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Cerâmica do Cabo: tradição e tecnologia em diálogo

TEXTO Erika Muniz

01 de Novembro de 2016

O diferencial dos produtos desenvolvidos pelo grupo garantiu o prêmio Sebrae Top 100 de Artesanato

O diferencial dos produtos desenvolvidos pelo grupo garantiu o prêmio Sebrae Top 100 de Artesanato

foto daniela nader

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

A tradição secular das olarias no Cabo de Santo Agostinho se renova nas mãos de 14 artistas da região. A matéria-prima que outrora era convertida em telhas, tijolos e cumbucas para a demanda local, ganha no Centro de Artesanato Arquiteto Wilson Campos Júnior novas dimensões formais e estéticas e conquista, além de novos territórios, mercados fora do município.

 Na contramão da atual reprodutibilidade dos produtos de consumo, peças feitas à mão, em geral, despertam uma espécie de afetividade e zelo. É preciso tempo e dedicação para que cada uma seja feita. Nas obras de barro, o acabamento natural enaltece esse caráter único, seria como as “impressões digitais” da peça. O uso de cerâmica torna viáveis essas idiossincrasias e talvez a proximidade com o humano – no que pode ter de único e diferente – seja um dos motivos para esses objetos despertarem fascínio.

No caso da Comunidade Produtora Cerâmica do Cabo, a matéria-prima de alta qualidade oriunda de Suape contribui para que as irregularidades sejam mínimas, e os artesãos usufruem disso. “De uma forma geral, as pessoas que trabalham com o barro pintam as peças da mesma cor, para esconder imperfeições”, afirma Tibério Tabosa, coordenador executivo do projeto. O formato das peças fica na interseção entre conhecimentos dos antigos oleiros com conceitos do design contemporâneo. Apesar das várias identidades artísticas no mesmo local, é perceptível um diálogo formal entre as obras.

Nos anos 1990, a crescente escassez de barro (por conta da urbanização de Suape) e a queda na demanda dos produtos – nessa época predominava a produção de filtros de água – fizeram com que os ceramistas procurassem o Sebrae e, posteriormente, em 2003, firmassem parceria com o laboratório O Imaginário, do departamento de Design da UFPE. Essa união fomentou uma revalorização das peças e a aquisição de um espaço físico, o Centro de Artesanato Arquiteto Wilson Campos Júnior, cedido pela Prefeitura do Cabo. O local foi planejado a partir das etapas do trabalho com o barro (da preparação da massa à sua queima) e possibilita a troca de conhecimento durante os processos de execução e experimentação. Ali, Mestre Nena, que aprendeu muito jovem com Seu Celé, no bairro cabense Mauriti, transmite o que aprendeu e experimenta novas técnicas, como o uso de esmaltes formulados no próprio centro.

Pelos produtos diferenciados que desenvolve, o grupo de artesãos tem conquistado reconhecimento e prêmios (como o Sebrae Top 100 de Artesanato, 2016). Mestre Nena integrou pela primeira vez, este ano, a Alameda dos Mestres, na 17ª Fenearte. Suas peças despertam curiosidade pelo arrojo dos formatos incomuns e linhas pontiagudas. Sentado em seu torno, ele molda peças com base menor que a parte de cima, como as luminárias e os vasos funil. “Eu gosto de fazer peças complicadas, porque quando você faz assim as pessoas pensam duas vezes em fazer igual, e quando você produz em pouca quantidade, e a peça é mais demorada, ela é valorizada”, afirmou, em entrevista à Continente. As inspirações lhe vêm da observação da natureza: “Na praia, vi o ouriço e tentei trazer pro barro, acabou que fiz uma luminária diferente”.

Dona Sônia, outra remanescente da tradição de oleiros do Mauriti, chegou há três anos ao Centro, a convite de Mestre Nena. Suas peças apresentam características figurativas (animais, bonecas e anjos) que são moldadas sem o torno. Devido à sua deficiência visual, ela afirma preferir executá-los sem rosto. A arte de Gueu, por sua vez, evidencia-se pela delicadeza dos traços, as linhas são menos pontudas e mais curvilíneas, remetendo a corpos femininos. Ele e Nena compartilham a aptidão para o método torneado, que, com o uso de um torno em movimento circular, permite  ao artesão erguer as peças, como o jarro com babados.

Outro recurso material usado pelos artesãos da Cerâmica do Cabo é a barbotina, tipo de barro mais líquido e com tom esbranquiçado, que permite ao ceramista atingir paredes bem finas. Uma alternativa sustentável, já que, nessa variedade, os resíduos de cerâmica das fábricas são reaproveitados como matéria-prima para pequenos utilitários – copos, pratos e pires – e objetos decorativos, como o anguloso vaso Bolas e as flores feitos pelas artesãs Cida, Joselma e Cristina. Neste ateliê, vale a máxima da transformação, na qual nada se perde.

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