O olhar sobre a vida comum é uma característica que une a poesia de Manoel de Barros a alguns dos nossos grandes líricos modernos: Drummond, Bandeira e Quintana, por exemplo. Esse canto do seu canto, em que o colorido da vida pantaneira vai deixar também seus ovos, integra um mundo familiar e conhecido: “A de muito que na Corruptela onde a gente / vivia / Não passava ninguém / nem mascate muleiro / nem anta batizada / nem cachorro de bugre. / O dia demorava de uma lesma”. É perceptível também nesse trecho do poema outro ponto de coligação entre Manoel de Barros e nossos grandes líricos modernistas: o uso da linguagem de apropriação regionalista – mais em alguns livros do que em outros. Apropriação estimulada muito mais por uma reflexão metalinguística do que por um projeto nacionalista. O próprio poeta define exemplarmente essa relação com a palavra: “A palavra garça em meu perceber é bela / não seja só pela elegância da ave. / Há também a beleza letral. / O corpo sônico da palavra / e o corpo níveo da ave / se comungam”.
No caso de Manoel de Barros, a aproximação da poesia com a vida comum desencadeia uma simbiose entre o sujeito lírico e a paisagem. Essa paisagem pantaneira se manifesta através e elementos claramente identificáveis, mas, principalmente, através de uma linguagem que exprime esse universo não de maneira simplesmente temática, mas isomórfica; ou seja: através de um princípio de identidade entre o modo linguístico do poema e o universo que ele – mais do que exprimir – simboliza. É o que o leitor encontra num poema como Maçã: “Uma palavra abriu o roupão para mim. / Vi tudo dela: a escova fofa, o pente a doce maçã. / A mesma maçã que perdeu Adão. / Tentei pegar na fruta / Meu braço não se moveu. / (Acho que eu estava em sonho) / Tentei de novo / O braço não se moveu. / Depois a palavra teve piedade / E esfregou a lesma dela em mim”. O erotismo verbal tem uma umidade, um langor que é próprio do ritmo e da vida anfíbia do universo pantaneiro e que se potencializa na imagem invertebrada da “lesma”.
Além da paisagem, há o evento miúdo, corriqueiro, que conquista a atenção da poesia. Brincadeiras de meninos, causos, tipos curiosos, práticas seculares ditadas pela vida comum que estabelece igualmente uma espécie de simbiose com a paisagem: “Araras cruzavam por cima dos ranchos / conversando em ararês. / Ninguém de nós sabia conversar em ararês. / Os maridos que não ficavam de prosa na porta / da venda / Iam plantar mandioca / Ou fazer filhos nas patroas. / A vida era bem largada. Todo mundo se ocupava da tarefa de ver o dia / atravessar”.
A poesia de Manoel de Barros parece nos falar constantemente desse transitar através das fronteiras dos reinos. Bichos, plantas, pedras, homens… tudo isso parece namorar incessantemente, mesclar-se, confundir-se. Confirmando, inclusive, o dito de um tipo muito próximo ao “menino” de Manoel de Barros, que é o Riobaldo de Guimarães Rosa: “No mundo, tudo é misturado”. É esse olhar impregnante que compõe a figura arquetípica do “menino” e a linguagem infantil, que o próprio poeta chamará, mais apropriadamente, num de seus poemas de “infância da língua”.
OLHAR INFANTIL
A figura do menino aparece constantemente na poética de Manoel de Barros. Representa metaforicamente o poeta e, através dele, do menino, emerge muito da infância que o tempo naturalmente submergira. O valor das coisas imprestáveis, a simbiose entre os seres e a paisagem, entre linguagem e coisa, tudo isso está associado a essa matriz metafórica do olhar infantil: “O menino podia ver até a cor das vogais – / como o poeta Rimbaud viu. / (…) Mas ele mesmo, o menino / Se ignorava como as pedras se ignoram”. Não é casual a referência a Rimbaud, seja pela celebração da lógica sinestésica e sensorial da poesia simbolista, que permitiu a associação das vogais com cores e sensações, seja pelo fato de ser um poeta menino. Como bem se sabe, Rimbaud escreveu toda sua obra até os 17 anos.
Assim, o menino adquire grande protagonismo no universo poético de Manoel de Barros. Ele é responsável pelo potencial imaginativo, logo criativo, da vida. Dono de um saber imediato e fértil que insiste em apresentar a infância como a idade essencialmente inaugural: “Por forma que nossa tarefa principal / era de aumentar / o que não acontecia. / (Nós era um rebanho de guris) / A gente era bem-dotado para aquele serviço / de aumentar o que não acontecia”. Esse saber é, por sua vez, uma forma de ignorãça, para usar a feliz expressão do próprio poeta e que intitula um de seus livros mais importantes.
O oposto desse saber direto que a vida comum proporciona é a explicação racional que, entretanto, é apresentada com muita ironia, porque impotente contra a força com que esse conhecimento nasce da experiência do viver. A explicação racional apenas arranha a superfície irregular dessa beleza inexplicável – imprestável – das coisas pequenas e nossas: “E aquele colega que tinha ganho um olhar / de pássaro / Era o campeão de aumentar os desacontecimentos. / Uma tarde ele falou para nós que enxergara um / lagarto espichado na areia / a beber um copo de sol. / Apareceu um homem que era adepto da razão / e disse: / Lagarto não bebe sol no copo! / Isso é uma estultícia. / Ele falou de sério. / Ficamos instruídos”. O mesmo movimento se encontra no arremate do poema Vento. A ironia frente ao conhecimento formal só parece insistir que o mundo continua dotado de um encanto que, na infância, não se domestica: “Hoje eu tasquei uma pedra no organismo / do vento. / Depois me ensinaram que o vento não tem / organismo. / Fiquei estudado”.
POESIA DAS COISAS
Outra característica importante da poética de Manoel de Barros é a valorização das coisas imprestáveis. O precursor moderno dessa tendência de dar voz aos objetos, às coisas, aos seres inanimados e – mais do que isso – ao que não tem valor, é o poeta Francis Ponge, autor de Le parti pris des choses (O partido das coisas, na edição brasileira). Ponge escreveu sobre uma infinidade de quinquilharias, coisas e seres minúsculos: o camarão, a lata de conserva, o pingo da chuva, a crosta de pão, o cigarro gasto, a bicicleta etc.
Na poesia de Manoel de Barros, lê-se exatamente a lição do poeta francês: dar voz às coisas, deixar que elas falem através de nós, dar voz àquela parcela muda do mundo. Nas palavras da crítica Leda Tenório da Mota, grande estudiosa da poesia pongiana: “Desaforadamente, pois, dizer as coisas é tomá-las em sua existência insondável. É fazer falar o que não dá sinal de si”.
Esse dar voz ao mundo mudo é muito frequente na poesia de Manoel de Barros, como se lê no poema Poste: “Eu quis filmar o abandono do poste. / O seu estar parado. / O seu não ter voz. / O seu não ter sequer as mãos para se pronunciar com / as mãos”. Os objetos, os animais, os seres minúsculos, compõem uma galeria de motivos que enfatizam o caráter concreto e sensorial da experiência poética que, carregada de ironia, pode afirmar preferir latas – “essas pessoas léxicas pobres porém concretas” – às ideias que, por serem abstratas, não podem ser reaproveitadas, se jogadas fora por “motivo de traste”.
Tal tendência pode ser encarada como um verdadeiro anti-intelectualismo da poesia e negativa do sublime. É algo que pode, por exemplo, ser encontrado na poesia de Alberto Caeiro. Negação do caráter “profundo” da atitude filosófica ao tentar esquadrinhar o mundo com o racionalismo. Racionalismo que amortizaria o caráter inaugural da experiência ao abstraí-la.
O saber que a poesia oferece é um saber profundamente mundano, assistemático. Tem a força e a volatilidade do olhar infantil, sempre assediado, encantado pela própria curiosidade. O reconhecimento de um deslocamento fundamental do poeta, esse porta-voz das coisas desutilizáveis, em relação ao mundo contemporâneo, é algo marcante na poesia de Manoel de Barros e tem ressonâncias políticas muito fortes, para além dos credos e ideologia do autor. Resíduos, trastes, restos e refugos não contribuem para a marcha do mundo tecnocrata, estão à margem. São tão inúteis quanto os passarinhos. Mesmo que eles, os passarinhos, sejam capazes de botar “primavera nas palavras”.