Trazendo no próprio nome a noção de comida como um fato social total, o restaurante Altar – Cozinha Ancestral é um dos endereços do Recife no qual essas tradições são exploradas. Com dona Carmem Virgínia à frente das panelas, a casa tem justamente na galinha de cabidela o seu carro-chefe. “Apesar de o restaurante ser reconhecido como um local de comida afro-brasileira, a receita não poderia faltar no cardápio, porque o prato traduz ancestralidade. Me remete à comida que veio antes de mim. Os artifícios e técnicas orgânicas de minha avó, dona Edna, para prepará-lo. É um prato que me diz quem sou e relata a vida que tive, quando digo de que forma comi cabidela”, relata a cozinheira, que prepara semanalmente mais de 40 kg da receita, utilizando mais de seis litros de sangue fresco da ave.
O Altar fica no Bairro de Santo Amaro, região central do Recife, cidade na qual ainda se pode ir a restaurantes para prestigiar o prato típico. Verdadeiras embaixadas da cozinha regional, o Restaurante da Mira e o Bar da Geralda, ambos em Casa Amarela, e o Bar do Luna, no Ipsep, são outros endereços nos quais a receita é referência de primeira ordem na capital pernambucana. Se o mercado local leva adiante a tradição, no ambiente doméstico, ela vem sendo cada vez menos executada. “Preparar receitas à base de sangue já não é uma realidade para uma nova geração na cozinha. E é preciso ter um cuidado muito grande com esse fato, que pode resultar na extinção da receita”, afirma Carmem Virgínia.
O depoimento da iabassê está em consonância com o Manifesto Regionalista de 1920, assinado por Gilberto Freyre. No texto, de quase 100 anos, o sociólogo advertia que “toda essa tradição está em declínio ou, pelo menos, em crise no Nordeste. E uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”, lembrando a importância da comida como uma das maiores expressões do comportamento humano. “Muito do saber humano está naquilo que você come”, complementa Carmem.
A perda dessa referência já é fato nos estabelecimentos de comida da Grande São Paulo e da capital do Rio de Janeiro, que proíbem a comercialização de sangue para uso culinário, ancorados nas recomendações do Decreto 30.691, de 29 de março de 1952. Na lei, consta o “novo” Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtores de Origem Animal, que, em seu artigo 417, prevê brevemente a temática. Para o advogado Lucas Braga, existe atualmente no país um grande descompasso entre uma questão cultural e regulamentar. “Enquanto, de um lado, temos um contexto histórico e cultural, no qual são abarcadas inúmeras tradições de família, preservando o costume, na outra ponta, a Anvisa, bem como o Ministério da Agricultura, mesmo que não proíbam expressamente o uso de sangue animal para fins culinários, são extremamente rígidos com relação às condições de extração, conservação e comercialização desses recursos animais.”
As entidades sanitaristas, por sua vez, reforçam nos seus argumentos que o sangue consistiria em resíduo animal, e não um produto destinado à alimentação. “O entrave está no selo de Serviço de Inspeção Federal (SIF) do sangue, já que o do animal os frigoríficos não emitem. Os restaurantes não têm volume significativo de uso de sangue, para que seja viável comercialmente para os frigoríficos custear essa emissão, que é cara. O que inviabiliza a compra do mesmo”, relata a chef paulista Janaína Rueda, uma das líderes do movimento nacional Sangue é Ingrediente.
Outro entrave reside na insegurança jurídica causada pela ausência de definição na lei, permeada por lacunas. “Temos uma fiscalização que raramente permite a concessão de sangue animal para fins alimentícios, o que não é proibido, desde que siga as diretrizes do Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA). Falta regulamentação definitiva que garanta maior segurança legal aos produtores, norteando-os nos limites previstos”, atesta o advogado Lucas Braga. Ainda segundo o jurista, ao analisar a questão em âmbito nacional, é observada uma relatividade em torno das necessidades e da força cultural que tem o hábito alimentar em cada região.
Em São Paulo, por exemplo, como o sangue colhido não tem regulamentação federal para ser vendido como insumo culinário, não pode ser comercializado. Já em Pernambuco, que possui um forte consumo de produtos e derivados animais, aplica-se a legislação federal, que julga não existir maneira para certificar o produto legalmente. Em Belo Horizonte, a fiscalização não é tão rígida, pois, para a produção de produtos como a morcilla (embutido de sangue de porco), os abatedouros e frigoríficos possuem autorização para a coleta e industrialização, desde que seja feita imediatamente após o abate. “A tendência é que a Anvisa flexibilize a norma. Mas é preciso que sejam pesadas as questões envolvidas: culturais, econômicas e regulamentais. O papel do direito é moldar-se às tratativas e costumes da sociedade, a questão cultural vem se sobressaindo, ainda que considerada irregular”, explica Braga.
#SANGUEÉINGREDIENTE
Enquanto há brechas na legislação, o setor gastronômico, assim como outros segmentos culturais, também corre atrás de suas definições, agendando a problemática no debate político. Liderado pelos chefs Jefferson e Janaína Rueda, nasceu o movimento #SangueÉIngrediente, que conta com a participação de mais de 40 chefs de cozinha respeitados em todo país, que atuam na execução e defesa dos receituários típicos que usem o insumo em suas respectivas regiões. “Nosso intuito é lutar pelas tradições, fazer uso de todo o animal, já que isso também é sustentabilidade. O conceito nose to tail, ou do focinho ao rabo, é uma forma de garantir o uso total do animal”, argumenta Janaína.
A mobilização começou há dois anos, quando o próprio Jefferson, que à época comandava a cozinha do restaurante Attimo, de bandeira ítalo-caipira, foi proibido de comercializar galinha ao molho pardo (de cabidela) pela Vigilância Sanitária da capital paulista, sob ameaça de fechar o estabelecimento. “Passei a usar uma linguiça, feita com sangue de porco, comprada pronta para mimetizar o sangue na receita e aí me dei conta do tamanho do problema.”
Foi quando levou a questão para sua aula no maior congresso gastronômico da América Latina, o Mesa Tendências, em São Paulo. “No palco, ensinei o passo a passo da receita da galinha ao molho pardo, matando a ave ao vivo. ‘Tem que cortar o pescoço dela, deixar o sangue escorrer e imediatamente batê-lo com vinagre para não coagular’”, reproduz. Estava lançado o movimento Sangue é Ingrediente para cozinheiros, foodies, pesquisadores, historiadores e entusiastas do segmento no país. “Buscamos uma revisão de leis e normas sanitaristas que impedem práticas tradicionais da cozinha brasileira”, defende Rueda, que viaja por vários estados brasileiros em busca dos pratos tradicionais feitos com sangue e verificando a forma de armazenamento e modos de preparo.
Mas nem tudo é só tradição. Para hastear a bandeira ainda mais alto, cozinheiros vêm usando o ingrediente em preparos, digamos, mais autorais, buscando gerar essa sensação de pertencimento. É o caso do chef Bruno Didier, do food truck La Camioneta, instalado no Parque da Jaqueira e especializado em cozinha espanhola. Realidade também na cozinha daquele país, a ave cozida junto ao seu sangue se transformou em croquetas, outro receituário típico da Espanha. “Buscamos fazer uma alusão ao prato-referência em uma proposta que dialogue com a comida de rua, que se possa comer com a mão, tornar a receita mais curiosa do que costuma ser”, situa Didier.
A poucos metros dali, também na zona norte do Recife, André Saburó, referência entre profissionais de cozinha japonesa no Brasil, criou o sarapatum para o cardápio do nipônico Quina do Futuro. Conhecedor da anatomia do atum, ele utiliza a espessa linha de sangue que alimenta a musculatura do animal, mais membrana, cartilagem, coração, músculo e barbatana do peixe para mimetizar o sarapatel. “Responsabilidade é a palavra de ordem na cozinha moderna hoje. É preciso fazer o uso responsável do ingrediente, extraindo o máximo do produto que você tem em mãos. E, se esse valor ajudar em movimentos com esse, melhor ainda”, anota Saburó.
Para Carmem Virgínia, esse movimento de voltar ao antigo, à tradição como base para técnicas e referenciais de preparo é o futuro da gastronomia. “Tudo o que tinha de ser inventado já foi, a última grande revolução na cozinha foi a molecular. Vamos nos voltar ao que nos pertence, às receitas de família, que serão vistas como joias. Vamos retornar para o bom e velho caderno de receitas como forma de imortalizar tradições”, sugere, com a convicção de que falar de receituários no Brasil é falar de hábitos, de rotinas e, sobretudo, de identidade.