Arquivo

Dora Longo Bahia: a política no cerne

TEXTO Bárbara Buril

01 de Dezembro de 2016

No filme 'O caso Dora', artista toma partido da teoria social e da psicanálise para discutir o sujeito

No filme 'O caso Dora', artista toma partido da teoria social e da psicanálise para discutir o sujeito

Foto Divulgação

[conteúdo da ed. 192 | dezembro 2016]

Uma artista começa a falar, no divã, sobre acontecimentos aleatórios que a têm comovido nos últimos dias. Ela não se sente confortável no próprio papel de artista por diversos motivos e, com frequência, escuta a voz de um intruso, um estrangeiro ou um parasita. Sente-se amarrada e distante da liberdade. A mulher parece estar alienada de si mesma e na eterna perseguição pelo “inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser”, como confessa a personagem Elisabeth Vogler, do filme Persona (1966), de Ingmar Bergman, que sugere sofrer de um mal-estar semelhante. No longa-metragem O caso Dora, lançado em maio deste ano, a artista paulista Dora Longo Bahia, que também é professora no Departamento de Artes Visuais da Universidade de São Paulo (USP), evidencia uma política que afeta a existência dos indivíduos. Não se trata exatamente daquela política de que se fala, como um mero assunto, mas daquela política que se é quando simplesmente somos – uma espécie de política constitutiva do sujeito. Se algo não vai bem com ela (no longa, questiona-se o capitalismo, a capacidade transformadora da arte, o caráter fetichista das mercadorias, o caráter dominador da cultura, o papel dos movimentos sociais), o sujeito sente-se fatalmente afetado.

É um pouco como podemos definir Dora Longo Bahia: alguém cuja constituição é política. Como ela mesma diz, não houve um momento no qual ela “se interessou” pela política como tema ou assunto a ser tratado em suas criações. Parece que, para a artista, a política faz parte de sua existência, por uma espécie de motivo insondável, porque não houve um “divisor de águas” na sua vida que a tivesse levado a pensar em política, ou pelo que ela considera um motivo óbvio: os artistas, assim como todos os indivíduos imersos em sociedade, deveriam se posicionar politicamente.

Desse modo, Longo Bahia tem se voltado para questões que hoje movem o Brasil politicamente. É o caso dos protestos e manifestações de rua, que foram homenageados na exposição Black bloc, inaugurada no ano passado na Galeria Vermelho (SP). Na obra que dá o nome da mostra, vê-se uma série de 126 silhuetas de garrafas de vinagre, impressas em placas de fibrocimento. As imagens das silhuetas das garrafas nos remetem aos manifestantes que têm tomado o Brasil desde junho de 2013, com capuzes pretos e garrafas de vinagre, utilizadas para conter os efeitos das bombas de efeito moral usadas pela polícia. Uma das garrafas tem a forma de um coquetel molotov e, justamente ela, anuncia a iminência de um conflito entre policiais e manifestantes. Nos vídeos Lúcifer e Lilith, que compuseram a exposição, a artista também estabeleceu um paralelo entre os integrantes do movimento Black Bloc e as muçulmanas que vestem burca – para ela, dois sujeitos sem lugar na contemporaneidade. Embora Longo Bahia evidencie, neste trabalho, questões com as quais o feminismo se ocupa, a artista reitera que “não existe arte feminista. Existe arte. E ponto”.

Também, para a artista, não existe arte política. Existe arte. E ponto. Assim como a política é constitutiva do sujeito, ela também pode ser vista como constitutiva de toda e qualquer arte. Mas é inegável que, de fato, o conteúdo político é saturado nas criações da artista. Depois de O caso Dora, resultado de uma pesquisa de pós-doutorado em Filosofia sob a supervisão de Vladimir Safatle, na qual a psicanálise e a teoria social cumprem papel fundamental nas provocações sobre a influência da sociedade na constituição dos desejos, Longo Bahia volta-se para um outro tipo de colapso causado pela civilização: as catástrofes ambientais. “Já realizei uma série de 58 pinturas sobre papelão com imagens de barcos encalhados em lugares que ficaram sem água. Também estou produzindo uma série de imagens de peixes em extinção”, relata.

A questão ambiental também será o tema de Brasil x Argentina (Amazônia e Patagônia), projeto vencedor da 4ª edição da Bolsa de Fotografia de 2016, concedida pela revista de fotografia Zum através do Instituto Moreira Salles. O projeto de instalação visual, que ainda está em processo de criação, retratará o derretimento das geleiras de Perito Moreno, na Patagônia, e as queimadas da Floresta Amazônica. Mais uma vez, o que fica claro é que Longo Bahia dedica-se, em seus trabalhos, a tecer críticas ferrenhas às formas de vida no capitalismo, através de obras que ora mostram o corpo e a mente humana a se retorcer, como efeito de formas de violência física ou psíquica, ora evidenciam a destruição do mundo, como consequência da construção de um mecanismo de reprodução social em si insustentável. Questões que, ao versarem sobre a degeneração do sujeito e do meio ambiente, no capitalismo, mostram-se constitutivamente políticas. 

veja também

Onde ficou meu coração

Quero meu baião-de-dois

Steven Spielberg