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Caboclinho: agora, patrimônio cultural nacional

Desde novembro do ano passado, folguedo ligado às tradições de matriz indígena passa a integrar as expressões populares brasileiras salvaguardadas

TEXTO Chico Ludermir

01 de Janeiro de 2017

"Grande parte dos grupos de caboclinho é marcada por um conjunto de práticas e saberes que envolve arte, celebração e religiosidade"

Foto Roberta Guimarães

[conteúdo da ed. 193 | janeiro 2017] 

Era fim de tarde no Engenho Mussumbu, em Goiana – PE, e uma dezena de ônibus antigos, estacionados sobre o chão de terra batida, assinalava que os caboclinhos já haviam chegado. À contraluz do sol, revelavam-se as fantasias repletas de penas, nos porta-malas, no chão e, aos poucos, nos corpos dos brincantes, que, apressados, começavam a se preparar para a apresentação que logo começaria. Por cima de pequenos shorts, as meninas e os meninos, as mulheres e os homens de 14 tribos diferentes sobrepunham as tangas, amarravam as atacas nos pulsos e tornozelos e seguravam seus cocares nas mãos para encaixá-los na cabeça, esperando a hora do desfile em comemoração ao título de Patrimônio Cultural do Brasil, recebido em novembro de 2016.

Nana, a essa hora, mantinha o foco e o empenho para que tudo se mantivesse dentro do mínimo de controle. Enquanto presidenta do Canindé do Recife, o caboclinho mais antigo em atividade e Patrimônio Vivo de Pernambuco, cabia-lhe dar conta de organizar os quase 50 brincantes, metade de crianças, que saíram da Bomba do Hemetério, na capital, pouco depois do almoço. Dois, quatro, seis, oito, contara aos pares, antes de embarcarem rumo a Goiana, cidade conhecida pela abundância dessa e de outras expressões populares. Depois da chegada, não havia mais conta possível. A meninada se espalhava no terreiro, corria com as fantasias pela metade, já ensaiando espontaneamente os passos que aprendera imitando os mais velhos muitas vezes, no mesmo momento em que aprendia a caminhar. O som agudo da gaita (flauta reta de metal, característica dos caboclinhos) já se ouvia por todo os cantos. Mesmo que as apresentações não tivessem começado, assim como os mais novos, os músicos, adultos, também já se juntavam em trios (ou “ternos”, como é mais comum chamar), iniciando a brincadeira com tarol (espécie de tambor) e caracaxá (chocalho também de metal).

– Nana, estava querendo conversar um pouco com você sobre o Canindé e o título de Patrimônio Cultural do Povo Brasileiro dado aos caboclinhos – digo, ao me aproximar.

Enfiada dentro do porta-malas do ônibus, retirando as indumentárias que completariam as fantasias de quatro curumins (os mais novos), a mulher de 40 e poucos anos, estatura baixa e cabelos pretos na altura dos ombros, bagunçados pelo excesso de tarefas, tenta começar a conversa, uma, duas, três vezes, sempre interrompida por alguém que o chamava, perguntava, demandava. Ao ver os meninos correndo para fora dos limites do engenho, desembesta-se atrás deles e deixa a entrevista pra depois.

– Fala com Guedes, sugere, gritando, já afastada, enquanto corria chamando os meninos de volta para o seu ângulo de visão e cuidado.

Guedes ainda não tinha descido do ônibus. Tentava se concentrar na sombra abafada do coletivo, antes da tocada. Estava sentando em uma poltrona, com a sua gaita, companheira inseparável desde 2006, quando a tocou pela primeira vez. “Eu morava na Ilha do Maruim (Olinda) e sempre olhava admirado os caboclinhos passando e imaginava o dia em que eu entraria em contato com eles. Demorou muito, mas depois que eu fui lá no Canindé pela primeira vez, nunca mais deixei”, começa contando.

Guedes é um dos poucos integrantes do grupo que não é morador da Bomba e nem tem nenhuma relação familiar com os demais. Sua presença, singular, acaba por nos apontar para um dos principais elementos da cultura popular, que é o caráter comunitário, seja pelos laços consanguíneos, seja pelas relações de vizinhança. No caso do Canindé, o mestre Bibiano, líder da brincadeira desde a década de 1950, passou o comando do grupo para Juracy, sua filha, em 1985. Sem herdeiros biológicos, Juracy escolheu sua afilhada Nana para tocar o brinquedo, quando morresse. Juracy faleceu em junho de 2015. Josiely, de apenas 18 anos, que desfilou pela primeira vez quando ainda usava fralda, já carrega a responsabilidade de substituir Nana, se preciso for.

O gaiteiro é olindense e se aproximou do Canindé motivado por uma pesquisa que fazia sobre música e religião nos caboclinhos  (ou seria o contrário: escolheu estudar música e religião motivado pela paixão da infância?). Cleiton, na época o cacique do folguedo, levou-o à sede, no período do Carnaval, para que Guedes pedisse permissão ao grupo para acompanhá-los no desfile de agremiações. Em junho do mesmo ano, recebeu um recado de Cleiton. “Juracy quer falar contigo. E ela disse que tem que ser logo.” Foi.

“Tu vai ser o gaiteiro do Canindé. Sonhei com minha mãe me dizendo isso. Tu se garante?”, perguntou a então líder no tom direto que a caracteriza. Guedes que, apesar de flautista, nunca tinha tocado gaita, aceitou, inseguro. Esperou os momentos de ensaio sem saber que em brinquedo popular não tem disso. “Tu vai e faz. Aqui se aprende fazendo”, explicou Juracy, quando perguntada como é que seria na apresentação do Festival de Inverno de Garanhuns em julho do mesmo ano. “Tu já fez até o repique? Então está muito bem”, comentou a performance, referindo-se aos agudos mais fortes disparados pela gaita. Desde então, Guedes nunca mais se ausentou de tocadas do grupo em concurso ou apresentação.

Aproveito os últimos minutos antes da vez de Guedes se arrumar e peço para que me mostre os diferentes ritmos do caboclinho. Com os quatro furos da gaita, toca o ritmo “guerra”, mais acelerado, o “perré”, um pouco mais cadenciado, e a “macumba de índio”, tocado, geralmente, nos momentos em que se cultua o caboclo protetor do brinquedo. Incluem-se nos ritmos ainda, segundo a pesquisa do governo do estado que serviu de base para os caboclinhos se tornarem patrimônio, os ritmos “baião” e a “sambada”. Este último, influenciado pelos toques do maracatu rural.

Descemos juntos, Guedes e eu, seguindo o chamado de Nana para que ele também colocasse sua fantasia. As tribos que antecederiam o Canindé no desfile do engenho já começavam a se enfileirar. Enquanto o Oxossi Pena Branca, do Alto do Pascoal, era anunciado pelo locutor e avançava nas tradicionais duas filas de caboclos, a presidenta retocava o brilho dourado, espalhando purpurina na pele de cada uma das meninas que lhe circundavam. Ao lado, os cocares mais pesados eram encaixados nas cabeças com o auxílio de outros integrantes do grupo. Em alguns casos, são necessários até protetores para as cabeças que vão aguentar uma dezena de quilos, enquanto o resto do corpo se mexe em passos ágeis.

O som do terno do Oxossi Pena Branca, já amplificado pelas caixas de som, reverberava por todo o engenho. Na gaita, o veterano Nadinho, com meio século de experiência no instrumento, conduzia o bailado do seu grupo na “guerra”, no “perré” e na “macumba”. Aos 66 anos e tocando desde os 15, Nadinho é o gaiteiro mais experiente de Pernambuco. Passou por diversos grupos do Recife, desde o já inexistente Tabajara, do Alto José do Pinho, até o também Patrimônio Vivo de Pernambuco Caboclinho Sete Flexas do Recife, passando ainda pelo Canindé.

Enquanto cessavam os repiques de Nadinho, iniciavam-se os de Guedes, anunciando a hora da entrada da sua agremiação. Acompanhando de longe, Nana, talvez pelo hábito das tantas vezes em que competiu nas ruas do Recife Antigo no Carnaval, torcia para que fossem os mais bonitos da noite. Desejou sorte à sua afilhada Josiely, que desfila como Cacique e se permitiu relaxar por um momento.

Ver o Canindé, assim como observar as outras 13 tribos que desfilaram durante aquela noite de comemoração pelo título de Patrimônio Cultural do Brasil, além de um espetáculo de uma beleza dificilmente descritível, foi capaz de revelar as diversas camadas da cultura dos caboclinhos que tentaremos destrinchar.

CONTEXTO HISTÓRICO
“De todas as danças dramáticas que vi, os caboclinhos são o único bailado verdadeiro”, escreveu Mário de Andrade, ao chegar da Missão de Pesquisa Folclórica. Na época, Andrade integrava o Departamento de Cultura de São Paulo, empenhado em investigar aspectos formadores da identidade nacional. Quase um século depois desse que é um dos primeiros registros históricos dessa expressão popular, no último dia 24 de novembro, os caboclinhos conquistaram o título de Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, em Brasília.

Embora os grupos de caboclinhos não sejam homogêneos, é possível reconhecer a presença de diversos elementos comuns aos brincantes, tanto na forma como no conteúdo, permitindo-lhes sentirem-se parte de um mesmo universo. Assim como em diversas manifestações encontradas na cultura popular, grande parte dos grupos de caboclinho é marcada por um conjunto de práticas e saberes que envolve arte, celebração e religiosidade.

A geografia desses grupos compreende os estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba, havendo registros também em Alagoas e Minas Gerais. Pernambuco, no entanto, é onde há maior incidência, com presença significativa na capital, o Recife, e na Zona da Mata Norte do Estado, região marcada pelos antigos aldeamentos jesuíticos e palco de diversas políticas indigenistas. Atualmente, são identificados cerca de 70 grupos de caboclinhos em Pernambuco, dos quais aproximadamente 30 estão na capital.

Apesar da referência à cultura indígena, evidente nas vestimentas e adereços, segundo pesquisa realizada para o Inventário Nacional de Referência Cultural, os caboclinhos são uma manifestação miscigenada que apresenta elementos de origens diversas – europeia, africana, indígena –, sendo, portanto, fruto de transformações decorrentes desses encontros. O mesmo inventário aponta para a hipótese de que a expressão tenha sua origem ligada às áreas em que por mais tempo permaneceram a memória e a identidade indígenas, o que nos remete, no caso de Pernambuco, à Mata Norte.

Como nas outras manifestações características dessa área, tais quais o maracatu rural e o cavalo-marinho, o caboclinho tem na religiosidade uma de suas marcas. Deste modo, seus brincantes, pelo menos uma parte significativa deles, concebem-no como uma forma de relacionar-se com uma das muitas entidades da categoria Caboclo. Nesta perspectiva, além do caráter lúdico e socializador, o caboclinho se configura como um espaço de reafirmação de um conjunto de crenças e práticas integradas à vida religiosa de homens e mulheres, que têm na tradição da jurema uma de suas principais referências.

Características
ELEMENTOS DO CABOCLINHO

INDUMENTÁRIAS E ADEREÇOS
Os caboclinhos são marcados pelas referências aos povos indígenas. As indumentárias e adereços são confeccionados pelos próprios grupos e têm como material principal as penas de diversos pássaros. Afora a dança e a música apresentadas ao público, a criação do figurino é também uma arte cultivada pelos brincantes e passada de geração em geração.

Além das penas, geralmente de pavão, ema, faisão e chichila (parte do rabo do galo composto por penas curtas), é comum ver os caboclinhos brilhosos de lantejoulas, miçangas e pedras que são bordadas ou coladas nas sedes dos grupos. Nos meses que antecedem o Carnaval, as fantasias são confecionadas e, muitas vezes, ocupam toda a sede. Antigamente, as plumas eram adquiridas no comércio local, mas a maioria é encomendada a São Paulo por telefone ou  pela internet.

Indumentárias e adereços representam também a maior parte dos gastos dos caboclinhos, em especial para aqueles que competem nos concursos de carnaval, que aumentam as cobranças pelo espetáculo. Uma única pena de faisão, por exemplo, pode chegar a R$ 30 a unidade, ou, se comprada no quilo, têm preço médio de R$ 2 mil. Alguns cocares chegam a ter 200 penas, e a custar valores próximos a R$ 5 mil. O binômio alto custo das fantasias e pouca remuneração nas apresentações, não raro, resulta no endividamento dos grupos em bancos e, sobretudo, com agiotas.

PERSONAGENS
Personagens diferentes aparecem nos diversos caboclinhos, mas é possível elencar os mais comuns entre os grupos da Região Metropolitana do Recife e da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Eles são praticamente os mesmos, em especial pelas exigências nas participações de concursos.

As crianças são chamadas de “curumins”, os adultos que compõem os dois cordões de dançarinos são as “tapuias” (mulheres) e “perós” (homens), que também são nomeados de “caboclos” e “caboclas”. Cada uma das duas fileiras tem nas dianteiras a figura dos puxantes, que coordenam o grupo durante as apresentações.

Dentre os destaques estão o cacique e a cacica, que representam o mãe e o pai da tribo, o rei e a rainha que, assim como os caciques, executam os passos de forma mais livre e elaborada. Entre os cordões, encontra-se a figura do “pajé” (também chamado de “curandeiro” ou “feiticeiro”) e, à frente da agremiação, apresenta-se o porta-estandarte, carregando o símbolo do brinquedo com a função de apresentá-lo ao público.

MÚSICA
O escritor Mário de Andrade, em suas pesquisas dos folguedos populares na década de 1930, ressaltou o caráter original da musicalidade dos caboclinhos. Segundo ele, trata-se de uma música que não se confunde com nenhum outro gênero nem tradicional nem popular. Nessa perspectiva, o modernista destaca o caráter singular das melodias, que, em suas palavras, “discrepam violentamente de tudo quanto estamos acostumados a considerar como constâncias nacionais da nossa música”.

A música do caboclinho é basicamente instrumental, sendo executada por uma gaita (uma flauta reta), acompanhada por instrumentos de percussão que podem ser o caracaxá ou o ganzá (também chamado de mineiro ou maraca) e um tarol. Alguns grupos usam também o atabaque no ritmo da macumba. Outro instrumento característico dos caboclinhos é a preaca (ou o arco e flecha), que é tocado por quase todos os brincantes.

O conjunto de músicos do caboclinho é chamado de “terno”, mas também é conhecido como baque ou batucada e tocam os ritmos: guerra, perré, baião, macumba e sambada. As melodias centrais são curtas e se desenvolvem em improvisações. A voz fica restrita aos gritos de guerra e às loas que são cantadas quando o terno silencia, puxadas pelo cacique e respondia pelo grupo.

DANÇA
Uma das principais formas de expressão do caboclinho é a dança, chamada de “manobra” ou “evolução”. Existe uma variedade de manobras referentes a cada toque, em sua maioria homônimas do ritmo.

No toque baião, ele é manobrado com diversas variações relacionadas a uma base específica. Da mesma forma, no perré e na macumba, com a exceção do ritmo guerra, que tem como base a manobra tesoura. Essa ausência de nomes está diretamente relacionada ao modo de transmissão do conhecimento do caboclinho. O aprendizado dá-se essencialmente pela observação.

A prática das manobras acontece numa estrutura coreográfica chamada “cordão”. O cordão é composto por duas fileiras de caboclos e caboclas, os jovens brincantes que se movimentam num sentido único, simultaneamente. As manobras mais elaboradas envolvem agachamentos (cocas), giros e pequenos saltos, combinados com os estalados das preacas. 

FONTE: Inventário Nacional de Referência Cultural

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