem minha idade.” Aí, acho o cara acabado, não só fisicamente, não, mas mentalmente, intelectualmente. “O que você faz?”, pergunto. “Eu tô aposentado.” “Eu sei, mas o que você faz?” “Ah, tô aposentado.” Pô, aquilo me bate um negócio. Fico pensando: “Como é que eu posso não fazer nada?” Então, não concebo uma coisa dessas. E eu tenho de estar me lembrando de que estou fazendo 80 anos, senão vou fazer estripulias. Adoro trabalhar, trabalho como muito pouca gente. Então, não tem esse negócio dessa idade pra mim. Acho que tudo é atitude. Vim, nesses últimos 20 anos, preparando a minha cabeça para o lado bom. O país está ruim, a gente sabe, está uma desgraça, mas estou sempre falando: “Não, mas isso é bom, é o princípio de um fim.” Estou sempre achando que está tudo bom. Se está chovendo, falo: “Oba! Vou arrumar o armário hoje de manhã.” Se está sol, “Vou lá para fora, ver minhas plantas”. Então, estou sempre procurando o lado bom da vida. E isso te leva adiante, a atitude com você mesmo, o teu físico, não deixar o corpo arquear. Estou sempre levantando o ombro. Digo “Vamo lá” pra mim mesmo, como se estivesse me comandando. O caminho é muito grande pela frente.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente online.
EXTRA | Confira AQUI a matéria de capa da Continente #34 sobre outro ícone da bossa nova, Vinicius de Moraes.