Não vem ao caso identificar ou evidenciar o que de condizente com o real ou o ficcional há em livros como Dragões não conhecem o paraíso (1988), Triângulo das águas (1983) ou Pedras de Calcutá (1977), por exemplo, já que se pode desvirtuar o que é relevante, principalmente quando se trata dos textos de Caio F. – experiência estética, reflexões sobre existência no contexto histórico-político anterior (sem ser panfletário, vale ressaltar) e paralelos possíveis de sua obra com a hodiernidade, por exemplo.“Toda e qualquer narrativa, mesmo as que se pretendem mais coladas ao real, têm algo de ficcional” por serem constituídas de matéria (de ficção), superam a “realidade” e estabelecem diálogos com outros tempos, não necessariamente de forma cronológica.
Alguns dos amigos – e ao mesmo tempo ídolos – aqui citados com os quais se correspondia conviveram com ele, como foi o caso de Hilda Hilst. Perseguido pelo DOPS – Departamento de Ordem Política e Social da Ditadura, no fim dos anos 1960, Caio se refugiou na Casa do Sol, de Hilda, em Campinas (SP). Em seguida, autoexilou-se na Europa, passando por várias cidades. Os versos da poeta são constantemente encontrados em seus livros, seja em epígrafes – como em Pequenas epifanias (1996), que traz os versos “Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas…/Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade./A esperança” – ou em dedicatórias. No entanto, apesar da grande admiração, não havia aproximação do ponto de vista ficcional, talvez pela disparidade de gêneros, por Hilda escrever poemas e ele, prosa. Ao menos não como a proximidade com a obra de Clarice Lispector.
“Ser influenciado por Clarice Lispector e por Guimarães Rosa pode ser cometer suicídio, o Caio é um dos raros claricianos que sobreviveram”, afirmou o escritor alagoano Dau Bastos, em entrevista ao programa Ciências e Letras, do Canal Saúde e da Editora Fiocruz. Com relação à escritora, ele era consciente da sua influência e do impacto que isso causava à sua escrita. Virgínia Woolf também era leitura e encantamento constante, inclusive, apelidava sua máquina de escrever, uma Olivetti Lettera 22, com o nome da inglesa. Junto à Lispector, ele é atualmente um dos autores mais citados nas redes sociais. Mesmo que seja em trechos descontextualizados, com tom de autoajuda, ou por frases erroneamente atribuídas a ele.
Apesar de uma vida breve – ele morreu aos 47 anos, em fevereiro de 1994, em decorrência de complicações da aids –, produziu bastante. “Ele consagra o conto no Brasil e consagra também uma geração de novos escritores que não tinham compromisso com o regionalismo. É uma literatura muito jovem, muito de questões existenciais. Ele liberta o Brasil de uma certa tradição de pensar o Brasil regionalista”, afirma Thiago Soares, professor de Comunicação da UFPE, jornalista e pesquisador em entrevista à Continente. Seus livros, entretanto, nem sempre foram aceitos pela crítica ao serem lançados. Foi o caso das experimentações no romance Onde andará Dulce Veiga? (1990). Quanto a isso, sua reação “premonitória” foi certeira: “eu adoro quando batem em mim, porque daqui a pouco vão falar bem e isso me tonifica”, disse ao escritor Dau Bastos.
ALTA E BAIXA CULTURA
Nas produções de Caio F. Abreu, há referências diretas – e muita intertextualidade – transitando entre elementos da sociedade de consumo (cinema, revistas femininas, música pop), a arte tradicional e textos canonizados que demonstram sinergia entre as mudanças do mundo global e o que ele escrevia. “Eu sou de uma geração muito colonizada por filmes americanos, eu sempre acredito no happy end, num beijo da Doris Day e o Rock Hudson no fim, isso é esperança, achar que tudo vai dar certo. Eu acho que o Brasil vai dar certo, sempre achei”, afirmou o autor em entrevista ao Globo Repórter.
Nos anos 1960, a pop art de Andy Wahol foi pioneira ao incorporar às artes plásticas objetos anteriormente vinculados apenas às indústrias. Posteriormente, esses objetos foram sendo introduzidos à literatura, que também teve influência do cinema. No Brasil, a partir da segunda metade da década de 1960, período das primeiras publicações de Caio, seus escritos já demonstram interação com as mudanças tecnológicas e culturais de um mundo “pré-impulso de globalização após o fim da Guerra Fria”. Alusões à cultura pop são comuns em seus textos, sem receios de intolerâncias por parte de algumas linhas da crítica literária ou de leitores mais tradicionalistas da época. Reações inflexíveis do tipo encontram adeptos ainda hoje, basta observar as redes sociais. Baseadas, muitas vezes, em resistências às rupturas das fronteiras entre as diversas linguagens artísticas, opiniões contrárias ao perfil heteróclito da literatura contemporânea surgem, como ocorreu há pouco com relação à premiação do Nobel de Literatura 2016 para Bob Dylan.
A propósito, a música é inerente às narrativas de Caio. Numa tentativa de criar uma “coreografia verbal”, o autor buscava incorporar, a partir de um fundo musical escolhido, o ritmo da música e realizava, assim, uma estrutura textual que pretende inserir o leitor na atmosfera de um videoclipe, no qual música e narrativa se fundem. No conto Os sobreviventes, de Morangos mofados (1982), por exemplo, o autor dá o tom ao leitor com o indicativo entre parênteses “Para ler ao som de Ângela Ro-Ro”. O peculiar modo de criação do escritor gaúcho era anotar os esboços, ou como ele chamava, “frases-imãs”, passíveis de agregar outras imagens e que continham informações para serem ampliadas posteriormente. Constante na sua produção também era a retomada e reelaboração dos textos, até mesmo os já publicados. “Nunca pertenci àquele tipo histórico de escritor que rasga e joga fora. Ao contrário, guardo sempre as várias versões de um texto, da frase em guardanapo de bar à impressão no computador”, chegou a escrever. Esse aperfeiçoamento laborioso e minucioso é bem característico de um virginiano, para ressaltar o fascínio do escritor gaúcho por astrologia. Luciano Alabarse, diretor de teatro que conviveu e trabalhou com Caio, afirmou, sobre a importância da escrita para ele: “Eu acho que ele nunca escreveu para impressionar literariamente o leitor, ele queria o coração, o fígado, a assombração do leitor, essas coisas não perdem o carimbo de validade”.
Caio fez parte da geração de artistas que, além de sobreviver intensa e ativamente ao obscuro cenário da ditadura militar brasileira, viveu e delineou – através de seus textos – os sentimentos e as questões existenciais de uma juventude confusa diante da inexatidão dos anos 1980 e início dos 1990 pós-ditadura, “numa busca de identidade que se mostra vã e entretanto não cessa”. Mesmo que implicitamente, há nos seus textos denúncias do sistema repressor, responsável por interrupções de sonhos, ideais e esperança; além de retratarem as dúvidas e a imprecisão das informações científicas naquele período com o aparecimento da aids. Discurso crítico e transgressor percorrem toda sua obra e servem de paralelos para se pensar o Brasil atual.
“Caio era um intelectual claramente de esquerda, ligado às bandeiras da contracultura. Hoje, certamente, ele não apoiaria o golpe, seria contra a Rede Globo, embora admirasse uma novela. É muito atual a discussão da sua obra, sobretudo em função dessas relações sui generis a uma direita muito forte que tem se colocado e uma resistência da esquerda. Tem muito a ver com esse contexto político que estamos vivendo”, opina Thiago Soares. Ou, como escreve Perrone-Moisés: “Nossa época é o momento de pensar sobre o passado recente e de criticar os caminhos do presente”. E a obra de Caio é oportuno suporte para isso.