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A ascensão da música às telas

Documentários sobre o rock conquistaram espaço no cinema como uma temática relevante, forjando um subgênero com adesão de público, crítica e premiações

TEXTO Marina Suassuna

01 de Fevereiro de 2017

Documentário do festival de Woodstock, de 1969, é um dos clássicos do gênero

Documentário do festival de Woodstock, de 1969, é um dos clássicos do gênero

Foto Reprodução

[conteúdo da ed. 194 | fevereiro 2017] 

Com o surgimento do cinema direto nos anos 1960, a maneira clássica de fazer documentário sofreu uma transformação radical. No lugar da encenação, passou a ser valorizada a espontaneidade diante da câmera, a intervenção mínima do realizador e a intimidade com o objeto filmado, além do uso de plano sequência, câmera no ombro, fotografia despojada e improviso. A nova tendência favorecia, ainda, os elementos dramáticos do mundo real: som direto nos ambientes, diálogos, gestos e expressão facial. Nesse contexto, um dos principais interesses dos documentaristas foi filmar personalidades públicas e do show business num viés intimista. Músicos e bandas famosas de rock ganharam a tela, forjando um subgênero de vocação bastante popular, conhecido como rockumentary.

A nova linguagem documental tinha como pano de fundo a revelação da cultura jovem a partir da difusão da música pop e do rock, quando houve a ascensão de vários ídolos. Entre as personalidades que se tornaram objeto fílmico está Bob Dylan, cuja turnê no Reino Unido, em 1965, foi documentada em Don’t look back, de A.D Pannebaker, um dos mais profícuos e atuantes documentaristas da época.

Pannebaker foi responsável por documentar o primeiro grande festival de rock do mundo, em junho de 1967, em Monterey, na Califórnia, resultando no documentário Monterey pop (1968). Também registrou os bastidores do show mais emblemático de David Bowie em Ziggy Stardust and the spiders from Mars (1973), quando o astro anunciou sua despedida dos palcos. Em 1964, jovens de todo o mundo lotaram os cinemas para assistir ao primeiro filme dos Beatles, A hard day’s night. Dirigido por Richard Lester, o filme promocional fez sucesso de público e crítica justamente pelo formato inovador, que documentava a beatlemania com um caráter cômico, descontraído e cheio de improviso. Em 1969, os Rolling Stones entravam em turnê histórica pelos EUA, que deu origem a mais um rockumentary de sucesso na época, Gimme shelter (1970), dos irmãos Mayles e Charlotte Zweig.

BONS FRUTOS
O rockumentary, por sua vez, abriu as portas para que a música conquistasse espaço no cinema como uma temática relevante e consistente. Prova disso é que, mais de 50 anos depois, sobretudo nas últimas duas décadas, os documentários sobre música continuam gerando bons frutos, mostrando um desempenho notável e ocupando cada vez mais espaços.

“Existe uma atenção maior por parte do público, dos meios de comunicação e dos programadores em relação a esse tipo de filme”, acredita Marcelo Aliche, curador da edição brasileira do In-Edit Festival Internacional de Documentários Musicais, criado em 2003, em Barcelona, na Espanha, com edição em vários países como Colômbia, Chile, México, Argentina, Alemanha. Além de exibir uma seleção dos documentários musicais mais expressivos da atualidade, o festival, cuja edição brasileira acontece anualmente em São Paulo e em Salvador, promove diferentes atividades relacionadas aos filmes, entre shows, debates, encontros com diretores, feiras e projeções ao ar livre, uma experiência completa para quem gosta de ver o mundo através da música.

Em 2013, o Oscar de melhor documentário de longa-metragem foi para uma produção com temática musical. Dirigido pelo sueco Malik Bendjelloul, Searching for Sugar Man narra a saga do cantor e compositor folk norte-americano Sixto Rodríguez que, após 24 anos de anonimato, tem a sua carreira radicalmente transformada. No mesmo ano, o filme foi a atração principal da quinta edição do In-Edit Brasil, além de ter sido exibido em diversos festivais pelos EUA, arrebatando prêmios e plateias. Em 2014, A um passo do estrelato, sobre backing vocals de grandes artistas ganhou o Oscar. Em 2016, um outro documentário de música foi contemplado pela premiação: Amy, dirigido por Asif Kapadia, que se debruçou sobre a vida da cantora britânica Amy Winehouse, de sua infância ao percurso artístico, passando da eclosão à sua cessação, as inspirações herdadas, a influência e seu posicionamento cultural.

Na esteira da tendência de documentar cantoras mulheres, surgiram, nos últimos anos, além de Amy, títulos como Janis: little girl blue (2016), sobre a cantora Janis Joplin, com lançamento comercial nas salas de cinema, Mercedes Sosa – A voz da América Latina (2013), Beyoncé: life is but a dream (2013) e What happened,Miss Simone? (2015). Este último, dirigido por Liz Garbus, filha da cantora Nina Simone, foi encomendado pela Netflix, que produziu e lançou o filme exclusivamente no serviço de streaming, no qual os documentários de temática musical vêm obtendo grande êxito.

Basta acessar a categoria do gênero na plataforma online e verificar o número de produções disponíveis: quase 50 documentários de música. Não se pode esquecer, também, os inúmeros títulos ainda inéditos e que tiveram exibição apenas em mostras, festivais ou salas especiais, fora do mercado cinematográfico e em pequenas mostras de festivais como a Mostra Mimo de Cinema, Mostra Play the Movie (do festival Coquetel Molotov), Festival Internacional de Cinema de Arquivo – Recine e É Tudo Verdade – Festival de Internacional de Documentário.  

CAMADAS SUBJETIVAS
Boa parte do encanto despertado pela safra atual de documentários que tratam de música certamente resulta dos princípios do rockumentary. Por meio desse subgênero, tornou-se possível acessar camadas subjetivas do artista, desvelar seu entorno, descortinando um âmbito privado ao qual o espectador não teria acesso fora da tela. De acordo com a pesquisadora baiana Natalia Rueda, “o espectador pode chegar ao documentário mais atraído pelo músico que pelo filme, através do qual tem acesso a uma espécie de backstage que o aproxima da vida pessoal do rock star que apenas conhece no palco”.

Por outro lado, há uma relevância do documentário musical que transcende o simples relato biográfico sobre músicos e bandas. De acordo com Marcelo Aliche, os documentários de música têm relevância pelo momento histórico, pela pesquisa, imagens, dados. “Muita gente começou a entender a oportunidade de trabalhar com mercados musicais atrelados a conteúdo. No futuro, músicos, antropólogos, jornalistas e gente de diversas áreas poderão beber dessa fonte e fortalecer seu trabalho, pois a principal contribuição desse subgênero é registrar grandes histórias e deixá-las para a posteridade. Esses filmes serão fontes de pesquisa, seja por suas qualidades musicais e cinematográficas ou por aspectos políticos, sociais, históricos, humanos”, atesta o curador.

Exemplos disso são os documentários Monterey Pop (1968) e Woodstock: 3 days of peace & music (1970), de D.A Pennebaker e Michael Wadleigh, respectivamente, pioneiros nesse modo de fazer documentário. O fato de esses realizadores terem registrado dois dos maiores eventos da geração paz e amor, numa conjuntura política e social de inconformismo e contestação em que a música pop e os festivais ocupavam um importante lugar na produção de pensamento e ativismo dos jovens, fez de seus filmes, por si sós, documentos históricos. Através deles, foram fornecidos retratos autênticos da contracultura americana para diversas gerações posteriores que não vivenciaram aquele período.

CONTEXTO NACIONAL
No Brasil, mais de 70 mil espectadores foram aos cinemas assistir a Uma noite em 67, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil. Este, que mereceu a quinta maior bilheteria brasileira nos cinemas em setembro de 2010, mostra, com imagens vibrantes, os bastidores do Festival da TV Record em 1967, que foi um ponto de inflexão na história da MPB. A música popular produzida nas décadas de 1960 e 1970 é um dos universos musicais mais apreciados e recorrentes nos documentários de música brasileira.

Entre os mais aclamados, podemos citar Saravah (1969), de Pierre Barouh, Doces Bárbaros (1976), de Jom Tob Azulay, Tropicália (2014), de Marcelo Machado, Cartola: Música para os olhos (2007), de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, Filhos de João – O admirável mundo novo baiano (2009), de Henrique Dantas e Wilson Simonal: Ninguém sabe o duro que dei (2009), de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvino Leal. Este último, além de premiado no festival É Tudo Verdade, é uma das maiores bilheterias do gênero no Brasil.

Ao refletir a abrangência e as implicações de posicionamentos culturais e políticos dos biografados, documentários como Jards (2013), Jorge Mautner – O filho do holocausto (2013), Loki – Arnaldo Baptista (2008), Raul – O início, o fim e o meio (2014), Olho nu (2014), sobre Ney Matogrosso, e Daquele instante em diante (2011), sobre Itamar Assumpção, acabam produzindo experiências sobre o Brasil. Isso quer dizer que falar de artistas e músicos num determinado contexto sociocultural é também jogar luz sobre a identidade de uma nação. Em Cartola: Música para os olhos, por exemplo, a dupla pernambucana Hilton e Lírio reflete sobre a construção da memória do país através da biografia de Cartola, sambista, artista e negro, que fez história num contexto de cultura popular urbana.

Pernambuco é parte importante do desempenho dos documentários musicais no Brasil. O homem que engarrafava nuvens (2008), de Lírio Ferreira, sobre o compositor Humberto Teixeira; Sete Corações (2014), de Dea Ferraz, sobre os mestres de frevo, Caranguejo elétrico (2016), de José Eduardo Miglioli Junior, sobre Chico Science, Faço de mim o que quero (2009), de Petrônio de Lorena e Sergio de Oliveira, que aborda a produção da música brega, e Di Melo: O imorrível, de Alan Oliveira e Rubens Pássaro, são alguns dos títulos que atestam a vocação do estado para o subgênero documental. Atualmente, está sendo produzido Reginaldo Rossi, meu grande amor, documentário sobre o Rei do Brega, dirigido por José Eduardo Miglioli Junior.

NICHO DE MERCADO
A participação de reconhecidos diretores da indústria cinematográfica, como Martin Scorsese, na produção dos rockumentarys, também contribuiu para o sucesso comercial desses documentários ao longo dos anos. Embora não tenha se dedicado exclusivamente a esse gênero cinematográfico, Scorsese conta em sua filmografia com um número razoável de produções desse tipo. Além de ter editado Woodstock: 3 days of peace & music, dirigiu os documentários The last waltz (1978) – leia sobre isso na matéria da página 70, No directon home (2005) e George Harrison: Living in the material world (2011). Produziu ainda a série The blues (2003), dirigida por sete cineastas.

Quando o rockumentary despontou nos anos 1960, inúmeros consumidores de música pop, notadamente jovens, passaram a vincular seu comportamento, modo de pensar, agir e vestir ao dos ídolos que surgiam. Assim, a música se tornou, pouco a pouco, uma forma de identidade de grupos de jovens, refletindo o gosto e as ideias da juventude da época, fazendo com que a indústria enxergasse esse público como um nicho de mercado. Isso fez com que esses documentários fossem vistos como de grande apelo por empresários do show bussiness.

Ao mesmo tempo em que preserva uma vocação popular e comercial, capaz de ser consumido massivamente, o documentário musical sempre trouxe uma reflexão artística, sendo, também, e principalmente, a expressão de diretores que enxergam, na música, a capacidade de educar o espectador e transcender o simples status de entretenimento. “A recusa ao espetacular e a aproximação ao registro é que dão força a esses filmes”, avalia Pedro Henrique Kalil, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais. De acordo com o curador Marcelo Aliche, é importante não confundir o documentário musical com filme promocional/DVD, reportagem e filme tributo. “No filme promocional, o artista está ali para divulgar seu trabalho, falar um pouco de sua vida íntima e agradar aos fãs. O mesmo acontece com as reportagens estendidas e filmes-tributo: são feitos para o fã. Já o documentário procura oferecer a visão do diretor sobre o assunto ou o personagem, e isso é muito diferente. No documentário, existe um distanciamento, uma análise das contradições e um olhar diferente. É o que diferencia a arte do entretenimento. Seja como for, o sol do documentário musical é generoso e brilha para todos. É só escolher o jeito que você quer usufruir”, afirma. 

 

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