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O apagamento de uma representação

A história das encenações teatrais reflete a exclusão dos afrodescendentes de lugares de protagonismo, inclusive em espaços vistos como tolerantes à diversidade

TEXTO Márcio Bastos

01 de Dezembro de 2016

Abdias Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro com a proposta de levar aos palcos a pluralidade das identidades afrodescendentes

Abdias Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro com a proposta de levar aos palcos a pluralidade das identidades afrodescendentes

Foto Divulgação

[conteúdo da ed. 192 | dezembro 2016]

“Quando você percebeu que era negro?”, pergunta Marconi Bispo em determinado momento do espetáculo Luzir é negro. O questionamento é emblemático e revela uma situação cruel: a consciência da negritude, em geral, vem acompanhada de um processo de dor, exclusão; o reconhecer-se como o Outro em meio a uma sociedade racista e dominada por brancos. A sensação de pertencimento e representatividade é ainda cerceada aos negros e limita seus lugares de fala e protagonismo, inclusive em espaços que deveriam ser de tolerância e diversidade, como o teatro.

Traçar a história dos negros no teatro nacional não é uma tarefa simples. Além dos parcos registros, o racismo institucionalizado fez com que, mesmo após o fim da escravidão, o apagamento da representação negra e a exclusão dos afrodescendentes de lugares de protagonismo persistissem. Esse quadro se configura em outras esferas, como as do cinema e da televisão.

No livro A história do negro no teatro brasileiro, o pesquisador Joel Rufino dos Santos aponta que, durante os primeiros séculos da colonização, os negros apareciam nas encenações (quando apareciam) por um viés objetificado, quase como parte do cenário, sendo-lhes negado o direito de estar em cena. Como aponta o professor da UFMG Eduardo de Assis Andrade, Rufino diferencia teatro de drama para ressaltar a ausência do negro no teatro, apontado por ele como um local burguês, já que, na produção dramática considerada popular e executada em ambientes públicos, os afrodescendentes estavam muito presentes.

Nesse sentido, pode-se falar de experiências marcantes a partir de 1926, quando De Chocolat criou, no Rio de Janeiro, a Companhia Negra de Revista. Inspirada no teatro de revista – gênero de sucesso, na época, que se aproximava do teatro musicado e popular –, a companhia inovou ao colocar em cena apenas atores, músicos, compositores e dançarinos negros, como Jandira Aimoré, Alice Gonçalves, Waldemar Palmier, Rosa Negra, Dalva Espíndola, Oswaldo Viana, Pixinguinha, Sebastião Cirino, Donga e Grande Otelo. Com espetáculos como Tudo preto, Preto e branco e Na penumbra, o grupo circulou por estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco, durante o curto período de um ano em que atuou.

Para Rufino, no entanto, a história do teatro negro no Brasil tem o ponto de virada com Abdias Nascimento e o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944, no Rio de Janeiro. A inquietação de montar a companhia surgiu após uma viagem ao Peru, em 1941. Acompanhado de um grupo de amigos, Abdias assistiu à encenação de Imperador Jones, peça escrita por Eugene O’Neill. Apesar do personagem da história ser negro, o ator que o interpretava era branco, com o corpo pintado de preto para encenar. A situação era semelhante no Brasil, o que motivou Nascimento a se engajar para mudar o quadro.

A companhia nasceu com a proposta de levar aos palcos a pluralidade das identidades afrodescendentes a partir de um processo de formação e empoderamento dos artistas e da plateia. O trabalho artístico estava intrinsecamente ligado à preocupação com a educação e o grupo elaborou um trabalho paralelo voltado para a alfabetização (muitos dos atores do grupo não eram profissionais e não tiveram acesso à educação formal) e introdução cultural. Entre suas atividades de âmbito de conscientização, o grupo lançou a revista Quilombo, participou e promoveu encontros sobre a conscientização da comunidade negra.

Os espetáculos do coletivo levavam para o centro da encenação a vivência dos afrodescendentes, que assumiam lugar de protagonismo em espetáculos como Aruanda, de Joaquim Ribeiro, Filhos de santo, de José Moraes Pinho, estes dois últimos abordando as religiões de matriz africana, preconceito racial e desigualdade social. O grupo, que revelou talentos como Ruth de Souza, Haroldo Costa, Léa Garcia e José Maria Monteiro, manteve suas atividades até o exílio de Abdias, na década de 1960, em decorrência da perseguição dos militares após a instauração do golpe. A partir do TEN, outros coletivos surgiram, como o Teatro Folclórico Brasileiro, o Balé Brasiliana; o Teatro Popular Brasileiro e o Balé Folclórico Mercedes Baptista.

RACISMO
Apesar de avanços e de experiências potentes como o Teatro Experimental do Negro, a representatividade de afrodescendentes nos palcos permaneceu escassa nas décadas seguintes e ainda estava impregnada pelo racismo. Para a pesquisadora Evani Tavares Lima, pensar teatro negro é, necessariamente, pensar em um movimento de resistência. No artigo Teatro Negro, existência por resistência: Problemáticas de um teatro brasileiro, ela aponta os danos causados pela ausência de atores, autores, diretores, textos e personagens negras não estereotipadas.

Foi a partir dessa percepção, e de como o racismo institucionalizado afeta os mais variados aspectos da sua vida e a dos negros em geral, que Marconi Bispo concebeu o solo Luzir é negro. Formado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Pernambuco, ele afirma que a falta de referenciais negros nas artes cênicas e em outras esferas teve efeito direto sobre sua trajetória.

“Para mim, foi um processo muito doloroso perceber que não tive referenciais de artistas negros para me espelhar. Acho que, de alguma forma, nossa história nos é negada e é uma forma de apagamento. Durante minha trajetória na universidade, por exemplo, não tive contato com a história dos negros no teatro. Quando estava no processo de construção da peça, fiquei muito envergonhado por não conhecer obras como Arena contra Zumbi, do Teatro de Arena, Os negros, de Jean Genet, ou Imperador Jones, de Eugene O’Neil, que deu origem ao Teatro Experimental do Negro. Uma coisa muito básica nos é negada: representatividade”, enfatiza o ator.

Marconi Bispo ressalta que, em alguns momentos de sua carreira, chegou a receber menos do que colegas brancos para executar exatamente a mesma função, pelo mesmo período de tempo. Os papéis para os quais era escalado, em geral, também eram marcados por estereótipos. Para ele, infelizmente, o processo de empoderamento dos negros ainda é permeado pela dor. Prova disso são as respostas à pergunta que abre esta reportagem, feita durante o espetáculo.

“São relatos que nos fazem lembrar que a construção da identidade negra é marcada pela dor, pela negação. Você compreende que é negro a partir de uma experiência de rejeição. Então, a experiência do artista negro é carregada, também, dessa dor. O teatro, que deveria ser o lugar de liberdade e igualdade por excelência, não está imune às consequências do racismo. Por isso, acho muito simbólico que a plateia, por 90 minutos, encare um homem negro como protagonista, tanto para que negros se vejam ali como para que brancos ouçam questões que os privilégios deles ignoram. Isso não deixa de ser uma política de reafirmação.”

A inquietação com a falta de representatividade e indignação diante da perpetuação do racismo e da discriminação também serviram de base para a criação do solo Negro de estimação, do ator, bailarino e diretor pernambucano Kleber Lourenço, atualmente radicado em São Paulo. A obra estreou em 2007, mas continua a fazer parte do repertório do caruaruense, e adapta para os palcos o livro Contos negreiros, de Marcelino Freire, dissecando a objetificação e exclusão dos negros na sociedade brasileira. Com ela, Kleber já circulou por países como Portugal,Espanha, Cabo Verde e Moçambique.

PESQUISA
Em Pernambuco, o grupo O Poste Soluções Luminosas é referência na construção de um trabalho que traz a poética e a vivência negra como bases. Formado por Naná Sodré, Agrinez Melo e Samuel Santos, o coletivo iniciou suas pesquisas ao perceber que seus filhos, ainda crianças, estavam passando por um processo de não aceitação de sua negritude em decorrência do racismo.

“Ao percebermos que nossos filhos, que em casa já recebiam toda uma criação voltada para a conscientização, estavam nesse processo de não se reconhecerem, passamos a também nos questionar enquanto trabalhadores da arte. Que tipo de teatro queremos fazer? O que queremos representar?”, lembra Naná.

A partir daí, o grupo se debruçou sobre as pesquisas em torno da cultura afro-brasileira. Naná e Samuel, adeptos do candomblé, e Agrinez da umbanda, resolveram também trabalhar as questões voltadas à religiosidade, já que dificilmente as viam levadas para a encenação.

“Sabe por que muitos movimentos sociais não se identificam com o teatro? Porque eles não se enxergam ali, porque as religiões de matriz africana ainda sofrem preconceito, inclusive nos palcos. Quando encenamos Anjo negro, de Nelson Rodrigues, percebemos que não tinha negros na plateia. Ora, onde eles estão? Longe do teatro, claro, porque eles não se sentem representados. E para quem nós estamos falando, então? Foi aí que começamos a traçar nossa identidade. Somos um grupo que trabalha com matriz africana e nossa questão é a negritude. Pelo nosso enraizamento”, enfatiza a atriz.

Em espetáculos como A receita, que põe no centro a história de uma mulher negra, e principalmente Ombela, adaptação do poema épico do angolano Manuel Rui, o grupo mergulha em uma poética que aborda a negritude sob aspectos variados. “Considero Ombela o ápice do nosso trabalho, até então. Na obra de Manuel, não somos tratados como diferentes, com ‘o outro’. Não é um texto que fala sobre o racismo. É um outro viés da experiência da negritude, que passa longe da visão eurocêntrica. Parte dele é interpretada em umbundo, língua falada principalmente em áreas rurais da Angola, e a outra, em português. É um texto que nos aproxima da nossa ancestralidade”, reforça.

Samuel Santos, diretor dos espetáculos do Poste, aponta ainda sentir uma cena muito incipiente no que diz respeito a um teatro feito por negros e voltado para eles em Pernambuco. No entanto, percebe uma mudança positiva em estados como o do Rio de Janeiro, São Paulo e da Bahia e acha que é um movimento que tende a crescer.

“Mas é um trabalho que precisa ser aprofundado e focado. Nós, do Poste, temos o objetivo de formar um público, de convidar os negros a conhecerem nosso espaço, dialogar com nossos espetáculos. Queremos explorar outras dramaturgias, outras formas de os negros estarem em cena, outros papéis. É um trabalho gradativo e que vai demorar, mas acredito que é possível”, afirma.  

 

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