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Letras e arte

TEXTO José Cláudio

01 de Novembro de 2016

A peça ‘Nas correias do Sertão’, de Daniel Lau, representa a ação de levantar a rês, caída pela fome e sede, com a correia, para que possa se alimentar. Acervo Centro de Artesanato de PE

A peça ‘Nas correias do Sertão’, de Daniel Lau, representa a ação de levantar a rês, caída pela fome e sede, com a correia, para que possa se alimentar. Acervo Centro de Artesanato de PE

Foto divulgação

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

Catálogo da exposição de Wellington Virgolino em Ranulpho. Tantos eventos e Zé Cláudio nem mode coisa, nem uma linha. Exposição de Pragana. Coleção com lançamento de livro: A lírica de Carlos Augusto Lira. Eu que escrevo sobre ocorrências muito menos importantes talvez. “Talvez”, digo, porque, para um rapaz que mora em Sertânia transportar uma peça para expor, não tão pesada, é certo, mas que requer cuidados, o próprio autor trazê-la na moto, esse estirão todo, 311 km de sertão brabo, levando sol e comendo poeira, e quando chega aqui, na hora de entregá-la no Centro de Convenções, na Fenearte, notar que falta algum complemento e ter de voltar a Sertânia para buscá-lo, não lembro mais o que, vir pela segunda vez de Sertânia ao Recife no mesmo dia, não me digam que para ele a participação nessa mostra pode ser catalogada de desimportante, mesmo tratando-se de exposição coletiva, inúmeros artistas, sua peça podendo passar despercebida, não signifique para ele um acontecimento da maior relevância; e não somente para ele, quem sabe para o Brasil, para a vida, para o mundo. Trouxe esse episódio à baila (gostou, Arthur Carvalho?) porque se deu na última Fenearte e de que tomei conhecimento por ocasião da participação no júri de premiação da seção de arte popular, justamente a convite de Carlos Augusto Lira.

Não há acontecimentos menores, dependendo do ponto de vista. Pensei até em escrever sobre essa odisseia de um dia, de Daniel, de Sertânia, como Joyce fez com a de Homero. Em tempo, a obra foi premiada, e soube da história depois.

Se você quiser falar sobre tudo que acontece vai ficar é doido. Uma lição aprendi com um político que já ocupara altos cargos: chegava numa banca de revistas de Olinda, comprava todos os jornais daqui do Recife e de fora do estado, arrancava a primeira página e deixava o resto; o que não dava primeira página, para ele não existia.

Sobre o livro de José Paulo Cavalcanti Filho So/mente/a/verdade, em que a verdade não some, pelo contrário, o autor escreveu para que não sumissem as histórias, tenho a dizer, o que era mais para falar a ele próprio mas quem quiser pode escutar, é essa tendência de partir a frase botando ponto em vez de vírgula. Joaquim Falcão disse que quem começou foi ele, Joaquim, porque é gago. José Paulo critica Saramago que “abusava das vírgulas. Em média foram 21, antes de um ponto, no seu O Evangelho segundo Jesus Cristo”. Quando li o So/mente de José Paulo já tinha lido O Evangelho de Saramago, cativante, uma delícia de leitura. Era como ter saído de uma camisa-de-força, a da tirania da pontuação. Precisa-se lembrar que no princípio não havia pontuação nem espaço entre as palavras, cabendo ao leitor separá-las, existindo até hoje dúvida sobre um verso de Virgílio, se ex ilio, as duas palavras separadas, ou pegadas, exilio. Dei uma olhada no livro de Alberto Manguel Uma história da leitura tentando localizar a informação, mas devo ter lido em outro lugar, quem sabe Umberto Eco (maiores informações com Francis Boyes e Padre Teodoro Peters, se me permitem eles, com licença de Zé Paulinho, vide Fernando Pessoa/quase uma autobiografia, Praeludium, prelúdio, p. 17).

So/mente/a/verdade tem a primeira das virtudes de um livro: deixar-se ler. São contos com histórias atraentes, como a de Octavio, provavelmente meu colega do Marista, do Osvaldo Cruz e da Faculdade de Direito do Recife Octavio Lobo. No livro, depois do Fernando Pessoa, espécie de recreio, José Paulo se distrai e nos distrai, antes de empresa maior. Sugeri um livro sobre Sá-Carneiro, já que está, ou esteve, com a mão na massa.

Melhor falar de pintura, com que estou mais familiarizado. Pintura me toma muito tempo, o tempo todo. Se não pintasse, que é meu ganha-pão, talvez me dedicasse à leitura. Pintura me ocupa 24 horas por dia, isso mesmo, inclusive quando durmo. Quando durmo, a mente, livre de outras preocupações, as soluções despertam e, ao acordar, sinto-me não somente mais disposto como mais clarividente, mais inteligente diria, como se durante o sono o quadro amadurecesse. Isto é, dentro das minhas perspectivas. Não sei se ao dizer “pintura é coisa mental” Da Vinci incluía essa possibilidade, a de o sono nos livrar de nós próprios, das nossas mediocridades, dos nossos bloqueios, da nossa burrice e covardia.

Uma vez fui às lágrimas diante de um quadro de Leonardo da Vinci: o São Jerônimo. Só me dei conta quando a lágrima molhou o colarinho. Em Roma sempre andava de paletó e gravata como todo mundo lá. 1957. A primeira visita foi à pinacoteca do Vaticano, um dos poucos lugares que eu sabia de Roma, além do Coliseu visto nas estampas do sabonete Eucalol. É, u, eu; c, a, lê, cal; ó, éle, ol; eu, ca, lol, como dizia a propaganda do rádio. Fui pegado de surpresa. Na grossura da parede entre uma sala e outra estava o quadro, 103x75cm. Todo em sépia, como ele costumava fazer antes de entrar com a cor, perfeitamente dispensável. Não havia cor no mundo que tivesse mais o que dizer ali. Parei, fiquei em êxtase, no sentido próprio aliás, que “êxtase” em grego significa “parada” (Dr. Sérgio Buarque de Holanda disse que só entendeu bem essa palavra quando chegou em Atenas e perguntou como se dizia “parada de ônibus” e lhe ensinaram “êxtase”, assim como “carregador de frete” no aeroporto disseram “metáfora”, descobrindo então que “metáfora” é a palavra que carrega o sentido da outra). Até hoje não sei olhar para esse quadro sem ser pela comoção, como se ele encarnasse o sentimento trágico da vida, para usar o título de Miguel de Unamuno, o eterno sentimento trágico da vida, justamente a consciência de não sermos eternos.

 

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