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Recife eclético, conversinha fiada

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Abril de 2017

"Minha mágica funciona ao contrário, afundo com o Recife ao invés e emergir. Quem manipula a perversa varinha de condão?"

Ilustração Maria Júlia Moreira

[conteúdo da ed. 196 | abril de 2017]

– Como vamos pensar em recuperação de prédios, se as pessoas estão no maior abandono?

Mereço a resposta. Atrevi-me a tecer comentários sobre patrimônio em plena terça-feira gorda, em meio ao barulho e ao calor, bebendo cerveja quente e ruim, três latas grandes por 10 reais.

– Mas, para a reforma do Palácio da Alvorada não faltou recurso. Michel Temer arrancou 24 milhões dos contribuintes e deu uma mão de cal no invento de Niemeyer. Puro desperdício. A recatada não gostou e a família real continua no Jaburu. Nosso dinheirinho foi pro ralo.

– Roda, roda, roda... estou de folga, cara. Sacou que é carnaval?

Imaginei que funcionário do patrimônio histórico e arquitetônico dava plantão 24 horas. Eu não descanso. Levanto os olhos, vejo um prédio antigo ameaçando ruir e a tristeza desaba em cima de mim. Melhor se fosse uma viga de sucupira, madeira em extinção. Abria minha cabeça em duas, eu morria de vez e parava de pensar. Ou adquiria os poderes das três fadinhas de Disney – Fauna, Flora e Primavera – com que sempre sonhei. Elas transformam o mundo no que querem, apenas mexendo a varinha de condão. Nem apelam à fórmula mágica das histórias que vovó contava: minha varinha de condão, com os poderes que Deus te deu... São contemporâneas, agem em tempo virtual, vapt, vupt.

Viciei-me em ser fada desde que vim morar no Recife. Não podia olhar uma casa aos pandarecos, paredes com azulejos portugueses roubados, altares barrocos devorados pelos cupins, sem lançar mão dos meus poderes mágicos. Invocava gênios, bruxos e feiticeiros em vão. Não ia além do desejo. Fechava e abria os olhos, e tudo continuava em ruínas, no mesmo descaso e abandono. Mas, na imaginação, eu não tinha medidas. Draguei o Capibaribe e tornei-o navegável; despoluí as águas; saneei o Recife inteiro, os bairros mais distantes e esquecidos; contive o avanço do mar e as dentadas dos tubarões; aprovei a altura máxima de cinco andares para os prédios da cidade, restaurando a brisa marítima; estabeleci 200 metros de praia, sem construções, em toda orla de Pernambuco; descongestionei o centro, limpei a cidade de outdoors e placas... Tudo num passe de mágica, num abrir e fechar de olhos.

Pensam que sou o único maluco?

O único a sonhar ser fada?

Salagadula mexegabula bibidi-bobidi-bu

Junte isso tudo e teremos então...

Quando fiz a curadoria das exposições de Guita Charifker e Gilvan Samico para a Pinacoteca do Estado de São Paulo, recebi a visita de seu diretor, Marcelo Araújo. Numa tarde em que contemplávamos as ruas convergindo para a praça do Marco Zero, se afunilando em prédios que dão o perfil ao lugar por onde a cidade começou, protagonizamos uma cena de fadas.

– Que maravilha! Marcelo Araújo exclamou.

Depois, cobrindo os olhos com a mão:

– Que horror! Como permitiram uma coisa dessas?

Sem descobrir os olhos, com a mão livre apontava o edifício sede da empresa Cimento Nassau, do grupo João Santos.

– O que foi, Marcelo? eu perguntava aflito.

Trata-se de um edifício moderno, fachada em vidro, de influência americana, erguido sobre a demolição do antigo Banco do Brasil, construção eclética das décadas de 1920 a 1930, que se harmonizava em estilo com os da Associação Comercial, Caixa Econômica e Bandepe. Na época da substituição, o IPHAN nacional não se interessava pela arquitetura eclética, tombando apenas os patrimônios do período neoclássico para trás. O Escritório destrói a escala em altura da paisagem do bairro, numa dissonância lamentável.

– Se pelos menos se tratasse de uma intervenção como a pirâmide de vidro, no Louvre. Sempre que venho ao Recife e vejo essa coisa feia, desejo ser uma fada e com um toque mágico voltar ao prédio original.

Como permitiram uma coisa dessas?

A pergunta me fere.

O mesmo que as torres gêmeas do bairro de São José, o projeto de novas torres no Cais José Estelita, o bairro de Boa Viagem transformando-se em concreto, a avenida Dantas Barreto erguida sobre ruas antigas e uma igreja, casarões deixados ao abandono até ruírem e virarem edifícios modernosos, a Boa Vista sucateada, as praças se transformando em lar de mendigos.

Minha mágica funciona ao contrário, afundo com o Recife ao invés de emergir. Quem manipula a perversa varinha de condão? Não sou eu. Os artistas se esforçam, escrevem romances e novelas, rodam filmes, protestam nos festivais, puxam coros de vozes nos trios elétricos, publicam crônicas nos blogs, encenam espetáculos. A força da água mole na pedra dura. O condão de políticos e empreiteiros é de ferro e cimento.

Até lembrei uma história acontecida nos Estados Unidos. Li-a narrada pelo jornalista Paulo Francis, que não tinha maior apreço pelos nordestinos. Se o relato for mentiroso, fica por conta dele.

Antes de autorizar uma nova invasão do Vietnam, o presidente americano reúne intelectuais e artistas na Casa Branca para consultá-los sobre a decisão. Invadir ou não invadir? A pergunta provoca alvoroço geral, ninguém está acostumado a isso, todos se posicionam contra a guerra. O presidente agradece e informa que irá acatar a opinião. Um assessor entra na sala, o presidente pede licença e se ausenta por um momento. Volta em seguida e a confraternização se prolonga. Ao saírem à rua, os artistas e intelectuais são surpreendidos pelas manchetes dos jornais. No tempo em que saiu, o presidente americano autorizou o envio de novos contingentes de navios, aviões, soldados e armas ao Vietnam.

O que nós achamos e queremos é pouco considerado.

Mesmo assim, teimo em aporrinhar a arquiteta do patrimônio histórico.

– E se investirmos nos prédios e nas pessoas?

Mas, ela vai longe, arrastada por um caboclinho caindo aos pedaços. Bebe cerveja quente e barata, 10 reais três latas grandes. 

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