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Uma ferramenta de transformação

Festival Recife do Teatro Nacional volta a apostar em produções nacionais, com obras de caráter político que refletem o momento vivido hoje no país

TEXTO Márcio Bastos

01 de Novembro de 2016

Grupo Galpão, de Minas Gerais, traz ao festival sua 23° montagem, espetáculo ‘Nós’

Grupo Galpão, de Minas Gerais, traz ao festival sua 23° montagem, espetáculo ‘Nós’

Foto Guto Muniz/divulgação

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

Fazer teatro (arte como um todo) no Brasil é um trabalho hercúleo. Montar um espetáculo, mantê-lo em temporada e circular com ele é uma dificuldade real para os artistas e, assim, muitas obras ficam restritas aos seus estados ou regiões de origem. Nesse sentido, os festivais cumprem um papel fundamental de apresentar recortes da produção nacional e promover o intercâmbio entre grupos de diferentes localidades. Na capital pernambucana, o Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN) cumpriu esse papel por mais de 15 edições, sofrendo, no entanto, forte baque com a falta de políticas culturais efetivas nos últimos anos.

Como resultado, o FRTN, capitaneado pela Prefeitura, através da Secretaria de Cultura e Fundação de Cultura Cidade do Recife, não foi realizado em 2014 com a proposta de virar uma ação bienal, o que revoltou a classe artística. Em resposta ao descompromisso do poder público, o engajamento dos artistas e da sociedade civil forçou um olhar mais atento ao evento, ainda que o retorno da maratona cênica, em 2015, tenha sido marcado pela falta de proposta curatorial, basicamente reciclando peças locais na programação. Ficou a impressão de que os efeitos do esvaziamento do festival e a desarticulação causada pela manobra política ainda demorarão anos para serem contornados.

No entanto, segundo Romildo Moreira, gerente de artes cênicas da Prefeitura do Recife, a ideia é que, este ano, o FRTN, que acontece de 19 a 27 de novembro em vários teatros da capital, retome seu caráter inicial, com foco em grupos com pesquisa de linguagem.”Queremos trazer espetáculos que dificilmente viriam se não fosse através do festival. É custoso para grupos de fora se apresentarem aqui apenas com a bilheteria, sem apoio de editais ou instituições, e o festival cumpre essa função. São trabalhos sem apelo comercial, mas de alta qualidade artística, diretriz que foi definida junto à classe na escuta pública durante o 3º Encontro de Artes Cênicas, realizado em março”, aponta o gestor.

ENGAJADOS
Dentro da proposta de trazer grupos cujos trabalhos refletem uma preocupação com o desenvolvimento de um projeto artístico, duas companhias que estiveram em edições passadas, inclusive a primeira, em 1997, retornam este ano: o Grupo Galpão (MG), com Nós, sua 23ª montagem, e a Cia. do Latão (SP), com O pão e a pedra. Obras de caráter político, que discutem o momento pelo qual o país passa, esses trabalhos refletem também o intuito dos criadores em utilizar o teatro como ferramenta de transformação, uma trincheira contra a barbárie.

“O momento político está afetando a circulação de espetáculos. Vivemos uma fase crítica na cultura por conta da visão neoliberal que está sendo implementada e só visa o lucro. Nossa postura tem que ser de resistência”, enfatiza o ator Eduardo Moreira, do Galpão. Em Nós, um grupo de sete pessoas (cuja ligação não fica clara) prepara sua última refeição: uma sopa. Durante o processo, os indivíduos discutem questões relacionadas ao seu lugar na sociedade, o público e o privado, violências reais e simbólicas e celebra os 30 anos do grupo. A direção é de Márcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro (PR).

Para o Latão, voltar ao festival também tem um significado singular, porque o evento se confunde com a própria trajetória do grupo. “Participar das primeiras edições do FRTN foi importante para nós. A encenação de Ensaio para Danton no Teatro do Parque, em 1998, mostrou que nosso trabalho, ainda em seu começo, tinha uma linha estética que poderia interessar a muita gente. Tanto que a mais importante de nossas peças dos primeiros anos, O nome do sujeito, se passava no Recife, contando histórias de violência em torno de um barão do império que teria feito um pacto com o diabo: era uma alegoria da modernização regressiva, uma espécie de pré-história do que se vê em alguns dos filmes de nosso melhor cineasta atual, Kleber Mendonça Filho”, reforça Sérgio de Carvalho, fundador do coletivo.

O caráter de crítica social está presente também em Memórias de um cão, do Coletivo Alfenim (PB), inspirado na obra de Machado de Assis, que abre o festival e expõe as contradições do ethos brasileiro na questão da luta de classes. Outra aposta da curadoria é o Teatro Popular de Ilhéus (BA), cujo trabalho tem forte ligação com a cultura popular nordestina. A ideia é também fortalecer os laços entre os grupos da região.

PRATA DA CASA
Como mais uma característica do festival, as produções locais que foram destaque durante o ano, na visão da curadoria, estarão presentes no evento. Entre elas, dois espetáculos que põem sexualidade e gênero no centro do debate: Puro lixo, dirigida por Antonio Cadengue e inspirada na trajetória do Grupo Vivencial, e Ossos, do Coletivo Angu, baseada na obra de Marcelino Freire. Além de obras que já ganharam os palcos da cidade, o festival promove ainda a estreia de Severinos, Virgulinos e Vitalinos, dirigido por Samuel Santos.

Este ano, o festival presta homenagem ao grupo Mamulengo Só-Riso, fundado em Olinda, em 1975, por Fernando Augusto Gonçalves Santos, Nilson de Moura e Luiz Maurício Carvalheira, cujo trabalho na pesquisa e divulgação da arte do bonequeiro nordestino representou um marco na cultura pernambucana e nacional.“É um grupo fundamental para a preservação e renovação da arte do mamulengo, que é patrimônio imaterial, mas que, hoje, passa por uma situação difícil, com poucos artistas se dedicando à sua pesquisa e, principalmente, à sua execução. O teatro de bonecos é vibrante e precisa ter seu espaço destacado”, reforça Romildo. 

 

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