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A junção inconcebível

TEXTO Fiorina Mongiovi

01 de Dezembro de 2016

Oficina de Francisco Brennand, no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife

Oficina de Francisco Brennand, no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife

Foto Breno Laprovitera/divulgação

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 192 | dezembro 2016]

Quando se vai à Oficina Cerâmica Francisco Brennand, o impacto se dá antes mesmo de se chegar a ela. O longo caminho por uma estrada de barro cercada pela mata já prepara a atmosfera do que está por vir. A oficina fica recolhida nessa região distante do centro da cidade, no Bairro da Várzea, e impõe sua grandiosidade já durante o percurso silencioso e em meio a uma vasta natureza. O impacto segue ao entrarmos na oficina e nos depararmos prontamente com um caminho de esculturas, uma organização que não remete a um ateliê artístico, mas a um cenário mitológico: um caminho protegido lado a lado por diversos pássaros, uma espécie de caverna com um grande ovo de cerâmica pendurado e a citação de Heráclito em uma pedra: “Tudo flui…”. Logo se compreende que não estamos só adentrando no mundo de Francisco Brennand, mas também no mundo arquetípico a que ele nos reporta, para além da temporalidade, ao que há de essencial no humano, pois ali não temos uma arte de questões contemporâneas, mas uma arte atemporal e universal.

Essa atmosfera mítica se dá devido a esse encontro com um local que se assemelha a um templo, mas um templo que seria demasiadamente humano: figuras fálicas, pernas de mulheres, ovos de cerâmica, representações de pedaços do corpo que remetem imediatamente ao mais primário na constituição da subjetividade, que é a relação com meu corpo e com o corpo do outro, pois as primeiras percepções de um bebê não são de inteireza, mas de se relacionar com partes: o seio, um olhar, o próprio pé. Devido a essas características das esculturas, a Oficina de Francisco Brennand remete a um verdadeiro “inconsciente a céu aberto”, para usar uma expressão da psicanalista Colette Soler, não apenas no sentido da temática presente, mas também na transparência com que ela se apresenta: “posso prosseguir na minha aventura cerâmica, sem jamais deixar de lado as esculturas que representam uma espécie de hipertrofia do meu processo habitual de criação: deformar de mil maneiras o corpo disponível”, comenta Brennand, em um dos escritos de seu diário.

Partes do corpo separadas e unidas de formas variadas, transformadas pelo processo de criação, dando origem a um outro tipo de corpo: nem o meu, nem o do outro, o corpo que é toda obra de arte. A arte assume o lugar que torna possível o que seria impossível, na qual qualquer tipo de formação ou deformação pode ser feita; diante do encontro do sexo, da reprodução da vida, da origem e da morte. O espaço da arte é onde se pode rearrumar esses impossíveis de serem compreendidos através da metáfora dos corpos: “Mesmo que as mulheres careçam de realidade, apenas valendo o ligeiro corpo a corpo e certos traços imprecisos de sua silhueta (que apanho no outro dia, riscados no papel ou nas fotografias), mesmo assim, diante dessa dispersão, a arte seria o poder que realiza a junção inconcebível”, escreve o artista sobre esse processo.

Todo esse cenário é construído com a matéria-prima da terra, a cerâmica, e Brennand tem uma bela história com relação à escolha dela para produzir suas obras. A intenção primeira do artista era trabalhar com pintura, considerada uma arte “maior”. Porém, na sua visita à França, ele se depara inúmeras vezes com exposições de arte em cerâmica feita pelos seus mais admirados pintores. Aqui, não podemos deixar de rir ou de nos maravilharmos com as ironias que a vida oferece: tudo apontava para que ele voltasse ao Brasil, para a fábrica de cerâmica da família e utilizasse essa íntima matéria para criar a sua arte. Aquela que, a princípio, não queria utilizar.

Não é preciso saber as particularidades da relação do artista com sua família, mas não podemos deixar de lembrar de todo o movimento psíquico constitutivo de uma trajetória de busca de autenticidade: negar o familiar, as raízes, o que até então fez parte de sua história, muitas vezes é importante para, quem sabe, retornar a elas de uma forma diferente. Embora o desejo do sujeito seja sempre do Outro, como afirma o psicanalista Lacan, no sentido de que não existiria um desejo partindo do vazio, mas sempre dentro da estrutura linguística em que o indivíduo está inserido, existem, sim, o formato, as nuances, as particularidades que um desejo pode assumir, e isso é pessoal. No caso de Brennand, essa reapropriação do uso da matéria-prima que já lhe era familiar se torna ainda mais interessante, pois aqui se trata do barro, algo que nos remete às origens: um material rústico, maleável, mas que, após levado ao fogo, se torna pesado, forte, concreto, produzido a partir de gestos e rituais. O fogo, que dá consistência e certeza da durabilidade, da força e da manutenção da pedra; o fogo que pode destruir, também pode criar e fortalecer. E aqui nos remetemos novamente a Heráclito, que afirmava ser o fogo o começo de toda as coisas, esse elemento tão essencial para transformações.

Do fogo que tudo origina ao fogo que remete à sexualidade, esse parece ser o principal elemento para criação das obras do artista, tanto em sua forma real quanto em sua forma metafórica. A obra feita de cerâmica, que traz algo de tão primitivo, liga-se à temática de uma sexualidade mitológica, como percebemos nessa passagem do diário: “Conforme penso, ao completar dentro de poucos dias cinquenta anos, deixarei assinalado, aqui, na Oficina Cerâmica, como em alguns templos gregos, um espaço reservado a algumas esculturas homenageando a grande prostituta”. A impressão é que essa via inconsciente se expressa sem restrições, e todo artista tem mesmo a função de mostrar o que existe para além do conhecido e familiar.

Na expressão artística, não é necessário que os conteúdos passem pela consciência, eles podem se manifestar diretamente na arte. Como afirma Lacan (aliás, em uma metáfora do vaso), a arte, assim como o vaso, faz aparecer o vazio enquanto o contorna. Francisco Brennand aponta para esse contorno, quando coloca que “a arte seria o poder que realiza a junção inconcebível”: o vazio ou o inconcebível se torna, assim, não só o centro propulsor da criação da arte, mas também o seu resultado.

 

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